Hoje em dia tudo é pretexto para o aborto, sobretudo quando o feto apresenta anomalias congênitas tidas como insanáveis. O que dizer então quando o ultrassom prenuncia um menino tetraplégico, com os membros e o tronco totalmente paralisados? Que mãe em nossos dias tem coragem e fé suficientes para permitir que ele nasça?
Pois foi o que ocorreu no início do século XI com Hermann Contractus, ou Hermano Contraído ou Aleijado, que se tornou um dos maiores gênios já vistos pelo mundo.
Esse menino tão disforme, incapaz de caminhar ou de se movimentar, e consequentemente incapacitado para qualquer estudo, nasceu no dia 18 de julho de 1013 em Altshausen, na Alemanha.
Diante de condições tão desfavoráveis, não sabendo como lidar com o filho, seus pais resolveram entregá-lo aos sete anos de idade aos cuidados dos monges beneditinos do mosteiro de Reichenau [foto ao lado], na ilha do mesmo nome, no lago de Constança, onde possuíam um orfanato para meninos. Naquela época de fé, os monges receberam o infeliz Hermann com compaixão e amor, por verem nele uma criatura de Deus.
Comenta o site espanhol Religion em libertad, do qual extraímos esta matéria: “Em qualquer civilização não cristã, de qualquer época e latitude, uma pessoa como Hermann teria sido eliminada, ou não teria nascido. Por que seus pais decidiram não eliminá-lo? Por que os monges de Reichenau decidiram não eliminá-lo? Por que ele, nas dramáticas condições de dor física em que vivia, não pediu para ser eliminado? Mons. Luigi Giussani assim nos explica: ‘Porque para ele Deus era incomensuravelmente mais pertinente e existencialmente mais vivo do que para nós. Só Cristo dá um sentido de Deus tão concreto, poderoso, incisivo, dominante e apaixonante’. Sim, só Cristo dá. E uma sociedade que renega este aporte não é uma sociedade mais evoluída ou mais moderna. É apenas uma sociedade mais pobre e mais cínica”.
Como reagia Hermann à sua quase total paralisia à medida que crescia? Esse aleijado não era um revoltado contra a sua sorte, contra o mundo e contra todos, como se poderia supor em nosso mundo igualitário, mas, por meio de sua profunda fé, aceitava com espírito sobrenatural o quinhão que a Providência lhe reservara, sabendo dar um sentido à sua existência apesar das dificuldades cotidianas decorrentes de uma dor física que lhe causava um sofrimento contínuo. Por isso era uma pessoa alegre, afável, mansa, humilde e acessível; em resumo, era feliz em meio a todas suas limitações.
Quando os monges começaram a lhe ensinar as primeiras letras, perceberam que Herman possuía uma inteligência muito acima da média, o que o levava a aprender a ler e escrever com facilidade. Então o fizeram estudar. Aprendeu latim, grego e árabe e se tornou perito em várias ciências. Fez-se monge aos vinte anos e passou o resto de sua vida na Abadia que o acolhera.
Desdobrando-se em solicitude, os bondosos monges haviam construído para ele uma cadeira transportável que lhe permitia ser levado para onde necessitasse. Nela, entretanto, devia permanecer sempre em uma posição, pois qualquer movimento lhe era doloroso.
As limitações de Hermann não o impediram de escrever numerosos livros, entre eles o Chronicon, onde compilou pela primeira vez os eventos desde o nascimento de Cristo até o tempo em que vivia, quando esses dados estavam espalhados em diversas crônicas. Ele os ordenou de acordo com os anos da era cristã. Um de seus discípulos, Bertoldo de Reichenau, continuou o trabalho.
Hermann escreveu também obras espirituais dedicadas a religiosas e sacerdotes; tratados sobre a ciência da música; diversas obras sobre geometria e aritmética; as gestas de Conrado II e de Henrique III; compôs o Ofício litúrgico de alguns santos (São Gregório Magno, Santa Afra de Augusta, Santos Gordiano e Epímaco e Wolfgang de Regensburg). Além disso, escreveu sequências sobre a Virgem Maria, a Cruz e a Páscoa.
