Em novembro de 1954 (clique aqui para ler o artigo anterior), publicamos nesta folha um estudo sobre S. Pio X, baseado principalmente nos dados biográficos contidos na excelente obra da Revmo. Pe. Dal Gal, O.F.M., traduzida para o espanhol pela editora “Cristiandad” de Barcelona.
Naquele estudo, que deixamos interrompido, tivemos ocasião de mostrar que toda a vida de S. Pio X foi uma preparação para o Papado. Vigário de Riese, cônego em Treviso, bispo de Mântua, Patriarca de Veneza, conheceu ele o ministério das almas nos seus vários níveis e aspectos, adquirindo assim uma visão de conjunto incomparavelmente útil para quem seria algum dia preposto à direção suprema de todos os rebanhos e todos os Pastores. Ao longo dessa tão rica experiência no governo das almas, esclarecida por uma inteligência vigorosa e penetrante, uma cultura eclesiástica excelente, e principalmente uma virtude exímia, o grande Santo constituiu para si como que um sistema de ação, que foi aplicando e aprimorando em cada cargo, e veio a constituir o programa de seu imortal pontificado. Enunciamos os vários itens desse programa, e tratamos mais especialmente da parte referente ao Catecismo. Tínhamo-nos proposto a considerar a pregação de S. Pio X. É a este e mais alguns outros pontos que desejamos consagrar o presente artigo.
A linguagem de um Santo
O assunto de que tratamos só pode ser visto em sua amplitude, se dermos à palavra “pregação”, um sentido extenso. Não se trata apenas da pregação feita de viva voz do alto do púlpito, mas genericamente de todo o ensino oral ou escrito, desde as aulas de Catecismo até os documentos pontifícios.
Considerando assim as características do “estilo” de S. Pio X, poderíamos enumerá-los em algumas fecundas antíteses:
a) grande atualidade, e ao mesmo tempo profunda tradicionalidade;
b) muito empenho em agradar, e ao mesmo tempo absoluta sobranceria em relação ao público;
c) compaixão terníssima, e firmeza invencível.
Atualidade e tradicionalidade
Há um certo academismo tradicional, que por assim dizer congelou a oratória. Só escolhe os assuntos que se prestam à grandiloqüência, ou a provocar fáceis efusões de lágrimas. Exprime-se em palavras rebuscadas, e fora de uso. Desenvolve o tema de modo inteiramente teórico, sem tomar na menor consideração as necessidades espirituais dos ouvintes. Em suma, tem por objetivo, muito mais glorificar o orador, do que instruir e edificar o público.
No outro extremo, há um modernismo demagógico e de convenção, que também não visa senão a glorificação do orador, mas caminha para este fim por processos diametralmente apostos. É um bajular constante daquilo que o homem tem de mais chulo, um acumpliciar-se invariável e omnímodo com tudo aquilo que o ouvinte sente, mas talvez mal ouse confessar a si próprio. Na escolha dos temas, prefere o banal, quando não o picaresco. Os elementos de colorido de linguagem e expressão são procurados na gíria mais populacheira. Na argumentação… nenhum argumento: jogos de palavra, comparações mais ou menos capciosas, gesticulação mais ou menos patética, e, quando menos se espera, uma piada. Uma destas piadas que fazem o público rir gostosamente, e lhe tiram toda a vontade de tratar seriamente o assunto proposto, levando-o a inclinar-se de bom grado para a opinião do orador como paga pelas momentos grosseiramente hilariantes que este lhe faz passar.
