Uma das épocas mais conturbadas da Igreja foi sem dúvida o século IV, agitado por disputas teológicas e lutas das mais apaixonadas e encarniçadas que já houve na História da Igreja.

Bispos dos mais santos e ortodoxos (ortodoxia = verdadeira doutrina), como o grande Santo Atanásio, foram exilados de suas dioceses e perseguidos pelo poder imperial, ganho pela heresia ariana, enquanto heresiarcas declarados pavoneavam-se em seus lugares. Heresias menos conhecidas, mas não menos perniciosas, corrompiam e tumultuavam os fiéis. Em meio a esse caos, eram necessários homens para governar a Igreja de Deus não só de exímia ortodoxia, mas de extrema prudência e virtude, que servissem de luzeiro ao povo fiel. Um deles foi São Cirilo de Jerusalém, cuja festa comemoramos hoje.

Cirilo nasceu em Jerusalém ou arredores no ano 315. Pouco se conhece de sua infância e juventude a não ser que se aplicou cedo ao estudo das Sagradas Escrituras e de escritores eclesiásticos, bem como da retórica, o que depois se refletiria no seu magistério.

Ordenado sacerdote por São Máximo de Jerusalém, dedicou-se desde logo à catequese dos catecúmenos (neófitos ou candidatos que se preparavam para o batismo). Muito versado, refutava os pagãos com suas próprias armas, e tornava acessíveis àqueles que se preparavam ao batismo os mais elevados mistérios de nossa fé.

Suas pregações, realizadas na porta da Basílica do Santo Sepulcro (pois os não-batizados nela não podiam ainda entrar) eram tão apreciadas, que compiladores anônimos as foram anotando. Tais notas formaram precioso conjunto, que foi publicado sob o título de Catequeses, obra que valeu a seu autor o título de Doutor da Igreja.

O talento e a eloquência que Cirilo empregava nessa série de instruções, o designaram de maneira natural aos sufrágios do Clero e do povo, quando a morte de São Máximo tornou vacante a Sede episcopal de Jerusalém no ano 350.

Ia começar para o novo bispo da Cidade Santa uma série de perseguições que se prolongariam praticamente até sua morte.

Nessa época, sobreveio em Jerusalém e adjacências uma grande fome. Milhares de pobres morriam à míngua por não terem o que comer. Para sanar essa trágica situação e socorrer suas ovelhas, Cirilo não teve outro recurso senão vender mobiliário e parte dos bens diocesanos. Isso foi interpretado por seu Metropolita Acácio, Arcebispo de Cesaréia, herege ariano que procurava um pretexto para afastá-lo de Jerusalém, como apropriação indébita dos bens eclesiásticos. Intimado pelo Arcebispo a comparecer ante um tribunal, Cirilo negou-se. Acácio reuniu então uma assembléia de Bispos arianos que depôs o Santo de sua Sé.

Restabelecido nela no ano seguinte pelo Concílio de Selêucia (359), os bispos arianos, à força de pressões, conseguiram novamente depô-lo num Concílio em Constantinopla.

Em 361, morto o Imperador Constâncio, seu sucessor Juliano (que ficaria mais tarde tristemente famoso com o terrível cognome de o Apóstata), chamou de volta todos os Bispos exilados, entre eles São Cirilo.

O novo Imperador, que era secreto inimigo dos cristãos, começou a favorecer por todos os modos o reviver do paganismo. Julgava que, sendo os mártires sementes de cristãos, não deveria apelar para as perseguições, mas a uma verdadeira revolução pacífica dentro do próprio Cristianismo.

Ora, uma das profecias de Nosso Senhor que se havia cumprido com a mais inexorável exatidão, fora a da ruína do Templo de Jerusalém e conseqüente dispersão do antigo povo eleito. Anular e desmentir tal profecia seria um grande golpe assestado nos cristãos. Esse era o objetivo de Juliano. Por isso conclamou os israelitas de todo o Império a se empregarem na restauração do Templo.

Mas era antes necessário, para as obras, arrancar os alicerces danificados que restavam do antigo Templo. São Cirilo mantinha-se impávido,  na convicção de que prevaleceriam as palavras de Nosso Senhor. Mostrou então aos judeus que, apesar das condições mais favoráveis possíveis, eles estavam ajudando o cumprimento da profecia, fazendo desaparecer até os vestígios do Templo primitivo ao arrancar-lhe o que restava dos alicerces.

Um escritor insuspeito, porque pagão, contemporâneo dos acontecimentos, Ammiano-Marcelino, narra: “Enquanto o conde Alípio, assistente do governador da província, apressava vivamente os trabalhos, espantosos turbilhões de chamas saíram dos lugares contíguos aos fundamentos, queimaram os trabalhadores e lhes tornaram o lugar inacessível. Enfim, esse elemento persistindo sempre com uma espécie de teimosia a rejeitar os obreiros, foi-se obrigado a abandonar a empresa”.

O Apóstata Juliano prometeu vingar-se de Cirilo quando voltasse da guerra na Pérsia, mas foi antes chamado ao Tribunal de Deus onde prestou contas de sua impiedade.

Entretanto, o Imperador Valente, favorecedor do arianismo, tornou a exilar o Santo em 367. Durante onze anos Cirilo peregrinou de mosteiro em mosteiro, de diocese em diocese até que, subindo ao trono o Imperador Graciano, ordenou que fossem restituídas a todos os Pastores em comunhão com o Papa São Damaso, suas respectivas Dioceses. Assim, em 378, Cirilo voltou à Cidade Santa para não mais sair.

Até o fim os inimigos do Santo quiseram denegrir sua figura e sobretudo sua ortodoxia, bem como a legitimidade de sua eleição episcopal. Desse modo foi para ele uma honra e uma glória que o Segundo Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 382, em carta ao papa São Damaso, tenha dele atestado: “Esse Bispo, bem-amado de Deus, foi ordenado canonicamente pelos Bispos de sua província, e combateu pela fé em diversas ocasiões”.

Enfim, depois de ter, como São Paulo, “combatido o bom combate e percorrido a carreira inteira”, esse heróico prelado e Doutor da Igreja rendeu a Deus tranquilamente o espírito em 386, aos 70 anos de idade.

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