Quando no final da vida ficou cego, Hermann começou a escrever hinos religiosos, tanto a letra quanto a música, a mais conhecida das quais é asublime antífona Salve Regina (Salve Rainha). Compôs também a letra e música da Alma Redemptoris Mater, que uma alma bem formada não pode ouvir sem profunda emoção.
Comenta Religion en Libertad: “Enquanto compunha o canto da Salve Regina e escrevia o verso gementes et flentes in hac lacrimarum Valle (gemendo e chorando neste vale de lágrimas), Hermann se referia também ao sofrimento que lhe causava sua própria condição física. É incrível que um dos raros hinos que sobreviveram à reforma litúrgica post-conciliar, e que ainda se canta nas igrejas há mais de mil anos, seja precisamente composto por um tetraplégico, um incapaz, uma pessoa que a mentalidade de hoje definiria como ‘indigna de viver’; mais ainda, inclusive ‘indigna de nascer’, e que, com toda probabilidade, na sociedade atual, seria abortada. O fato de que se continue a cantar há mais de um milênio a Salve Regina parece realmente uma dádiva de Deus”.
Alguns anos depois, o célebre abade de Claraval, São Bernardo [quadro ao lado], ouvindo essa suave antífona enquanto entrava na catedral de Speyer, na Alemanha, extasiado, ajoelhou-se três vezes, exclamando em cada uma delas: Ó clemens, Ó pia, ó dulcis Virgo Maria! Essas exclamações foram acrescentadas à oração Salve Rainha, completando-a com chave de ouro.
Entretanto, o campo no qual Hermann mais revelou a grandeza de seu gênio foi o da astronomia. São dele dois dos mais importantes tratados sobre o astrolábio, o De Mensura Astrolabii e o De Utilitatibus Astrolabii, com instruções para a construção desse aparelho, na época grande novidade na Europa. Essas obras lhe valeram o epíteto de Prodigium saeculi (milagre do século). Sua fama fez com que o Imperador Santo Henrique III e o Papa Leão IX fossem visitá-lo no mosteiro de Reichenau.
Continua Religión em Libertad: “Dizia Giussani: ‘Como pode uma existência de sofrimento tornar-se tão rica e amável? Essa energia conferida pela adesão à realidade última das coisas permite utilizar também o que o mundo que nos rodeia considera inutilizável: o mal, a dor, o cansaço de viver, a incapacidade física e moral, o aborrecimento, inclusive a resistência a Deus. Tudo pode ser transformado e mostrar maravilhosamente os efeitos de sua transformação quando se vive em função da realidade verdadeira: se ‘se oferece a Deus’, como reza a tradição cristã. Oferecer a Deus qualquer miséria é o contrário da abdicação, de uma aceitação automática, de uma resignação passiva; é o vínculo, afirmado de maneira consciente e enérgica, da própria particularidade com o universal’. Hermann soube ser uma testemunha luminosa dessa transformação em seu oferecimento a Deus com uma serenidade que causou assombro entre seus contemporâneos”.
Esse gênio santo e sofredor entregou sua bela alma ao seu Criador no dia 24 de setembro de 1054, com apenas 41 anos de idade. Seu fiel discípulo Bertoldo assim descreve seus últimos dias: “Quando, afinal, a bondade amorosa do Senhor se dignou libertar sua santa alma da tediosa prisão do mundo, ele teve uma pleurisia, e sofreu durante dez dias uma grande dor’. Em seu leito de morte, Hermann consolou seu discípulo, que o velava triste, com estas últimas palavras: ‘Não chores por mim, meu amigo. Sente-te feliz e contente com meu destino. Pensa cada dia que tu também terás que morrer, e esforça-te para estar sempre preparado para esta eventualidade, e reflete sobre tua última viagem, porque não sabes nem a hora nem o dia que me seguirás, a teu queridíssimo amigo Hermann’. Dizendo isto, expirou”, após ter recebido a Sagrada Eucaristia.
Embora tivesse sido imediatamente venerado como santo, o culto a Hermann Contractus só foi oficialmente confirmado pela Igreja em 1863, quando foi beatificado pelo imortal Papa Pio IX.
Texto da Oração Salve, Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve! A vós bradamos os degredados filhos de Eva; a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei, e depois deste desterro mostrai-nos Jesus, bendito fruto de vosso ventre. Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo. |
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