Decididamente, os partidários de uma tradição glacialmente morta não entenderam S. Pio X, e se ele fosse vivo também não o entenderiam hoje. Em seus sermões, em seus documentos, nota-se antes de tudo o objetivo de persuadir, formar, santificar. Por isto, vê-se que o Santo tem sempre na maior consideração as peculiaridades da mentalidade das pessoas a quem se dirige, e não trata o assunto para um auditório acadêmico, mas para homens de carne e osso, vivendo intensamente os problemas de seu tempo, com suas deficiências, suas lacunas, também suas qualidades. Sua argumentação, por assim dizer disto se ressente por vezes. Certos pontos especulativamente muito importantes são tratados de um modo sempre claro, digno, suficiente, mas sem maiores amplificações. Outros pontos, secundários em tese, que constituem por vezes mera aplicação de princípios gerais, são versados per longum et latum, com uma abundância de considerações que surpreende. Por que? Pio X, Pastor de almas antes de tudo, não se detém além do necessário, para fazer aceitar o que segundo previsões razoáveis o público já conhece, ou sem dificuldade admitirá. Ele reserva o melhor de seus esforços para os pontos difíceis, isto é, para a demonstração dos princípios que chocarão mais, para fazer aplicação dos princípios aos fatos concretos nos pontos em que a miséria humana poderia quiçá formar uma falsa visão das coisas. Como o Bom Pastor que toma sobre os ombros a ovelha e com ela caminha, assim S. Pio X percorre todo o campo doutrinário tendo na mente ou no coração as ovelhas transviadas, e passando com elas todos os lugares difíceis ou perigosos, com receio de que, abandonadas a si mesmas nas altas esferas da teoria, ou no emaranhado das questões práticas, absolutamente não saiam do lugar.
Entretanto, como aos populacheiros S. Pio X pareceria tradicional! Nunca uma palavra menos digna, em seu vocabulário. Nunca um pensamento menos elevado. Nunca uma atitude demagógica. Se sua linguagem era clara e acessível, jamais deixava de ser nobre. Se seus pensamentos eram proporcionados à inteligência de cada qual, vinham sempre impregnados da sagrada dignidade d’Aquele em cujo nome eram ensinados. S. Pio X sabia descer até o público sem rebaixar de uma polegada que fosse, a dignidade excelsa do Ministro do Senhor. Sabia descer ao público, não para se nivelar com ele em suas misérias, mas para elevar o povo até si. Tratando dos problemas mais atuais de seu tempo, com uma penetrante visão da realidade tal qual esta se apresentava, S. Pio X sabia conservar-se na altura em que as grandes tradições da Igreja situaram a oratória sagrada, e os estilos nobres do Vaticano fixaram a linguagem dos atos pontifícios.
Profundamente tradicional na substância do ensinamento, na nobreza de sua forma, a doutrinação de S. Pio X era ao mesmo tempo profundamente atual por ser feita em função das necessidades reais de cada época, numa linguagem acessível, atraente, capaz de dirigir as inteligências e mover as vontades.
Sobranceria e capacidade de atrair
S. Pio X morreu em 1914. São, pois, incontáveis os seus contemporâneos, ainda em nossos dias. Nemo sumus fit repente, diz a Moral: nada de ótimo, ou de péssimo, se faz subitamente. Tudo quanto é profundo, procede de uma lenta germinação. Impossível seria que nosso mundo houvesse atingido o clímax de crise religiosa, cultural, moral, política, social e econômica em que se encontra, sem que essa crise tivesse germinado de modo sempre mais grave, num longo passado. Isto equivale a dizer que os problemas do tempo de S. Pio X não são diversos dos atuais. São pelo contrário os mesmos problemas, levados porém em muitos casos a um grau de exacerbação menor do que o de hoje. Uma exacerbação menor, não quer dizer uma exacerbação pequena. Se hoje tantos problemas estão em ponto de explosão é porque ao tempo do Santo já se estavam carregando de pólvora. O processo de combustão já se iniciara. Apenas, as chamas se transformaram de lá para cá em imensas labaredas.
Assim, S. Pio X sentiu muito de perto, e como que na própria carne, um problema que interessa no mais alto grau a quantos hoje fazem apostolado. De um lado, a doutrina católica é imutável, mas de outro lado os tempos mudam. E assim não raras vezes o que ontem entusiasmava ou comovia, hoje suscita antipatia, ou pelo menos não logra vencer a indiferença geral. Pelo contrário, o que ontem despertava repulsa ou não encontrava senão indiferença, muitas vezes excita hoje entusiasmos ou pelo menos vivo interesse. Difundindo só o que agrada ao público, trai-se a missão essencial do apostolado, que consiste em anunciar a verdade inteira. Mas proclamando a verdade inteira corre-se o risco de despertar antipatias e consumar cisões infelizmente já iminentes pela maldade dos tempos. Como agir?
