Papa Francisco, filósofo da inclusão

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Em 31 de maio, Papa Francisco no encontro com autoridades civis da Romênia

No dia 2 de junho, a tradicional parada militar na Itália para celebrar a festa da República transcorreu sob o signo da “inclusão”. O tema da inclusão, que caracterizou o evento, “representa bem os valores esculpidos em nossa Carta constitucional, a qual estabelece que nenhum cidadão pode se sentir abandonado, mas deve ser garantido no exercício efetivo de seus direitos”, declarou o Presidente da República Sergio Mattarella [democrata-cristão de esquerda].

No mesmo dia, em Blaj, na Romênia, o Papa Francisco fez um mea culpa em nome da Igreja pelas discriminações sofridas pelas comunidades ciganas: “Em nome da Igreja, peço perdão, ao Senhor e a vós, por todas as vezes que, ao longo da história, vos discriminamos, maltratamos ou consideramos de forma errada, com o olhar de Caim em vez do de Abel, e não fomos capazes de vos reconhecer, apreciar e defender na vossa peculiaridade”.

Ao longo da História não há traços de perseguições ou maus tratos da Igreja em relação aos ciganos, mas com essas palavras o Papa Francisco quis reafirmar aquele princípio de “inclusão” do qual ele é hoje o teórico por excelência e ao qual a União Europeia submete a sua política. A insistência com a qual o Papa retorna a temas como inclusão, não discriminação, acolhida, cultura do encontro pode parecer a alguns como uma expressão de amor ao próximo que, para usar uma metáfora do próprio Papa Bergoglio, faz parte do“documento de identidade do cristão”.

Quem assim pensa, no entanto, comete um erro de perspectiva análogo ao dos católicos progressistas do final do século XX, para os quais a preocupação de Marx para com o proletariado nasceu de seu amor pela justiça social. Esses católicos propunham cindir o marxismo, rejeitando sua filosofia materialista, mas aceitando sua análise econômica e social. Eles não entenderam que o marxismo constitui um bloco inseparável e que a sociologia marxista é uma consequência direta de seu materialismo dialético. Marx não era um filantropo debruçado sobre a miséria do proletariado para aliviar seu sofrimento, mas um filósofo militante que usava tais instrumentos como ferramenta para realizar seu objetivo revolucionário.

De maneira similar, a atenção do Papa Francisco para com os subúrbios e os menos favorecidos não nasce de um espírito evangélico nem de uma filantropia laica, mas de uma opção filosófica mais do que política e que pode ser resumida em termos de um igualitarismo cosmológico. Francisco usa um neologismo em sua encíclica Laudato sì: o termo castelhano “inequidad” [na versão portuguesa foi traduzido por “desigualdade”], que basicamente significa qualquer forma de desigualdade social injusta. “O que queremos é a luta contra as desigualdades, este é o maior mal que existe no mundo”, declarou ele a Eugenio Scalfari no “Repubblica” em 11 de novembro de 2016. Na mesma entrevista, o papa Bergoglio adotou o conceito de “hibridização” proposto por Scalfari [nós, brasileiros, diríamos “miscigenação”]. E Scalfari, em editorial no mesmo jornal de 17 de setembro de 2017, afirma que, segundo o Papa Francisco, “na sociedade global em que vivemos, povos inteiros migrarão para este ou aquele país e criarão, com o passar do tempo, um tipo de ‘hibridização’ cada vez mais integrado. Ele o considera um fato positivo, onde indivíduos, famílias e comunidades se tornam cada vez mais integrados, os vários grupos étnicos tendem a desaparecer e uma grande parte da nossa Terra será habitada por uma população com novos traços físicos e espirituais. Levará séculos ou até milênios para que tal fenômeno aconteça, mas — de acordo com as palavras do Papa — essa é a tendência. Não é por acaso que ele prega o Deus Único, isto é, um por todos. Eu não sou crente, mas reconheço uma lógica nas palavras do Papa Francisco: um povo único e um Deus único. Até agora, não houve líder religioso que tenha pregado essa verdade ao mundo”.

