FASCINAÇÃO RECÍPROCA

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A França tem nova embaixadora no Brasil, Brigitte Collet [foto ao lado]; assume o posto em momento de dificuldades nas relações entre os dois países. Passo ao lado dos assuntos espinhosos, não têm relação próxima com o tema de que vou me ocupar. Objeto também espinhoso. As matérias rugosas precisam ser ventiladas.

A nova representante gaulesa fez saudação de praxe aos franceses residentes no Brasil. Está na rede (“Premier message à la communauté française de l’ambassadrice, Mme Brigitte Collet”). Nela, a diplomata mencionou realidade cada vez menos lembrada, a “fascinação cultural recíproca” existente entre o Brasil e a França. Vem de longe, está inscrita na história dos dois países. Só vou analisar, na fala da embaixadora, a expressão acima referida, o resto fica para outra hora, se ensejo houver.

Nada mais verdadeiro, nada mais justificável que recordar a “fascinação cultural recíproca”, campo com enorme poder evocativo. Contudo, verdade triste, não apenas é expressão cada vez menos lembrada; pior, está se apagando por causas várias o fascínio recíproco, tanto na França, como no Brasil. É tragédia sem nome, estávamos em uma aurora, ainda imersa na neblina, que, afastados os efeitos das tempestades, poderia ter dado origem a progressos autênticos.

Espiadela sobre razões do apagamento.  O deslumbramento a que alude a Sra. Collet não é (ou era) apenas cultural. Ou era cultural em acepção ampla; como André Malraux via a cultura, “herança da nobreza do mundo”; de outro modo, junção harmoniosa de altas perfeições vicejando nos vários âmbitos da vida humana. O fascínio mútuo, encarando mais fundo, era a percepção de traços de personalidade, de valor extraordinário que, pelo enlevo assimilativo, completariam os “role models” predominantes nas duas culturas.

De nossa parte, olho daqui para lá, lembrando a distinção filosófica entre ato e potência, fascinava-nos sobretudo atos, realidades já construídas; uma ou outra vez energias latentes se transformando em atos. Examinando de lá para cá, minha opinião, os franceses eram sobretudo fascinados por potencialidades que avistavam no Brasil (em especial nas pessoas com as quais entravam em contato, para ser mais preciso). Tais pessoas, em geral, ou eram de condição social privilegiada, ou eram de inteligência e cultura privilegiadas. Ou ambas. Constituíam escol, representativo do que de melhor o Brasil, país ainda muito pobre, poderia na época oferecer ao mundo. Por indução, com base em tais amostras, era possível conceber noção real, traços gerais, esboço um tanto brumoso, do que o Brasil um dia poderia chegar a ser, se, entre outros esforços, continuasse aperfeiçoando e tornasse patrimônio comum do povo os valores psicológicos e morais percebidos naqueles encontros, expressos no comportamento.

Tal realidade incipiente de enorme riqueza potencial foi destroçada quase por inteiro. Não foi só desleixo. Houve ação contra, por vezes encarniçada. Se, em vez de lançar pedras, impulsionadas por preconceitos obscurantistas, tais grupos sociais — pessoas, também — fossem, com senso das proporções, prestigiados na vida da nação, ao longo das décadas teríamos tido das mais benéficas e produtivas iniciativas de inclusão social. Uma política autenticamente popular, e sem gastar um tostão do erário nisso. Por contato e admiração, círculos cada vez mais amplos, de forma gradual, partilhariam, ainda que de maneira diferenciada, tais maneiras de ver a vida, de grande potencial de ascensão (fonte de fascínio de estrangeiros que viviam no Brasil, em particular de franceses) florescentes então em particular em ambientes pequenos.

Nada ou quase nada disso aconteceu. Tais grupos informais — moldados por valores, percepções delicadas, modos de viver próprios —, repito, foram sufocados pela desatenção geral, quando não objeto de mofa e desprestígio. Surgiram outros “role models”, ocuparam a cena, relegando os anteriores, como velheiras inúteis, aos desvãos não frequentados das casas.

E era em tais grupos, ilhas no interior dos mundos da cultura e da sociedade educada, que latejava mais forte o fascínio pela França. Em direção contrária, ali em geral estava mais brilhante a origem do fascínio que o Brasil exercia na França. Fascinação recíproca, lembrou a embaixadora. Restam fiapos.