Em toda a vida de S. Pio X nota-se que ele tinha em mente este problema, e com a maior atenção. Importa saber como o resolveu. Há certos Santos que receberam de Deus em grau extraordinário, e até carismático, o dom de atrair o afeto dos homens. Um deles foi certamente José Sarto. Para isto não lhe faltavam dotes naturais. Seu semblante, constituído de traços nítidos, delicados, harmoniosos, seu alto porte, sua voz de timbre agradável, inspiravam naturalmente simpatia e confiança. O saber e as virtudes acrisoladas do homem de Deus acentuavam profundamente esta impressão natural. Mas tal era a atração exercida por S. Pio X sobre os que dele se acercavam, que chegava a ter algo de misterioso e evidentemente sobrenatural. O Cardeal Merry del Val, em seu admirável livro sobre o grande Pontífice, conta que, logo depois de eleito o sucessor de Leão XIII, o corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé pediu uma audiência para lhe apresentar suas homenagens. A opinião mundial admirara em Leão XIII um Papa nimbado pela auréola de uma inteligência genial, e um porte altamente aristocrático. Constava que seu sucessor era um mero Pároco de aldeia, de origem humilde, e sem grande talento. É de se conceber que os diplomatas tenham entrado na sala em que S. Pio X se dispusera a recebê-los, sem nenhuma propensão para se deixarem entusiasmar ou fascinar. Terminada a audiência, foram todos visitar Mons. Merry del Val, que estava na direção efetiva da Secretária de Estado. Depois dos primeiros cumprimentos, um silêncio baixou, deixando perplexo o Prelado. Por fim um dos diplomatas rompeu esta atmosfera difícil, fazendo uma pergunta imediatamente repetida pelos demais: diga-me, Monsenhor, que encanto extraordinário tem este novo Papa? Ainda estamos todos sob o jugo de sua atração… Era a graça de Deus, a borbulhar na alma de um Santo, e a atrair a si os corações dos homens.
A verdade vem mais facilmente pela boca dos pequeninos, do que pela dos diplomatas. O fundo da impressão que S. Pio X causava em todos, exprimiam-no de modo tocante as crianças. O Pe. Dal Gal conta que quando o Papa lhes dirigia a palavra, com bondade encantadora, elas, não raras vezes, em lugar de responder “sim, Santo Padre”, diziam instintivamente “sim, Jesus”. Depois disto, que outro elogio se pode fazer de alguém?
Todos os que se acercaram de S. Pio X estão acordes em afirmar que, se ele naturalmente atraia tanto, não se fiava apenas neste admirável dom, mas exercia sobre si uma vigilância constante para não ter uma palavra menos refletida, que pudesse magoar inutilmente a quem quer fosse. Neste, como em tantos outros pontos, sua aplicação era constante. E por isto, nunca houve quem, tratando com ele, pudesse retirar-se com justo motivo de queixa.
Este empenho em agradar é muito visível nos documentos do santo Pontífice. Mesmo em seus atos mais enérgicos e mais veementes, nota-se que deixava sempre aberta, muito larga, a porta do perdão para os que tivessem sincero arrependimento do mal feito, e propósito firme de não reincidir. E com que acentos chamava para esta porta os corações transviados! Sentia-se a certeza de que daria até a última gota de seu sangue, para salvar uma só alma caída em erro ou em pecado.
Mas este desejo de agradar os homens não era filantropia meramente naturalista. Era autêntica caridade. E por isto S. Pio X, disposto a fazer tudo pelos homens por amor de Deus, e para os atrair à graça de Jesus Cristo, nunca deixou de ensinar a verdade inteira, de pregar a moral sem rebuços nem disfarces, de desfraldar bem largo o estandarte do Salvador. Não faltavam os que em seu tempo recomendavam que os católicos velassem as partes de sua doutrina, por demais incompatíveis com as tendências do século. S. Pio X se mostrou nisto, constantemente, de uma sobranceria indomável. Seu papel, como de todo apóstolo em geral, não consistia em velar a verdade porque não era amada, mas em desfraldá-la, para a tornar inteiramente amada.
Compaixão ternissima, firmeza invencível
Mas, dir-se-á uma tal intransigência não terá criado crises dolorosas, não terá imposto sofrimentos lancinantes a tantas almas, não terá suscitado lutas e dificuldades? E como pode um coração católico, de caso pensado e deliberadamente fazer sofrer tanto os outros?
