Truque do menino pescador. Quando menino, pesquei um pouco, ia em geral até o rio (ou ribeirão) com tio meu. Descobri logo um ardil: procurava os remansos, locais onde a água fica calma, corre menos, dá impressão de parada. Peixe gosta de remanso. Jogava o anzol, a pescaria rendia. Existem peixes em corredeiras; no entanto, a pesca ali é menor. Sempre preferi os remansos. Mais tarde, adulto já formado, ouvi seguidamente a palavra remanso associada a descanso e tranquilidade. “Aquilo é um remanso”; “Foi um remanso na vida dele”. Por aí afora. E me lembrava, remanso no rio sempre foi condição de pescaria de muitos peixes. Era promessa, fisgava muito quem conhecia suas vantagens.
Remansos promissores. Em ocasião inesperada, como um dourado fora d’água, pulou na memória a palavra. Ouvi, anos atrás, de amigo meu: “Fulano não sabe descansar, por isso produz pouco e mal”. O aparente paradoxo me impressionou. À primeira vista, o remanso, em perspectiva diferente, a inação ajudaria a produção. Mais precisamente, saber como descansar era condição da produtividade boa, com qualidade. Do pátio do recreio dependia em larga parte o êxito da sala de aula. Lembrei-me então, a pescaria depende também do remanso, da água em descanso. A coisa ficou por aí.
Forças novas. Contudo, resolvi tratar do tema hoje, por razão circunstancial. Tive debate com pessoa que sustenta, a tensão contínua é condição de produtividade alta; remanso atrapalha. Imagino, provavelmente haverá muita gente que pensa igual. Acho o contrário, remansos restauram forças, facilitam caminhadas de sucesso. Admito, podem existir remansos apenas de superfície, convulsionados por baixo, recreios neurastênicos; causam efeito contrário, debilitam. De outra maneira, existem formas de armazenar energia, gastando-as depois com utilidade. E existem formas de supostamente guardar energia, de fato desbaratá-las, que impedem utilização posterior.
Hábitos de observação. Arrisco-me a propor aqui remansos, um em especial, de fato. Espero, ajudarão eventuais leitores a agir com maior eficiência em vários âmbitos da vida — familiar, profissional, educativo etc. Serão hábitos que descansam e formam o espírito, a mais de preparar para a ação. Em resumo, é uma sugestão para criar o costume de observar pessoas e famílias, ter em relação a situações de perfeição social um olhar benevolente que entretém, distrai, descansa e forma. Será pátio de recreio com função de sala de aula. Caí sem querer na autoajuda. Não importa, adiante.
Presença de espírito. Esse hábito existiu, formou gerações. Proponho, a bem dizer, uma ressurreição. O mundo cultural francês sempre apreciou, e com razão, o esprit. Abria portas, criava oportunidades, permitia começar relações de valor. Era (e ainda o é, pelo menos em parte) diferencial enorme. Ter espírito (avoir de l’esprit) é sem dúvida ter presença de espírito, saber agir em situações inesperadas. Supõe agilidade mental que leva a encontrar a saída em ocasiões espinhosas. Para tanto, graça, humor, argúcia, conhecimentos. Dele faz parte também o dom da repartie, isto é, a capacidade habitual da resposta viva, espontânea, leve, fácil e brilhante. Nunca foi tempo perdido o esforço para aquisição da presença de espírito. Lá e cá.
Entretenimento cultural como motor da formação. Uns nascem com especial talento nesse campo, cumpre a eles desenvolver dons nativos. Outros têm necessidade de desenvolvê-los, com esforço, ao longo da vida. A eles, de forma particular, o presente texto talvez possa ajudar. A conquista de tal configuração, mesmo em doses modestas, supõe observar e admirar suas manifestações — ganho, em boa parte por osmose, de conhecimentos e hábitos. Aqui estão duas etapas para sua obtenção: gostar de observar e de admirar.
Educação por osmose. Com efeito, a educação não acontece só pela instrução. O conhecimento, os hábitos e o jeito se transmitem também pela convivência. A frequentação, quer física, quer moral, de ambientes pode trazer assimilação de valores. São caldos de cultura psicológicos e morais, nutridos pela leitura, pela imaginação, pelo convívio. Haurindo tais ares, desenvolver o costume de observar, procurando explicitar o visto, e de admirar. Tudo isso faz entender melhor a vida.
Exemplo de expressão histórica. Atrás me referi à atmosfera cultural francesa, em que houve hábitos de observar e de admirar. Quase se poderia afirmar, trata-se de ressuscitá-los e divulgá-los. Foram de enorme significado para a vida nacional — rotinas recreativas embora, remansos de muito peixe. Desço a um exemplo, acho que é o melhor de todos. Houve ali, certamente por mais de século, uma família de expressão, Rochechouart-Mortemart, que, pela fulguração, a partir do século XVII, educou e, em algum sentido, formou gerações inteiras, atraindo a atenção e entretendo. Seus membros de maior relevo eram, em certa proporção, “role models”. Era habitual em seus membros traços de personalidade que encantavam, seduziam, formavam. Nas palavras do historiador Ernest Lavisse, “o espírito celebrado dos Mortemart, natural, fino, que sabia encontrar o inesperado, um espírito que tinha o dom de se comunicar aos outros”. Em resumo, uma forma de alta cultura, comunicativa e difusiva, admirada, observada. Grandes escritores como o duque de Saint-Simon, madame de Sévigné e Marcel Proust dele falaram. Talleyrand [quadro acima], celebrado não só na diplomacia, mas ainda na arte de conversar, notou nas memórias que parte de sua formação vinha da bisavó, uma Mortemart. De outro modo, estava no sangue, aquele estilo vivia nos ares que respirou em menino — osmose. Hoje ainda, tantas vezes dispersas e despercebidas, temos entre nós pessoas em muitos aspectos parecidas com membros da família Mortemart. Merecem atenção. Cabe a nós notá-las, observá-las, admirá-las, mesmo que silenciosamente. É tarefa que aprimora o espírito, prepara para as tarefas cansativas do dia a dia.