Guerreiros católicos usaram o terço como arma de guerra
Em 1214, o jovem cônego Domingos de Gusmão fazia penitência pela conversão dos hereges, quando recebeu da Santíssima Virgem uma arma poderosa. Descendente de uma estirpe guerreira espanhola, cujo castelo de Caleruega é hoje um santuário, ele já ouvira na infância muitos relatos sobre a defesa militar na incessante guerra contra os muçulmanos.
As penitências e orações de Domingos num bosque perto de Toulouse, no sul da França, já duravam três dias e três noites de vigília para apaziguar a ira de Deus. Em dado momento ele desmaiou, e ao voltar a si viu Nossa Senhora escoltada por três anjos, que lhe disse: “Caro Domingos, tu sabes de que arma a Santíssima Trindade quer se utilizar para mudar o mundo?”. São Domingos respondeu: “Oh, minha Senhora, Vós sabeis bem melhor do que eu. Depois de vosso Filho Jesus Cristo, Vós tendes sido sempre o principal instrumento de nossa salvação”. Nossa Senhora esclareceu-lhe: “A principal peça de combate tem sido sempre o Saltério Angélico, que é a pedra fundamental do Novo Testamento. Assim, quero que conquistes essas almas endurecidas com a oração do meu Rosário”.
Logo essa devoção se transformou numa prática católica clássica. Rosário significa “coroa de rosas”, e São Domingos dividiu suas 150 “rosas” (ou Ave-Marias) em três partes, ou terços: a primeira contendo os mistérios gozosos; a segunda com os mistérios dolorosos; e a terceira contemplando os mistérios gloriosos. Cada mistério é acompanhado de um Pai-Nosso e um Glória ao Pai.
O milagre de Lepanto
Em 1571 o Papa São Pio V fixou a festa universal de Nossa Senhora do Rosário no dia 7 de outubro, data em que se deu a vitória naval sobre a frota muçulmana no golfo de Lepanto, na Grécia. A vitória foi atribuída ao auxílio de Nossa Senhora do Rosário, que assim atendera as preces da Cristandade nessa intenção.
Foi uma das maiores batalhas navais da humanidade. Participaram 260 galés, que ocupavam os seis quilômetros de largura da passagem. No local se reuniram 75% das naus de uma e outra religião, tripuladas por mais de 100 mil homens. Pereceram 7.500 combatentes cristãos e foram libertados 12 mil outros escravizados. Do lado dos infiéis o saldo foi de 30 mil mortos e 3.486 prisioneiros.
Naquela tarde do dia 7 de outubro o mar ficou tinto de sangue numa extensão de vários quilômetros. A vitória católica quebrou para sempre a supremacia muçulmana no Mediterrâneo, que ameaçava conquistar a Europa. No momento culminante do embate, tudo parecia perdido, mas os ventos se inverteram e os turcos começaram a fugir, pois viram aparecer no firmamento uma Senhora que os ameaçava.
Naquele momento, em Roma, a cerca de mil quilômetros de distância, São Pio V rezava o terço. Subitamente interrompeu as orações, voltou-se para os cardeais próximos e lhes anunciou uma revelação que acabara de ter: a vitória, que ele logo atribuiu à intervenção milagrosa de Nossa Senhora do Rosário.
A cobiça protestante
Entre as incontáveis vitórias de Nossa Senhora do Rosário figura outro grande triunfo naval contra três frotas protestantes holandesas unidas. O milagre se deu em 1646, durante a Guerra dos Oitenta Anos, numa série de cinco batalhas em águas das Filipinas. A frota católica constava de apenas dois antigos galeões comerciais, armados às pressas, e era tripulada por oficiais e marinheiros espanhóis e voluntários filipinos. Mais tarde seria reforçada por um terceiro galeão mexicano chegado de Acapulco, uma galera e quatro bergantins.
Naquela época as Filipinas estavam sendo evangelizadas por missionários espanhóis e mexicanos. A capital Manila era centro de um intenso comércio marítimo: naus carregadas de produtos preciosos vindos da Ásia transferiam na cidade suas cargas para comboios protegidos por naus de guerra. Durante mais de dois séculos o Pacífico foi chamado de “lago espanhol”, pois a Espanha dominava as vias navais rumo à Europa, fazendo baldeação no México. Portugal, que estava unido à Espanha na pessoa dos monarcas da Casa d’Áustria, dominava as rotas rumo à Europa, via Índia e África. O vice-reinado mexicano governava o Pacífico e formava os filhos das elites asiáticas em seus colégios, universidades, conventos e escolas artísticas. Semelhante poder ibero-americano católico, militar e comercial suscitava a cobiça das potências protestantes.