O termo “mestiçagem”, como os de inclusão e acolhida, retornam amiúde na linguagem pastoral do Papa Bergoglio. Em 14 de fevereiro de 2019, por ocasião de seu discurso no Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), em Roma, Francisco se encontrou com uma representação de povos indígenas e, chamando essas comunidades de “um grito vivo a favor da esperança”, pediu uma “mestiçagem cultural” entre os “povos chamados civilizados” e as populações nativas, que “sabem o que significa ouvir a terra, ver a terra, tocar a terra”. A “mestiçagem cultural”, explicou, é o caminho a seguir trabalhando “para tutelar quantos vivem nas áreas rurais e mais pobres do planeta, entretanto mais ricas na sabedoria de conviver com a natureza”.

Em 19 de janeiro de 2018, em Puerto Maldonado, no coração da Amazônia peruana, o Papa Francisco, encontrando os indígenas, disse-lhes: “O tesouro que encerra esta região” não pode ser entendido, compreendido, sem “vossa sabedoria” e “vossos conhecimentos”. Para se compreender melhor essa referência à “sabedoria” e ao “conhecimento” dos nativos, precisamos recorrer ao trabalho de um autor caro ao Papa Francisco, o ex-franciscano Leonardo Boff. A Amazônia — explica Boff — tem “um valor paradigmático universal”, porque representa a antítese do modelo de desenvolvimento moderno “carregado de pecados capitais e antiecológicos”; mas também “é o lugar de ensaio de uma alternativa possível, em consonância com o ritmo daquela natureza luxuriante, respeitando e valorizando a sabedoria ecológica dos povos originários que há séculos ali vivem” (Ecologia: Grito da Terra e Grito dos Pobres, Rio deJaneiro-RJ: Sextante, 2004, p. 145). Para Boff, “precisamos passar do paradigma moderno para o paradigma pós-moderno, global,‘holístico’, que propõe‘um novo diálogo com o universo’, ‘uma nova forma de diálogo com a totalidade dos seres e suas relações’” (ibid., p. 23).

A Amazônia não é apenas um território físico, mas um modelo cosmológico em que a natureza é vista como um todo vivo que tem em si uma alma, um princípio de atividade interna e espontânea. Com essa natureza prenhe de divindades, os povos indígenas da América Latina mantêm uma relação que o Ocidente perdeu. A sabedoria dos nativos deve ser recuperada, pedindo perdão pela discriminação cometida contra eles, sem esperar que peçam perdão pelo canibalismo e pelos sacrifícios humanos que seus ancestrais praticaram. As pontes que precisam substituir os muros são unidirecionais. Este é o pano de fundo cultural do Sínodo que será aberto no Vaticano em 6 de outubro. A inclusão é um conceito filosófico, e não social: significa afirmar uma realidade híbrida, indistinta, “miscigenada”, na qual tudo se funde e se confunde, como a teoria do gênero, que é a teoria da inclusão por excelência. As pessoas LGBT, como os migrantes ou os nativos da América do Sul, devem ser bem-vindos e respeitados não como pessoas, mas pelas culturas e rumos que veiculam. Esta cosmologia lembra o deus sive natura de Spinoza, que pleiteia a identidade de Deus com a substância infinita da qual todos os seres derivam. Deus deve ser incluído na natureza e a natureza deve ser incluída em Deus, que não é uma causa transcendente, mas imanente do mundo, com a qual Ele coincide. Não há diferença qualitativa entre Deus e a natureza, assim como não há diferença qualitativa entre diferentes sociedades, religiões ou culturas, nem entre o bem e o mal que, segundo Spinoza, são “correlativos” (Ética, IV, prop. 68).

A doutrina da inclusão não é a da encíclica Aeterni Patris de Leão XIII ou da Pascendi de São Pio X, mas se opõe a esses documentos. Poucos, no entanto, se atrevem a dizê-lo abertamente. Quanto tempo durará este silêncio ambíguo, confortável para muitos, mas sobretudo para aqueles que o utilizam para alcançar fins alheios à finalidade sobrenatural da Igreja?


(*) Fonte: “Corrispondenza romana”, 5-6-2019. Matéria traduzida do original italiano por Hélio Dias Viana.

 

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