Requinte e santidade no trato Plinio Corrêa de Oliveira Santo do Dia, 18 de dezembro de 1965 | |
Hoje é a festa da expectação da Bem-Aventurada Virgem Maria de que tratamos ontem. O próximo santo é um santo tão de importância para todos nós: São Tomé Apóstolo. Mas está muito longe para falarmos qualquer coisa a seu respeito. De maneira que peço que me sugerirem algum tema. Não sei se alguém sugere algum tema que eu possa tratar.Finura e santidade no trato? Está bom, pode-se falar.O Papa Pio XII recebe o Conde Wladimir d’Ormesson, que foi embaixador da França junto à Santa SéPara a gente entender as relações entre finura no trato e santidade, a gente tem que saber bem o que é trato, e o que é finura. Oxalá a gente soubesse o que é santidade…O trato é propriamente uma coisa toda ela externa; ao menos no sentido mais imediato, e é um conjunto de fórmulas por onde expressamos para com os outros a nossa atitude de espírito interior.O trato envolve dois elementos: em primeiro lugar uma conduta e depois maneira. Por exemplo, há um modo de tratar que não é apenas feito de maneira, mas é feito de elevação de espírito. É quando se sabe por exemplo tratar os outros com benignidade, ou com força, ou com fidelidade, ou com nobreza, ou com qualquer outra coisa nessa linha. Isto não é bem exatamente igual à maneira. Por exemplo: um amigo deve dinheiro a outro amigo. O modo pelo qual esta relação de crédito e débito se desenvolve, é algo que diz respeito ao trato. Em que sentido? Quer dizer é um lidar de um com o outro em torno de uma situação naturalmente tensiva. E que é capaz de ser mais elevado, menos elevado, mais generoso, menos generoso, independente das maneiras de cortesia que nesse trato se empregam.As maneiras de cortesia são as fórmulas, as atitudes do rosto, as atitudes das mãos, é a linguagem, atitude toda da pessoa etc., etc., que é por assim dizer um elemento secundário e extrínseco do trato.Acontece que a santidade necessariamente conduz a um trato muito elevado no primeiro sentido da palavra, que é o sentido fundamental da palavra, quer dizer o trato no seu aspecto profundo. Uma pessoa que é santa – pelo fato de ser santa, porque a santidade é a raiz de toda a conduta perfeita em relação aos outros – possui uma conduta e um trato exemplar. E então relaciona-se com os outros com toda a distinção, esmero, respeito, sabendo-o dosar conforme as circunstâncias o exigem, indo até um trato com toda a energia. Então a santidade é coincidência, nessa matéria, com a perfeição do trato.Pode haver pessoas não santas que tenham um trato bom? No sentido profuso da palavra “trato”, pode haver pessoas não santas que tratem os outros eximiamente? Pode haver quando há uma grande tradição de civilização católica, a qual não morre de um momento para o outro. E se bem que a moralidade possa cair muito rapidamente, a tradição do trato ainda continua.Usando uma imagem que São Pio X aplicava a outro assunto: podemos pôr rosas num jarro de tal sorte que este possa se impregnar do perfume delas e continuar até depois de serem retiradas do jarro. Assim também certo cavalheirismo, certa fidalguia de trato – no melhor e mais profundo sentido da palavra – pode subsistir como uma tradição católica num ambiente que já é muito pouco católico, que não é mais católico, onde já se apostatou.Por exemplo, algo da nobreza de trato de certos lordes ainda é uma remota tradição do tempo que a Inglaterra era católica. Mas é uma coisa que vai morrendo. E esse exibido que será muito elegante no trato em matéria de dinheiro, de repente é muito deselegante em dinheiro mesmo. Ou se não for em questão de dinheiro, é em matéria de adultério, ou de qualquer outra coisa. De maneira que ele, por exemplo, julgará que é um defeito de trato ir à casa de um amigo e roubar a colherinha