Nada há de mais diferente do santo Pontífice, do que um ferrabrás que põe todo o seu prazer em brigar, que faz consistir toda a sua glória em esmagar o próximo, que só compreende o convívio humano à maneira de um entredevorar-se permanente, no terreno das idéias como no dos interesses. Sempre que S. Pio X fez sofrer alguém, sofreu profundamente, também, em sua própria alma.
Algumas crises dolorosas, eclodidas no correr de seu pontificado, o colocaram nesta contingência. A ação do Modernismo dentro da Igreja, obrigou-o a atos de uma energia que desconcertou a muitos, e até a muitos católicos. Sua luta contra o governo francês, laicista e maçônico, levou-o a posições de uma intransigência que muitos de seus contemporâneos, mesmo altamente situados, não compreenderam bem. Algumas de suas intervenções em assuntos eclesiásticos tiveram de ser feitas com grande firmeza. Em todos estes casos, S. Pio X foi tão longe quanto deveria ter ido um Papa dos mais enérgicos, posto nas mesmas condições. E é bem de ver que seus gestos de rigor acarretaram muita dor e muitas lágrimas…
Mas que rigor justificado! Antes de tudo, S. Pio X não agiu com fortaleza, senão depois de esgotados todos os meios suasórios. Só recorria a uma penalidade severa, quando estava certo da inutilidade de todos os meios mais brandos. Assim na condenação do Modernismo. Estes inimigos falacíssimos da Igreja, infiltrados nos meios católicos, propagavam sob capa de Catolicismo, doutrinas que eram a síntese de todas as heresias. Baldados todos os outros processos, o Papa fulminou – é bem o termo – contra eles a Encíclica “Pascendi”. Poderia ter deixado de agir assim? O inimigo, com pele de ovelha, arrastava as almas à heresia. Se S. Pio X não tivesse chegado a este rigor extremo, quais teriam sido as conseqüências? Sendo o Cardeal Mercier, Arcebispo de Malines, a Europa poderia ter sido arrastada a uma crise tão grave quanto a do Protestantismo. Quem gostaria de arcar perante Deus, com tanta responsabilidade?
E, em segundo lugar, que rigor afetuoso! Nenhuma censura que não fosse estritamente justa, rigorosamente necessária. Nenhuma expressão que passasse da medida adequada. Nenhuma omissão no que dissesse respeito às promessas de perdão.
E por fim, que seriedade em tudo isto. O Pontífice, dizíamos, tinha aberta bem larga a porta do perdão. Nunca porém um perdão equivoco, para encobrir situações falaciosas. Perdão, sim, mas para quem desse garantias de estar arrependido e no propósito de não reincidir. Pois o vago, o flutuante, o indefinido, a timidez, o oportunismo, nunca foram coisas que o Santo amasse ou sequer tolerasse.
Grande mestre, grande protetor
O Santo Padre Pio XII, em cujo pontificado se têm acumulado tantas glórias, ao canonizar S. Pio X quis nos dar um grande exemplo. Exemplo magnífico, sim, mas que traz consigo a continência de cumprir deveres realmente árduos. E por isto, o Santo Padre não nos indicou seu Santo Antecessor e Homônimo apenas como um exemplo, mas também como um protetor.
Cada Santo é invocado pela piedade dos fiéis para os socorrer principalmente em algumas necessidades especiais. S. Pio X é bem, junto a Deus, o intercessor valiosíssimo que nos pode obter as graças necessárias para ver e agir segundo seu exemplo, nos assuntos tão intrincados que em sua vida resolveu com admirável sabedoria, e que as atividades de apostolado a cada momento solicitam, nos dias conturbados de hoje.
Em tudo isto o Santo Pontífice não fazia senão continuar a linha tradicional da Santa Sé. Mestra tão firme e Rainha tão condescendente. Na questão dos orientais, por exemplo, ela outorgou tudo quanto a tolerância disciplinar permite, mas manteve bem claro tudo quanto a intransigência doutrinária exige. Nas suas relações com os orientais S. Pio X foi um modelo de firmeza, mas ao mesmo tempo de paternal afeto. No clichê que ilustra [o início deste artigo], vemo-lo cercado de altos Prelados de rito oriental, manifestando o amor da Igreja por essa porção venerável e gloriosa do rebanho de Jesus Cristo.