Tapar o sol com a peneira não faz meu gênero. “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (Platão é amigo, porém a verdade é mais amiga). Faz anos que manifesto preocupação [usei eufemismos, se quiserem, understatements; na verdade, são brados, urros de angústia] com a presença crescente de estatais chinesas na economia do Brasil. Favorecida pelo mutismo generalizado, erva de maldição, não para de se alastrar. No fim da rota, pode demorar anos mais, anos menos, depende da vivacidade popular, teremos nossa soberania reduzida a frangalhos, a independência nacional será palavra oca, vegetaremos sem altivez em estado de virtual protetorado, ainda que cuidadosamente disfarçado.
Expus meu pensamento, recordo, fundamentado e bem matizado, em numerosos artigos, basta ver o blogue (periclescapanema.blogspot.com), lá estão os artigos, o primeiro dos quais de 10-12-2015, intitulado “Desnacionalização suicida”; o último, ainda recente, 13-8-2019, “Advertências inúteis”. Dolentes e reiteradas advertências, inúteis pelo menos em aparência, ao longo de quatro anos, números redondos.
O texto de hoje constará quase tão-só de transcrições do primeiro e do último artigo da série acima referida. Garantia Napoleão, a melhor figura de retórica é a repetição. Vou bisar, acho que já disse e redisse quase tudo o que tinha a divulgar. Foram propaladas realidades óbvias ao alcance de qualquer um, concedo, mas sobre as quais reinava e reina silêncio. Uma coisa não declarei ainda e vou afirmar agora com modéstia e tristeza: chegará o dia, espero que distante, em que os brasileiros amantes do torrão natal chorarão lágrimas de sangue, por causa das atuais displicência e negligência. Mas talvez seja tarde.
No artigo de 10-12-2015, constatava e informava: “Nunca fui nacionalista; vejo com simpatia a presença de empresas estrangeiras entre nós. Mas o caso agora é outro. Em 25 de novembro último, o governo colocou à venda concessões por 30 anos para as usinas de Ilha Solteira. Jupiá, Três Marias, Salto Grande, vinte e nove hidrelétricas no total. Ganharam o leilão CEMIG (estatal), COPEL (estatal), CELG (estatal), CELESC (estatal), ENEL (forte presença do governo italiano) e THREE GORGES (estatal chinesa). A estatal chinesa ficou com 80% da energia e pagou R$13,8 bilhões pela outorga. […] Com os ativos recém-adquiridos, a CTG [China Three Gorges, a estatal chinesa] atinge capacidade instalada de 6.000 W, tornando-se a segunda maior geradora privada do país”. Privada? Era o que saía na imprensa; de fato, estatal chinesa.
Continuava eu mais abaixo: “Quem tomou conta de boa parte da geração de energia no Brasil, à vera, foi um país totalitário e imperialista que caminha a passos gigantescos para ser a primeira potência do mundo. Vai chegar lá? Sabe Deus. E que, ponto que ninguém de bom senso nega, usa sem escrúpulos todos os instrumentos de que dispõe para impor seus objetivos. O que aconteceu em 25 de novembro não foi fato isolado, faz parte de política de longo alcance; grande parte do capital chinês investido no Brasil é estatal, controlado pela ditadura comunista. Imagine uma disputa comercial de uma estatal chinesa — tributos, mercados, preços, admissão e demissão de empregados, dumping, oligopólios e monopólios, sei lá mais o que — com o governo brasileiro. Pelo que estamos acostumados a ver, bastaria a ameaça de retaliação comercial do nosso mais importante parceiro internacional, por exemplo, cortar a importação de ferro ou carnes, perseguir empresas brasileiras instaladas na China, para Brasília piar fino. Falando em pios, a esquerda não solta um pio a respeito desta gritante desnacionalização, que carrega no bojo potencial e gravíssima ingerência externa em assuntos internos. Essa mesma esquerda que esgoelava décadas atrás contra a Light, o chamado polvo canadense, e berrou contra as privatizações do período FHC (entrega de propriedade do povo ao capital estrangeiro), vê agora, silenciosa, o governo, entre outros motivos premido por terríveis problemas de caixa, se lançar às carreiras numa política suicida de desnacionalização. Repito, o episódio das três gargantas que engoliram de uma só vez parte do potencial elétrico do Brasil não é isolado. As estatais chinesas estão ativamente comprando propriedades entre nós nas mais variadas áreas. Na década de 70 foi usual a palavra finlandização. A Finlândia havia perdido mais de 10% de seu território para a Rússia, quase 20% de seu parque industrial e, pelo temor do vizinho ameaçador e poderoso, acertava sempre o passo com Moscou, não importava o que fizessem os tiranos comunistas. Aquele antigo e civilizado país, formalmente soberano, de fato padecia uma forma larvada de protetorado. Queiramos ou não, a mesma situação, ainda que incipiente, ocorre no Brasil. Com a enorme e cada vez maior presença econômica do Estado chinês entre nós, vai chegar o dia em que o país, em numerosos assuntos internos, vai ter diante de si potência mundial imperialista. E, se colocarmos como padrão como trata os governos esquerdistas e comunistas, facilmente imaginaremos a subserviência diante do poderio chinês. Cortando caminho, vilmente protegido pelo mutismo da covardia e da cumplicidade, está em curso entre nós um processo que vai levar à perda efetiva da soberania nacional. No fundo do horizonte, terrível perspectiva, nos espera o protetorado envergonhado, mesmo que cuidadosamente disfarçado.”
