Naquela manhã de 1º de março de 1858, a pequena Bernadette retornara à gruta de Massabielle, atendendo ao pedido da Dama vestida de branco, que tanto a atraía. Apesar das admoestações dos parentes e de proibições das autoridades locais, uma moção íntima irresistível a impelia.
Desconsiderando também as interdições, muitas pessoas do povo acorreram ao local. Nada tinham visto até então, mas algo lhes patenteava a presença do sobrenatural. A perfeita ordem reinante na multidão, a serenidade nas fisionomias, o claro sentimento de compunção pelos pecados e uma viva inclinação à piedade eram sinais de que não se enganavam.
Deixemos o relato do episódio[1] para uma testemunha ocular dessa que foi a décima segunda das aparições da Virgem de Lourdes:[2]
“Fui testemunha, nesse dia, de uma grande manifestação de entusiasmo religioso. Bernadette voltava do seu lugar sob o rochedo. Ao ajoelhar-se de novo, tirou como de costume o rosário da algibeira; mas no momento em que seus olhos se dirigiam para a sarça privilegiada, seu rosto entristeceu-se. […]
“Com uma expressão de surpresa, ela ergueu o rosário e o mostrou, estendendo seu pequeno braço […]. Houve um momento de expectativa. Subitamente ela devolveu o rosário ao seu bolso. Em seguida tirou outro, agitou-o e elevou-o à altura do primeiro. A surpresa desapareceu de sua face. Saudou, sorriu de novo e recomeça a rezar.
“Num movimento espontâneo, toda a gente agitou os rosários. Gritou-se ‘Ave-Maria!’, e todos se ajoelharam e rezaram com lágrimas nos olhos”.
O sorriso cativante da vidente, seu rosto transfigurado, todo o conjunto de sua atitude eram a prova mais cabal da realidade das aparições.
Adversários não perdem ocasião para caluniar
Não faltavam, contudo, adversários daquela manifestação sobrenatural. Aparentando estar movidos por uma ‘sábia prudência’, propagaram o boato de que nesse dia Bernadette benzera os rosários das pessoas presentes. Entretanto, tratava-se de um boato sem consistência, pois no mesmo dia a vidente explicou o sentido próprio daqueles seus gestos.
Uma costureira de Lourdes, de nome Pauline Sans, muito fraca para poder descer à gruta, apresentara-se a Bernadette para lhe pedir um grande favor: que utilizasse o seu próprio rosário para rezar diante da gruta. Bernadette contou depois ao vigário de Lourdes, Padre Pène, e à irmã deste, Jacquette: “Prometi-lhe que o faria, e assim aconteceu. Quase no fim da aparição, a Senhora perguntou-me onde tinha eu o meu rosário. Respondi-lhe que estava no meu bolso. Disse-me ela então: ‘Mostra-me’. Tirei o rosário e o mostrei, segurando-o no ar. A Senhora disse-me: ‘Serve-te dele’. E eu o que fiz imediatamente”.
Após uma explicação tão límpida, mas ainda contrariado pelo boato que começava a correr na cidade, Padre Pène interrogou-a: “É verdade que benzeste os rosários esta manhã na gruta?”. Esta pergunta do vigário evidenciava seu zelo pela ortodoxia. Pois, conforme a resposta, ele teria mais um importante indício para medir a autenticidade das aparições.
Atitudes “progressistas” opostas à ortodoxia católica
O vigário de Lourdes, na sua missão de sustentar na Fé o rebanho de almas a ele confiado, preocupara-se em que a atitude da vidente levasse ao falseamento de uma doutrina desde sempre ensinada pela Igreja. Com efeito, se Bernadette tivesse efetivamente “benzido” os rosários das pessoas presentes, estas, levadas pela santidade que nela viam, teriam se afastado da ortodoxia por sua “crendice”. Era louvável naquele sacerdote, portanto, o zelo pela preservação da Fé.
