Conferência do Prof. Plinio para o Grupo de Catolicismo, sem revisão do autor. (*)
A Sacralidade Medieval
1 – Noção de sacralidade
A Idade Média possuía uma ordem que se considerava sagrada, que desejava ser sagrada, e que a Igreja sagrou. A sacralidade medieval consistia em que toda ela estava voltada para Deus e se reputava como constituída para servir a religião.
Ela pretendia realizar o ideal católico de que Deus fosse glorificado em todas as coisas. Toda a ordem humana visava dar glória a Deus “sicut erat in principio et nunc et semper et in saecula saeculorum”. Nunc, agora; dar glória a Deus agora, neste momento histórico. Mas não só agora, semper, sempre, isto é, em toda a História. E que a glória que Deus receba agora, e na História seja como aquela que Ele recebe na eternidade: et in saecula saeculorum.
Dar Glória a Deus
Mas, que glória? Glória é a forma de homenagem que a criatura presta ao Criador assemelhando-se a Ele, conhecendo-O, adorando-O, amando-O. Os seres irracionais glorificam a Deus pela sua existência, pela ordem que neles existe e pela bondade do ser. Esta existência, esta ordem, esta bondade do ser são os vestígios de Deus nestes seres (pedras, plantas e animais).
O homem, por ser racional, é semelhante a Deus, é livre, e por isto é capaz de prestar a Deus uma glória voluntária querendo assemelhar-se a ele. O homem que se conforma a Deus aumenta sua semelhança com Ele.
Mas, não basta que o homem individualmente dê glória a Deus. A sociedade enquanto tal deve também glorificá-Lo e isto ela o faz tendo uma estrutura conforme às suas leis e a seu espírito. A Idade Média era sacral porque realizava esta glorificação de Deus em toda sua estrutura, em suas instituições, leis e costumes. Ela desejava dar glória a Deus em seu momento histórico e que para sempre todas as demais idades históricas fossem arrastadas pelo seu exemplo.
As duas grandes sociedades, Igreja e Estado, se destinavam à glória de Deus. Tudo o que havia no Estado, na sociedade e em cada homem se ordenava a esta glorificação de Deus. Esta sociedade sacral nas suas formas, a Igreja a consagrou.
2 – A Igreja é evidentemente verdadeira
Todos os medievais consideravam que é evidente que a Igreja é verdadeira. Sua bondade, sua sabedoria, seus milagres, tudo comprova sua veracidade. Ela possui provas tão claras de sua veracidade, que qualquer pessoa pode compreender. Sendo assim, a negação da Igreja só é possível com uma dose maior ou menor de má fé.
3 – A sacralidade medieval e o direito
A lei das leis na Idade Média eram os 10 Mandamentos que contêm a lei natural. A sociedade que acata a lei natural vai bem e produz uma ordem humana ideal, terá civilização e progresso. A verdadeira civilização é a disposição de todas as coisas segundo sua natureza.
“Civilização Católica é a estruturação de todas as relações humanas, de todas as instituições humanas, e do próprio Estado, segundo a doutrina da Igreja”. (Plínio Corrêa de Oliveira, R-CR – pág. 29).
O verdadeiro progresso é o que se faz na linha dos Mandamentos. Há progresso quando se dá aproximação do fim visado. Ora, o fim do homem é Deus, portanto só há verdadeiro progresso quando o homem faz algo que o aproxima de Deus.
Dois fins do homem
O homem tem dois tipos de fim:
1. o fim último que é Deus;
2. fins secundários. Ex: melhorar as condições de vida, tirar um diploma, etc.
Como o progresso é a aproximação de um fim, podemos distinguir dois tipos de progresso:
1. progresso absoluto, é a aproximação do fim último, Deus.
2. progresso relativo: aproximação de um objetivo secundário. Ex: progresso técnico.
O progresso relativo, ou se suborna ao fim último do homem, que é Deus, ou não é verdadeiro progresso. Assim, o progresso técnico atual é muito grande, mas, porque não é utilizado para aproximar o homem de Deus, mais prejudica do que ajuda o homem.