A primeira esquadra holandesa a atacar as Filipinas, comandada por Oliver van Noort, fora desfeita pela frota espanhola em 14 de dezembro de 1600. Um novo assalto em 1609 foi repelido no desastre de Playa Honda. Em outubro de 1616, outra frota holandesa, capitaneada pelo corsário Joris van Spilbergen, foi derrotada na “segunda batalha de Playa Honda”; e a frota batava teve de apelar à pirataria, na qual obteve pouco sucesso.
Juan de los Ángeles, sacerdote dominicano capturado pelos protestantes, escreveu que estes “falavam sempre na conquista de Manila”. Para tal fim, concentraram uma formidável força naval nos portos de Nova Batávia (hoje Jakarta), na ilha de Java (Indonésia) e em Formosa. Dispunham de mais de 150 barcos bem equipados com marinheiros, soldados, artilharia e provimentos. Sobressaíam 19 barcos de guerra poderosamente municiados, divididos em três frotas. Havia também barcaças com muçulmanos ávidos de fazer pilhagem e massacrar os católicos.
As Filipinas passavam por uma situação desesperadora: erupções vulcânicas entre 1633 e 1640 devastaram Manila e vizinhanças, matando muitos de seus habitantes. Aldeias de nativos foram arrasadas, abriram-se abismos nos campos, os rios alagaram cidades, a falta de alimentos paralisou a capital e os muçulmanos de Mindanao se revoltaram.
Os piratas holandeses interromperam as comunicações durante quase dois anos, assaltando os barcos que levavam socorros. O novo governador, Diego Fajardo Chacón, encontrou as Filipinas sem força naval, enquanto o novo arcebispo de Manila, Dom Fernando Montero de Espinosa, morria de febre hemorrágica logo depois de chegar. Em 1646, um grande conselho protestante em Nova Batávia julgou que era o momento propício para um ataque decisivo.
A ‘Naval de Manila’
Esse foi o momento de La Gran Señora de Filipinas, Nuestra Señora del Santísimo Rosario – La Naval de Manila. Os filipinos se referem à imagem como ‘La Naval’, atribuindo-Lhe uma intervenção tão decisiva como a de Nossa Senhora do Rosário na batalha de Lepanto em 1571. Por isso o Papa São Pio X veio a ordenar sua coroação canônica no dia 5 de outubro de 1907.
A imagem foi feita em madeira de lei, com o rosto, as mãos e o Menino Jesus entalhados em marfim por um chinês convertido ao catolicismo. É faustosamente adornada com as joias, pedras preciosas, ouro e prata doados por 310.000 fiéis. Seu modelo é o das imagens espanholas, mas possui um inequívoco charme oriental. Foi confiada aos dominicanos, que foram os primeiros missionários nas Filipinas. Os Papas Leão XIII, Pio XII, Paulo VI e João Paulo II honraram-na com privilégios pontifícios. Durante a Segunda Guerra Mundial foi transferida, por precaução, para um santuário na cidade de Quezon, onde é venerada até os nossos dias.
Intercessão da Virgem do Santo Rosário
Em fevereiro de 1646 chegaram às Filipinas alarmantes informações: barcos holandeses ocupavam ilhas próximas, visando atacar Manila. Sem naus de guerra, o governador só dispunha de dois velhos galeões comerciais provenientes do México, nos quais montou canhões retirados dos fortes. Os capitães, sem falarem entre si, fizeram o voto de peregrinar ao santuário da Virgem do Rosário com seus homens caso saíssem vitoriosos.
Os galeões foram rebatizados com os nomes de Nossa Senhora da Encarnação e Nossa Senhora do Rosário. Os dominicanos confessaram os oficiais e marinheiros e lhes deram como penitência rezar o terço em voz alta durante o combate. Enquanto os canhões troavam no mar, os fiéis faziam procissões nas ilhas, implorando a bênção divina sobre as armas católicas.
O governador-geral, Fajardo Chacón, ordenou que o Santíssimo Sacramento ficasse permanentemente exposto na capela real e em todas as igrejas da capital. Ele próprio não ficou em terra, mas partiu para confrontar a frota protestante no dia 15 de março de 1646.
À vista daqueles decrépitos galeões, os protestantes caíram na gargalhada e os apelidaram de “as duas galinhas molhadas”. Após cinco horas de combate, a fumaça dos disparos toldava o horizonte na entrada da baía. Quando ela se dissipou, a frota batava fugia com dois barcos a menos. O lado espanhol-filipino registrou danos menores, poucos feridos e nenhum morto. A primeira batalha tinha terminado.