do amigo, mas não acha que é um defeito de trato entrar em casa do amigo e roubar a esposa do amigo…!Quer dizer, são tradições que ficam meio hirtas, mas são duradouras e que têm uma vida toda ela artificial, assim como o que ameaça morrer… e que acaba morrendo mesmo!De maneira que a finura de trato – nesse sentido profundo da palavra – quando cessou o estado de graça, é como uma trepadeira da qual a gente corta a raiz. Pode ainda, durante algum tempo, algumas flores que continuam a desabrochar; pode haver, portanto, uma ilusão de vida naquela trepadeira. Mas é uma post vida. Aquilo morre mesmo. Porque de onde foi tirado o verdadeiro amor de Deus não pode haver amor dos homens verdadeiro. E onde não há amor de Deus nem amor dos homens, o trato – neste sentido elevado da palavra – evidentemente é uma coisa que tem que desaparecer. Está condenada a morrer.Há símbolos na natureza magníficos nessa linha. Falaram-me que em certos cadáveres a barba ainda cresce um pouquinho. É um resto de desenvolvimento vital numa coisa que está morta. Assim também pode haver aparente florescimento de maneiras, numa civilização já morta. Sob um certo ponto de vista apenas, podemos dizer que o trato continua esplêndido na Europa cristã, aristocrática e ocidental até há pouco (essa reunião é de 1965, n.d.c.). Mas é uma coisa toda ela defectiva, errada, tendente a cair. É um resto de uma coisa magnífica que tinha existido.Qual a diferença entre trato e maneira?As maneiras são um conjunto de fórmulas, de gestos, de atitudes, que têm muito de natural, mas algo também de arbitrário, de convencional, pelas quais os povos chegam, por um consentimento geral, a exprimir os seus estados de espírito e o seu bom trato. Então os povos podem ser muito virtuosos antes de terem maneiras perfeitas. Eles então têm um trato muito elevado e têm maneiras apenas suficientes, com um resto de barbárie pode ser até. Não com selvageria, mas com um resto de trivialidade, um resto de banalidade, com uma falta de elegância, que afinal de contas pode ser que exista.Um santo por exemplo pode, portanto, ter menos boas maneiras do que um outro que não é santo.As maneiras são elaboradas lentamente pelas civilizações. Elas são o produto de toda uma sociedade. E a relação que existe é sempre a seguinte: a perfeição no trato acaba gerando ao longo do tempo maneiras esplêndidas. As maneiras esplêndidas são, portanto, uma espécie de fruto mais remoto do trato. E, portanto, um fruto um pouco mais remoto ainda da virtude. Mas elas são também fruto da virtude, e vivem necessariamente só da virtude. De maneira que se não houvesse virtude, as maneiras seriam também muitíssimo inferiores. E quando a virtude morre, o trato vai se deformando, as maneiras ainda continuam. Porque é uma coisa mais externa, mais material e cujo desaparecimento se nota mais e choca mais.Temos civilizações – por exemplo da França nas vésperas da Revolução – com maneiras requintadíssimas, mas indicando já algo que ia cair e morrer.Então, o trato decorre imediatamente das virtudes. As maneiras decorrem necessariamente das virtudes porque decorrem do trato, mas não decorrem imediatamente quanto às maneiras requintadas e esplêndidas, que são fruto de uma civilização.