Isso dizia eu em dezembro de 2015. Na mesma direção, quatro anos depois, no melancólico “Advertências inúteis” de agosto de 2019 relembrava o óbvio ululante: “Às vezes me sinto inibido em recordar o óbvio ululante. Vamos lá, conto com a benevolência do eventual leitor. A China é país comunista. Seu governo, expansionista, imperialista, ditatorial e totalitário, é exercido por um só partido, o Partido Comunista da China (PCC), marxista, coletivista e ateu. Lá, só como piada se pode falar em democracia e direitos humanos. Na América do Sul um dos dois maiores apoios à ditadura assassina de Maduro, que lota Roraima de refugiados miseráveis, é a China (o outro, a Rússia). Na Ásia, sustenta a tirania da Coréia do Norte (maior apoio dela) e tem dado sinais gritantes de que será implacável na repressão às reivindicações de liberdade da população de Hong Kong. O PCC, que infelicita a China, tem rumo ideológico claro, conduta constante e previsível, conhecida política de Estado. As empresas estatais chinesas agem segundo os interesses do PCC e do governo chinês; promovem com obediência canina a política de ambos. São, em sua esmagadora maioria dirigidas por membros do PCC. É congruente, pois, que o PT, nos governos Lula e Dilma, tenha sido fervoroso partidário de toda forma de aproximação com a China; no caso, em especial, favorecia a compra de ativos brasileiros por estatais chinesas. Até aqui, o óbvio ululante.”
Passo para a atualidade. O presidente Jair Bolsonaro acaba de deixar a China. Ao chegar em Beijing, declarou: “A China é um país capitalista”. Santo Deus! Nem vou comentar. Ao deixar o país, informa o Estadão de 26 de outubro, “Bolsonaro convidou estatais chinesas para participar da oferta de áreas de exploração no pré-sal”, marcado para 6 de novembro próximo. Continua o Presidente: “A China tem interesse em participar. E é bom para todos nós. Nunca seremos 100% afinados [com a China], mas na questão econômica, acredito que estamos bem próximos”. No mesmo contexto da visita, tratou do caso da China Nacionalista, visitada por ele como manifestação de solidariedade quando deputado. Todos sabem, Taiwan está separada do continente por razões ideológicas, meritoriamente não quer se submeter à tirania comunista. O presidente brasileiro elogiou a posição do embaixador chinês no Brasil, relativa à soberania: “China única e Brasil único”. “Quando passei por Taiwan, era apenas um parlamentar de passagem, não foi visita oficial” Era necessária a bofetada gratuita na resistente Taiwan, isolada e fraca na defesa de seus interesses legítimos, credora de justos elogios?
Adiante. Empavonou-se Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, que esteve agora na China: “A China tem sido importante parceiro e investidor no setor de mineração e de energia no Brasil [calou que parceiros e investidores são as estatais chinesas]” E continuou: “No setor de mineração, há empresas chinesas fazendo investimentos no Brasil, principalmente na área de fosfato e nióbio e também de petróleo e gás. Acreditamos que agora, com a abertura do mercado de gás, a China terá uma importante participação, principalmente na infraestrutura deste importante setor para a reindustrialização do país.” [China e empresas chinesas são aqui eufemismo para estatais chinesas].
Faço um desafio, mostrem-me documento do PT, um só, que censure a aplicação de capital no Brasil por estatais chinesas, prática agora estimulada pelo atual governo. O PT sabe que a presença forte de estatais dirigidas pelo Partido Comunista Chinês na economia brasileira favorece seu objetivo de amarrar o Brasil ao bloco socialista em ascensão.
Uma vez mais, adiante. Transcrevo a seguir recente documento oficial, texto já divulgado em meu último artigo, da lavra do Conselho Empresarial Brasil-China intitulado “China – Direções globais de investimentos 2018”, responsabilidade conjunta do Conselho Empresarial Brasil-China e da Apex. A linguagem é cauta, aveludada, não é escarrapachada como a minha, mas a realidade descrita é a mesma: “Outro ponto que desperta receio é a forte presença das empresas estatais no processo de internacionalização. Nesse sentido, alguns países como os Estados Unidos, Alemanha, França, entre outros têm elevado os padrões de avaliação para a entrada do investimento chinês sob a justificativa de proteção de áreas estratégicas (World Investment Report, 2017)”. Sugestão do documento citado: “O sistema regulatório de concessões deve ser acompanhado para que não se criem monopólios de empresas estatais em áreas de infraestrutura”.
Ainda do meu artigo último a respeito: “Ou seja, Estados Unidos, Alemanha, França entre outros países de importância, temem investimento estatal chinês e querem colocar limites, regulamentar — pôr o sarrafo mais alto. Na linha de grandes potências do mundo ocidental, ecoando a preocupação, o Conselho Empresarial Brasil-China e a APEX alertam para o risco de monopólios chineses estatais em áreas da infra-estrutura no Brasil”
Continuava o artigo: “Sei uma coisa, estamos merecendo o título ignóbil de campeões mundiais da imprudência, pois nos despreocupa a soberania nacional, independência e interesses estratégicos, levados a sério nos Estados Unidos, Alemanha, França e em tantos outros países, como afirma o referido relatório”.
Vou terminar. Constato com tristeza e falo como observador que viu com simpatia e até entusiasmo medidas da presente administração. Mas no caso das relações com a China, a realidade diáfana deixa ver, a presente administração está percorrendo a mesma trilha já palmilhada pelo governo FHC, transitada com entusiasmo pelos governos Lula e Dilma, continuada na gestão Temer. Dei a esse artigo o título “Preocupa”. Foi equívoco. A realidade não apenas preocupa; alarma, assusta, apavora. Que Deus nos ajude!