Nos atuais tempos conturbados, no entanto, vem-se esvaindo esse zelo pela ortodoxia. Os inimigos da Igreja não perdem ocasião para difamar e caluniar a Igreja, recorrendo para isso a qualquer motivo ou pretexto que apareça. Dentro da sua mentalidade perversa, essa perversidade se torna natural, pois querem destruir os fundamentos da Religião verdadeira. Mas não são estes os inimigos que mais nos preocupam, e sim os inimigos internos, empenhados na autodemolição da Igreja. Abordaremos a seguir alguns exemplos desse satânico esforço.
Os grandes meios de comunicação se comprazem em noticiar uma “iminente” mudança da Igreja em face dos pretensos clamores pelo sacerdócio feminino. E os ambientes progressistas, ao mesmo tempo em que dão azo à fermentação da mídia, procuram aproveitar a onda assim criada.
Exemplo característico é o chamado “Caminho Sinodal Alemão”. O escândalo inicialmente causado pela agenda de debates foi tão grande, que se chegou a falar em cisma. Os mentores daquela série de encontros episcopais tentaram tranquilizar os temerosos, afirmando que a doutrina não seria em nada mudada. No entanto, os resultados parciais que vão pululando no noticiário só fazem consolidar os temores.[3]
Outro exemplo foi a famigerada “candidatura” de uma teóloga francesa ao arcebispado de Lyon.[4] Embora tenha parecido aos católicos sensatos ser mais um sonho utópico, digno da lata de lixo da História, no entanto serviu para criar algo que podemos classificar como um ‘ponto de mira’, em função do qual os radicais pretendem se mobilizar. Eis aí uma típica concretização da tática revolucionária que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira denunciou em sua obra mestra Revolução e Contra-Revolução:
“Dir-se-ia que os movimentos mais velozes [da Revolução] são inúteis. Porém, não é verdade. A explosão desses extremismos levanta um estandarte, cria um ponto de mira fixo que fascina pelo seu próprio radicalismo os moderados, e para o qual estes se vão lentamente encaminhando”.[5]
Alguns desses radicais têm mais pressa, e não esperam que a utopia venha até eles. Já começam a praticar um arremedo de missa oficiada por leigos; e, como não poderia deixar de ser, também por leigas. Isso já tem acontecido na Suíça.[6]
Como se pode ver, o zelo pela ortodoxia é mais necessário do que nunca, pois as investidas do erro são cada vez mais ostensivas, mais destruidoras. E não se limitam aos adversários externos, exercem sua obra nefasta no cerne das suas benditas fortalezas.
Não poderia provir de Santa Bernadette algo que violasse a ortodoxia católica, e a pergunta do sacerdote zeloso precisava ser respondida: “É verdade que benzeste os rosários esta manhã na gruta?”. Com retidão de alma e seu sorriso franco, ela não vacilou: “Oh! Não! As mulheres não usam estola”.
Eis o veredicto da santidade, pronto para ecoar por todos os séculos, enfrentando com sua singeleza todos os ardis do pai da mentira e de seus sequazes — externos, mas principalmente internos.
[1] Para um relato do conjunto das aparições, cfr. Catolicismo nº 686, fevereiro de 2008.
[2] Trochu, Francis – Bernadette Soubirous. Cultor de Livros, São Paulo, 2016. Todos os trechos citados neste artigo são extraídos dessa obra, na página 218 e seguintes.
[3] Cfr.http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603849-do-cardeal-marx-a-monsenhor-baetzing-quem-lidera-a-virada
[4] Cfr.https://www.religiondigital.org/mundo/teologa-francesa-candidata-Barbarin-Lyon-mujeres-obispos-clericalismo-patriarcado-abusos-francia-iglesia_0_2235076475.html
[5] Revolução e Contra-Revolução, Parte I, Cap. VI, 4-C.
[6] Cfr.https://brujulacotidiana.com/es/todos-a-la-misa-con-anita-y-karin-asi-es-la-liturgia-independiente