É claro que uma pessoa assim como pode ter bom trato em alguns pontos e não ter virtude, a fortiori pode ter boas maneiras e em alguns não ter virtude. É um elemento que desaparecerá depois com o tempo.Eu gostaria, para terminar, de dizer apenas o seguinte: o histórico das civilizações se fosse bem feito mostraria que as maneiras perfeitas só existiam como fruto da civilização católica, e que antes disso não houve maneiras perfeitas em tudo. Havia povos cujas aristocracias, sob alguns aspectos, tinham maneiras excelentes. De baixo de algum ponto de vista até insuperáveis. O povo chinês, por exemplo. Mesmo romanos, gregos etc., sob alguns pontos de vista tinham um Direito bom e uma arte boa, uma cultura e uma literatura boa etc. Mas é apenas debaixo de algum ponto de vista e nunca com a elevação que as coisas atingiram sob o influxo da civilização católica.Os senhores considerem um banquete romano, por exemplo. A gente fala de civilização romana, civilização clássica… Um banquete romano: os convivas todos deitados naqueles declínios comendo e bebendo à “tripa forra”, mas de um modo indecente, com uma gulodice sem igual. E embriagando-se a tal ponto de serem levados para fora da sala. Quando algum se sentia — a expressão é muito prosaica, mas afinal temos que empregar — se sentia cheio demais, levantava-se e ia para as salas contíguas, onde havia escravos que tinham a habilidade de provocar, por meio de penas, cócegas no paladar da pessoa que tinha comido demais. E assim a pessoa restituía tudo o que tinha comido e tudo o que tinha bebido. Daí vinham escravos com vasilhas, água, a pessoa lavava a mão e se queria, secava a mão na cabeça do próprio escravo que servia de toalha… Compreendem que o escravo ficava emporcalhado de toda espécie de porcaria.Imaginem a cena nos seus pormenores: o glutão ou a glutona de boca aberta e o escravo com as cócegas: e não vai, e não vai, a ânsia etc., afinal há a explosão gástrica… Para ele o relógio anda de um lado para o outro, e agüenta e, sustenta, pára, disparos de coração… Afinal equilibra-se o monturo. Ele arfa mais um pouco e volta cambaleando para comer. “Traga um leitão!” E recomeça aquilo…Quer dizer, isto é maneira? O festim terminava em geral com orgia no jardim e na manhã, quando os escravos que não tinham servido à noite vinham para pôr em ordem as coisas, entrava até terra na boca daqueles convidados que tinham comido as comidas mais excelentes e imagináveis naquele tempo, como por exemplo pirâmides de línguas de papagaio…Os senhores compreendam o que isto representa em matéria de maneiras. Isto é o horror em matéria de maneiras. Eu poderia citar cem outras coisas em cem espécies de civilizações…Uma palavrinha – e com isto termino – sobre a falta de maneiras que há pelo Brasil. No que ela consiste? Numa espécie de acanhamento e de bobeira por onde toda a fórmula polida, todo o dito elegante, interessante, toda a atitude gentil é substituída por uma espécie de acolhida do gênero seguinte: “Bom dia! Senta?” Depois segunda pergunta: “Quer café?”, e perguntado com a esperança de que não queira nem sentar nem café, para que não dê amolação… O sujeito diz: “Ah! Quero sim! Então hein? Como vai a Chica?”…Frieza total e recíproca. Isto tudo é feito de um desbotamento de alma o qual tem uma raiz moral, que por sua vez tem uma raiz religiosa.Há gente que mora junto ao mar e o que nele vê?… Um deposito de peixes, que tem o inconveniente de se mover porque se fosse tudo parado, era o “ideal” para ele. Alheio ao significado de todas as coisas, apenas se preocupando em comer aquele peixinho com uma farinha vagabunda que come, e gozando aquela vidinha que está ali…Aquilo é uma falta – em última análise – de amor às coisas grandes, que resulta de uma falta de amor de Deus.Ipê em Congonhas do Campo (Minas Gerais – foto Paulo R. Campos)Por exemplo, os ipês. Alguém me disse que conhece um ipê numa cidade brasileira que é uma verdadeira maravilha! Todo o mundo passa e nem olha… Podia em baixo fritar pipoca e encher o chão de pipoca, o que quiser que não tinha importância nenhuma. Se um belo dia cortarem o ipê também não tem importância. A única coisa que tem importância é a eleição do vereador e a politicagem… Maneiras pocas, trato poca: resultado da tibieza…Aqui tem um comentário sobre a santidade e a fineza. |
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