Todos, em grau maior ou menor, somos chamados à santidade (Rom 1, 7), a “sermos perfeitos como nosso Pai celeste é perfeito” (Mat 5, 48). E isso em todos os estados de vida, em todas as condições sociais, mesmo nas mais humildes. Essa revolta contra a Providência por causa da “injustiça” que sofrem os menos favorecidos pela fortuna, é coisa moderna, e mais própria ao espírito marxista do que ao verdadeiro catolicismo. E disso nos dá prova a infinidade daqueles que se santificaram na vida secular tanto no trono imperial, como Santo Henrique e Santa Cunegundes, como até no estado de mendicância, como Santo Aleixo. Santa Germana Cousin, cuja festa comemora-se hoje, é outro exemplo muito significativo de santificação nas mais adversas condições de fortuna e saúde. Talvez isso não a faça muito popular nos dias de hoje.
Numa manhã de dezembro de 1644, procedia-se a um enterro na pequena igreja de Pibrac, a algumas léguas de Toulouse. Tratava-se de uma Germana Audouane, que havia pedido, em testamento, para ser sepultada dentro do recinto sagrado.
Os coveiros apenas tinham tirado as primeiras lajes do solo para cavar a tumba,quando viram um corpo enterrado quase à flor da superfície, fresco como se tivesse sido lá colocado na véspera. Um golpe de picareta atingira a face do cadáver, deixando ver uma carne viva e um sangue brilhante.
A comoção foi grande, e logo atraiu todo o povoado. Desenterrado o corpo, viram que era de uma jovem de pouco mais de vinte anos, cujos membros estavam ainda flexíveis. As flores que a adornavam estavam apenas um pouco murchas, e a mortalha ligeiramente escurecida. No pescoço da jovem viam-se cicatrizes de pequenos tumores, e sua mão direita era deformada.
Quem seria? O vigário não a reconheceu nem a maioria dos paroquianos. Mas dois dos mais antigos moradores da cidade, Pierre Pailhès e Joana Salères, a identificaram com sendo uma sua contemporânea, Germana Cousin, que havia morrido havia uns quarenta anos, e de quem, na época, se contavam fatos maravilhosos.
Há tão poucos dados sobre a vida de Santa Germana Cousin, que ela foi chamada “a santa sem história”. Pois, como vimos, ela passou a ser mais conhecida depois de sua morte que em vida.
Foi ali mesmo em Pibrac que Germana nasceu pelo ano de 1579. Seu pai, Lourenço Cousinera, segundo uns, um homem de posses que chegara a ser duas vezes prefeito do lugar; segundo outros, um agricultor quase indigente. Casado com Maria Laroche, piedosa e de saúde frágil, tiveram quase na velhice, uma filha doentia, aleijada da mão direita e atacada de escrófula (infecção tuberculosa em gânglios linfáticos do pescoço, e que se acompanha, com frequência, de abscessos que se desenvolvem lentamente, e de fístulas). Órfã muito cedo, Germana teria sido criada pelo irmão mais velho e esposa. Ou, como querem outros, só a mãe morreu; o pai tornou a se casar.
Como a família se extinguiu na geração seguinte, os fatos são difíceis de se precisar. Mas, de todos os modos, seja a madrasta ou cunhada atuando como madrasta, o fato é que essa mulher desde logo desprezou aquela infeliz criança, franzina e disforme. Com medo de que sua doença se transmitisse às outras crianças da casa, afastou-a do convívio familiar, fazendo-a mudar-se para o estábulo, e confiando-lhe a guarda do rebanho familiar.
Germana tinha assim tudo para ser uma revoltada contra tudo e contra todos, principalmente contra Deus, que a fizera nascer em condições tão humilhantes. Mas, não. Na escola da humilhação e do sofrimento, elevou seu espírito para Deus, aceitando amorosamente o triste quinhão que lhe fora reservado. “Triste quinhão” aos olhos do mundo, pois, aos olhos Daquele que entregou seu Filho Unigênito à morte, e morte de cruz, esse quinhão só é reservado para os eleitos que compreendem o valor infinito do sofrimento.
O conhecido escritor católico ultramontano do século XIX, François Veuillot, em sua biografia da Santa, fala de duas pessoas que a ajudaram muito a compreender o valor desse sofrimento, e dele servir-se para a própria santificação: uma antiga empregada da família, que dedicou à orfãzinha um amor maternal, ensinando-lhe os rudimentos de religião; e o velho pároco de Pibrac, homem verdadeiramente zeloso e santo, que via naquela criança cândida e inocente uma predileta do céu.
A humilde pastorinha tornou-se, a seu tempo, apóstola. E às outras crianças ensinava o catecismo que aprendera, e o que lhe ensinava o Divino Espírito Santo com os seus dons. Embora vivesse apenas de pão e água, achava meios de repartir seu parco alimento com outros ainda mais destituídos que ela.
Devotíssima da Santa Missa, Germana acorria à igreja ao primeiro toque do sino. Mas, para isso, era preciso seu rebanho. Confiada na Providência, espetava seu bastão de pastora no chão, e ordenava às ovelhas que dele não se afastassem enquanto estivesse ausente. E nunca sumiu um só animal, apesar dos muitos lobos de uma floresta vizinha.
Uma noite do ano de 1601 três viajantes viram uma luz luminosa no céu, e um branco cortejo de Anjos que desceu até uma casa de Pibrac, e depois subiu transportando a alma de uma jovem igualmente vestida de luz e coroada de flores.
Chegando ao povoado, constataram que havia morrido durante o sono, na casa dos Cousin, a jovem Germana. Seu corpo foi sepultado na igreja, e sua memória caiu no olvido dos anos até a nova intervenção da Providência, em 1644, como vimos.
Depois da milagrosa descoberta do corpo de Germana, o vigário de Pibrac, para evitar a veneração pública de uma pessoa ainda não canonizada, colocou a urna de chumbo contendo seus restos mortais na sacristia. Ora, dezesseis anos mais tarde, o Vigário Geral da Arquidiocese de Toulouse, o Pe. Jean Dufour, fazendo a visita pastoral em nome do arcebispo, viu aquela urna funerária na sacristia e estranhou. Contaram-lhe então sua história, e ele quis ver o corpo, e o encontrou tão inteiramente incorrupto, como quando ele foi encontrado.
O vigário mostrou-lhe então um registro no qual estavam relatadas inúmeras curas miraculosas atribuídas a Germana. Esse foi o início do processo diocesano que levaria, quase duzentos anos depois, à beatificação e canonização da humilde pastora.
Mas antes seria ela objeto de uma profanação e de um novo milagre retumbante por ocasião do Terror, durante a sinistra Revolução Francesa.
Três furibundos revolucionários de Toulouse, querendo acabar com aquela “superstição” prestada àquele corpo, junto a três pessoas locais, violaram a urna, dela retiraram o corpo ainda incorrupto de Germana – tão endurecidos estavam que nem sequer a vista desse milagre os comoveu – e o enterraram na própria sacristia, coberto com uma camada de cal viva.
Dois anos depois, em 1795, foi possível desenterrar novamente o corpo. Se bem que a carne tivesse sido devorada pela cal, esta respeitou milagrosamente toda a ossatura, que normalmente deveria ter também desaparecido.
Coube a um beato, o papa Pio IX, a glória de beatificar e canonizar essa humilde jovem, tão desprezada enquanto viveu.