Em vez da subida em número e qualidade de setores autenticamente representativos e da ascensão popular generalizada, disse atrás, novos “role models” dominaram, postiços e caricatos, e com eles se impuseram socialmente em grande número de casos desigualdades desagregadoras e igualitarismos atrofiantes. Primarismos, boçalidades, má educação, incompreensão da vida, quando não a imoralidade solta, em boa parte são marcas distintivas dos primeiros lugares nas cenas pública e social do Brasil de hoje. Basta observar o que vemos e comparar com o que tivemos como figuras de expressão. São marcas da opção preferencial pelo atraso.

“Até o século XIX o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar uma cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. […] Descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. […] Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas. […] Os idiotas vão tomar conta do mundo […] O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota” (Nelson Rodrigues). Aconteceu no Brasil, restam fiapos dos ambientes de inundados de simplicidade, finura de percepção e cultivo da educação, onde desabrochavam pessoas com possibilidades de orientar a sociedade e encantar quem nos visitava. Contrastam com tantos homens de relevo do Brasil contemporâneo, figuras grotescas, toscas, contrafações popularescas ou arrogantes do que outrora houve, ainda que em ambientes limitados. Quase diria, uma bênção que evolou deixou no lugar maldição cuja fedentina se entranha em tudo.

Vou dar um exemplo notável de traços do Brasil de outrora (já tenho aludido a ele) que hoje impulsionariam avanços civilizatórios, escolhido entre vários, mas já enterrado na história. Postas as condições atuais, não mais acontecerão, desapareceram os ambientes em que nasciam e se firmavam. Vem de Fernand Braudel (1902-1985) [foto ao lado], muitas vezes considerado o maior historiador francês do século passado. Morou no Brasil entre 1935 e 1937, lecionando na então recém-fundada USP. Conheceu e privou com muitos brasileiros, parte deles intelectuais de expressão, estudou autores nacionais, imergiu na vida intelectual do país. Não só isso. Frequentou casas de família, ouviu observações de pessoas de todas as condições; de outro modo, escutou as palavras e delas percebeu o tom e os entretons. Viajou. Sentiu o calor, o perfume e a cor da sociedade brasileira; sua realidade e seu passado profundos. Ao lado da instrução, veio o embebimento, a educação por osmose.

Em simpósio sobre sua obra, realizado em Châteauvallon, 1985, ano do falecimento, explicou Fernand Braudel: “Eu me tornei inteligente indo ao Brasil. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida eu passei no Brasil”. Em outra ocasião, meses antes, na Academia Francesa, afirmou: “O Brasil foi o grande período de nossas vidas”. Ainda, “eu me tornei menos banal [no Brasil]”. Constatou agradecido, “foi no Brasil que me tornei o que sou hoje”. Sua grande obra foi “La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II”. Dela disse: “Não creia que eu teria escrito sobre o Mediterrâneo um livro diferente dos outros, se eu não tivesse estado antes no Brasil”. Perguntado sobre o significado de se ter tornado inteligente no Brasil, respondeu sorrindo: “Talvez tenha sido porque lá eu aprendi a ser feliz”. Claro, em boa medida, é força de expressão dizer que se tornou inteligente no Brasil, utilizada para ressaltar com mais força a gratidão sentida pelo fato de a frequentação de ambientes nacionais lhe ter aberto horizontes mentais decisivos para sua vida intelectual.

Tendo como fundo as palavras de Fernand Braudel, é melancólico constatar, fechou-se um horizonte para nós, perdeu-se inconsideradamente ativo importante. Não haverá um Braudel 2. Por razão simples: mudaram os ambientes de formação, o principal dos quais era o interior das famílias, e com isso o Brasil perdeu uma de suas mais importantes características, digamos assim, nas pegadas do historiador francês, a de fazer os outros mais inteligentes, motor de progresso real. Seria possível recobrá-la? Sem dúvida. Duas palavras a respeito. A primeira coisa, lamentar a perda. Suporia reatar com aspectos do passado, um meia volta volver; quase uma ressureição. Para tal, pedir a Deus, claro. E ainda conhecer direito o que terá encantado tanta gente, pôr de lado contrafações. Daí, ambientes domésticos, comportamentos e “role models” renovados. Outro título para o artigo: brado de afeto e angústia.

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