A segunda esquadra holandesa, com sete galeões de guerra à testa, devia interceptar as naus que viessem com reforços do México. As “duas galinhas molhadas”, Encarnação e Rosário, que perseguiam a primeira frota protestante danificada, se defrontaram inesperadamente com essa frota pronta para o combate. Foi assim que no dia 29 de julho se deu a segunda batalha, resultando na debandada dos heréticos. Embora a batalha tivesse sido das mais sangrentas, o galeão Encarnação lamentou apenas dois feridos, e o Rosário perdeu apenas cinco homens. O fato é incompreensível para a contabilidade humana racionalista.
Logo depois aconteceu a terceira batalha: as frotas holandesas se rearticularam e partiram para o contra-ataque, dando-se o enfrentamento dois dias depois, em 31 de julho. Os marinheiros das “duas galinhas molhadas” ficaram pasmos ao perceber que seus canhões e mosquetes impactavam com incrível precisão. De terço na mão, um canhoneiro garantiu ter acertado 19 tiros contínuos, e bradava “Viva a Virgem!”. Quando a nau-capitã holandesa afundou, a tripulação do Encarnação clamou “Ave Maria!” e “Viva a Fé, Cristo e a Virgem Santíssima do Rosário!”.
Os oficiais atribuíram a vitória a um milagre. O general Orella “caiu de joelhos diante de uma imagem de Nossa Senhora do Rosário, na capela de sua nau, e deu graças publicamente pela vitória, atribuindo-a à intercessão d’Ela”. A frota holandesa se retirou para reparos; e a espanhola voltou a Manila, onde seus tripulantes foram a pé até o santuário de “La Naval” para cumprir o voto. Entrementes, uma galera com 100 marinheiros e uma escolta de quatro bergantins reforçaram as “duas galinhas molhadas”.
Astúcia dos devotos do Rosário
Mas os holandeses não tinham desistido. No dia 15 de setembro (quarta batalha) a modesta frota filipinense localizou a armada protestante na costa da ilha Mindoro. Após um fogo à distância, o Rosário, cercado no início da noite, não podia ser auxiliado e cessou de disparar. Os holandeses partiram então para a abordagem, mas o cessar fogo fora um ardil. Ao se aproximarem, todos os canhões católicos dispararam ao mesmo tempo, e o galeão batavo fugiu avariado.
Como o ocorrido era inexplicável aos olhos dos invasores, pelo fato de os católicos possuírem pouca pólvora e munição, eles decidiram empreender a quinta batalha. Num esforço supremo, investiram contra a nave-insígnia Encarnação. Mas o capitão usou o mesmo estratagema do Rosário no choque anterior, fingindo-se inerme. Quando a nau holandesa encostou na “nave fantasma”, os arcabuzeiros surgiram todos ao mesmo tempo e bombardearam os protestantes, que sofreram perdas pesadas e tiveram de fugir às presas.
Na galera do almirante Francisco de Esteyvar, os marinheiros remavam ao ritmo da “Ave Maria”. Apesar de só possuírem um canhão na proa e algumas colubrinas, quase afundaram um galeão de guerra. O inimigo fugiu em pânico, sendo perseguido pelas “duas galinhas molhadas” para nunca mais retornar.
Vitórias miraculosas
No dia 20 de janeiro de 1647, a cidade comemorou a vitória com uma solene procissão, Missa e desfile militar. Desde então a festa de Nossa Senhora do Santíssimo Rosário La Naval de Manila é celebrada no segundo domingo de outubro. As circunstâncias excepcionais do triunfo levaram a arquidiocese de Manila a ordenar um inquérito eclesiástico, conduzido pelo procurador geral da Ordem Dominicana, Frei Diego Rodrigues, O.P.
Após consciencioso exame, ouvidas as testemunhas, o Decano e o Capítulo da Arquidiocese de Manila emitiram declaração oficial, datada de 9 de abril de 1652, que registrou para a História: “Devemos declarar e declaramos que as cinco batalhas descritas nos testemunhos, em que dois galeões sob as insígnias católicas venceram inimigos holandeses, foram e devem ser cridas como miraculosas, e foram obtidas pela Soberana Majestade de Deus por meio da intercessão da Santíssima Virgem e por sua devoção do Santo Rosário”.
A liturgia afirma que Nossa Senhora esmagou sozinha todas as heresias. O Rosário é a devoção predileta d’Ela, portanto é também a arma da ortodoxia, da devoção pela qual esmagamos todo erro e mau espírito. Por ele derrotamos as raízes de todas as forças malignas que possam agir fora de nós, e que sempre nos movem uma luta espiritual traiçoeira. Seguindo o exemplo dos heróis de Manila, rezemos o Rosário com incansável insistência. É a lição da festa de 7 de outubro.
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Fonte: Revista Catolicismo, Nº 838, Outubro/2020