Péricles Capanema
Bênçãos desprezadas. São uma bênção, para si e para os próximos, os olhares que divisam o remoto na neblina do futuro. Desvelam a via e assim preparam os caminhantes contra adversidades. Contudo, é a realidade, em geral, são menosprezados. Pois cansam, podem parecer falta de senso prático. Espiar 10, 20 anos à frente? Para quê? A percepção voltada ao imediato, pelo contrário, distrai, às vezes reflete senso do real. Como não se fatigar da vista fixada longamente no horizonte, e então procurar o necessário repouso nas coisas próximas? O remanso também é necessário. Pode restaurar forças, pode dispersar. O gracioso é nutrimento da vigilância varonil; o vulgar é seu tóxico. Quem se enchafurda no vulgar, criará anticorpos e recusará espiar o horizonte carregado.
Advertência histórica. Com sua reconhecida competência, o Prof. Roberto de Mattei escreveu erudito e esclarecedor artigo sobre o conde Joseph de Maistre (1753-1821) [foto acima], um dos maiores pensadores contrarrevolucionários do século XIX — está na rede o trabalho. Não pretendo aqui glosar aspectos levantados pelo mencionado estudo. De fato, tudo no texto me chamou a atenção, mas quero destacar ponto crucial, em geral subestimado, que vale para todas as épocas.
Joseph de Maistre foi enviado em 1802 pelo rei da Sardenha, Vitor Emanuel I, como embaixador junto ao czar Alexandre I. Na Rússia viveu 14 anos, deixou-a em 27 de março de 1817, lá concebeu boa parte de sua grande obra intelectual. Consciencioso, além de avançar nas tarefas de pensador, enviava informações pormenorizadas e análises agudas a seu soberano, que entretanto, misérias da vida, irritava-se com elas. Não pelo conteúdo que certamente reconhecia denso, mas pelo esforço intelectual que dele solicitava. Grandes demais, graves demais, profundas demais; não lhe caíam bem, queria coisa mais leve, tangível, vida mansa, enfim. Aristocrata da alta nobreza, família real antiga, aparentava-se em espírito com o Jeca da conhecida canção: “Êh vida marvada, num dianta fazê nada, e pruquê si esforçá, se não paga a pena trabaiá”. E aí, fugindo do esforço, seus frutos seriam também os que amealhava o desidioso Jeca: “De manhã cedo eu óio pra rocinha; Pra ver se as veiz nasceu quarqué coisinha; Mas qual o quê, num nasceu nada não; Prantando nasce, mas num pranto não”
O amigo angustiado. Certamente, de todos os embaixadores da Sardenha, era o mais amigo do rei; aquele que não pretendia distrai-lo, mas se esforçava em contribuir para sua formação e governo. Que enxergasse longe, avistasse através da bruma as sombras ameaçadoras do porvir. Enfim, era a pessoa cujos conselhos poderiam salvar o trono, manter a honra da dinastia, evitar desvios nos quais se meteu. Poderiam ainda influir de forma favorável no Congresso de Viena, para o qual Vitor Emanuel I não o escolheu, todavia, como seu representante.
Transcrevo parte do artigo:
“A observação de Alphonse de Lamartine, segundo a qual ‘teria sido impossível encontrar o conde Joseph de Maistre sem imaginar que se estava a passar diante de algo grande’, entende-se bem folheando os despachos que o representante do Rei da Sardenha na corte dos Czares enviou a seu soberano (cf. Joseph de Maistre, Napoleone, la Russia, l’Europa, Donzelli, Roma 1994). Pelos despachos de Petersburgo, acompanhamos, passo a passo, o avanço de Napoleão, num jogo em que ‘está em aposta o mundo’. Mais que despachos, trata-se de amplos relatórios, ricos em observações eruditas e profundos aforismos, não compreendidos por Vítor Emanuel I, honesto mas de medíocre inteligência, que, por meio do seu primeiro escudeiro, fez chegar esta mensagem a seu ministro em Petersburgo: ‘Pelo amor de Deus, diga ao conde de Maistre para escrever despachos e não dissertações!’”.
Da Sardenha para o Brasil. Agripino Grieco (1888-1973), crítico ferino, mas certeiro; certa vez observou: “O pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente”. Tem razão, divisar o ruim que irromperá a bem dizer necessariamente, destrói amizades, possibilidades de carreira e de convívio. E é sina corriqueira de quem tem o que às vezes foi chamado de olhar de lince; e, impulsionado pela lógica, não foge das conclusões, mesmo das mais duras.
Por que comento tudo isso? Não parece distante? Não é. Em retrospectiva. A Casa de Savoia teve percurso conturbado, em especial no século XIX, liderou o movimento de unificação da Itália, colocou-se contra os Papas. Manchou-se, com a invasão de Roma o rei foi excomungado por Pio IX, situação que se manteve por 60 anos. Acabou despojada de todos os seus domínios. É conjeturável, outra teria sido sua história, da Itália e até mesmo da Europa, se Vitor Emanuel I tivesse dado ouvidos aos despachos que recebeu de Joseph de Maistre, e os utilizasse para formação do espírito e valioso subsídio político. Constituiu fato aparentemente pequeno e desimportante (não era), despercebido por quase todos, mas exigia esforço e ajuste de vistas. O soberano preferiu a maciota, apoiar-se molemente em opiniões cômodas, a tragédia engoliu seus descendentes. Em prospectiva. Brasileiros de espírito objetivo estão advertindo sobre a gravíssima situação do país, sobre necessidade de medidas duras; enfim, sobre ser imperativa a seriedade na percepção dos horizontes. Em resumo, fuga da mentira, da conduta cafajeste, da inconsequência e da irresponsabilidade. O preço a ser pago será alto, se a superficialidade agora impedir rumo certo. As advertências poderão cair no vácuo. Mas ainda há tempo, não repitamos Vitor Emanuel I e tantos outros. Mais proximamente, escapemos de hábito generalizado em Pindorama: “Se o sór tá quente a gente arruma a rede; Garra a viola presa na parede; Acende o pito, cospe e passa o pé; E deixa a vida como Deus quisé”. Deus não quer.