O progresso na Idade Média
A Idade Média teve um progresso enorme inclusive técnico. Todo progresso científico e técnico atual não existiria se a Idade Média não tivesse posto os fundamentos do conhecimento científico. Supor que a Idade Média era uma cidade de trevas porque não havia coca-cola nem avião, e que a ciência nasceu com o Renascimento, é desconhecer que o progresso científico é algo muito lento, que se faz pouco a pouco, de descoberta em descoberta. Não há progresso científico sem Tradição e a ciência não nasceu bruscamente com Descartes.
Cristandade vs. ONU
O direito romano depurado era a lei, além dos costumes. Na esfera internacional, havia a Cristandade, que era a família de povos irmãos agrupados em torno da Igreja, sua Mãe e Senhora, para servi-la espiritual e temporalmente. A Cristandade não era uma ONU medieval. Ela era o contrário da ONU. Ela não absorvia as nações reduzindo-as a uma massa informe cinzenta. Harmonizava as nações conservando e acentuando suas caraterísticas. A Cristandade era como que um arco-íris de nações em que cada uma mantinha uma cor. A ONU mistura todas as cores para obter uma igual, cinzenta.
O Estado servia a Deus e a Igreja. Esta tinha o direito de lhe pedir que perseguisse os hereges, que participasse das Cruzadas, sufocasse o cisma, auxiliasse as missões, porque o mais alto fim do Estado é servir a Igreja.
A Igreja cuidava da salvação das almas, e nesta esfera era soberana. O Estado cuidava da esfera temporal organizando o país e visando seu bem estar ordenado à Igreja. Esta tarefa é autônoma e nela o Estado é soberano.
Nas questões mistas, em que a Igreja e o Estado exercem atividade cumulativamente, ambos devem agir harmonicamente, e nelas a última palavra cabe à Igreja. Exemplo, disto é o ensino em que a Igreja e o Estado têm interesse. Na própria parte em que o Estado tem domínio, a Igreja tem palavra a dizer sempre que haja motivo de pecado.
Ex: numa desapropriação injusta para fazer uma estrada, a Igreja, guardiã da moral, tem o juízo final, porque o Estado está sujeito ao juízo da Igreja como qualquer outra instituição ou pessoa.
Relações Igreja-Estado
As relações entre Igreja e Estado na Idade Média eram comparadas, pela Igreja, às relações entre a alma e o corpo, entre o Sol e a Lua. A Igreja era alma e o Estado o corpo. Assim como alma e corpo devem estar unidos e o corpo subordinado à alma, assim Igreja e Estado deviam estar unidos e este subordinado aquela. A Igreja era comparada ao Sol, e o Estado à Lua, cuja luz e esplendor provêm do Sol.
Esta é a doutrina católica exposta na Bula Unam Sanctam do último grande Papa da Idade Média, Bonifácio VIII.
A proteção dos pobres cabia à Igreja e ao Estado. O Rei era tutor de todos os órfãos pobres e protetor de todos os grupos sociais necessitados. (…)
4 – O princípio monárquico na Idade Média
No Universo, tudo tende a reduzir-se à unidade. A tendência de todas as coisas para o mais perfeito é que leva à subordinação a um. Os seres que têm a mesma perfeição se atraem. Quanto maior a perfeição, maior será a atração que exerce. O menos perfeito é atraído pelo mais perfeito e por isso fica subordinado a ele. Isto leva à formação de uma hierarquia de seres de acordo com sua perfeição. Daí a tendência de todos se subordinarem ao mais perfeito, ao monarca. Este é o princípio monárquico.
Na sociedade medieval, que era retamente ordenada, havia uma tendência para a formação de uma aristocracia, e esta tendia a produzir um monarca e um imperador. A sociedade medieval era semelhante à Igreja. Assim como na Igreja há um Papa, na Cristandade havia um imperador. Deste princípio monárquico que levava a um Papa e a um Imperador se chegava à noção de Cristo Rei.
O Sacro Império foi uma entidade instituída pela Igreja para liderar a Cristandade na luta contra os hereges e os infiéis. Havia assim dois monarcas supremos: o Papa e o Imperador.
Todo sistema medieval era eclesiocêntrico e Cristocêntrico. A Igreja, Cristo, Deus eram o centro de tudo. Não era um mundo em que o homem é o centro de tudo. Deus era o centro. A Reforma, o Renascimento e o Humanismo substituíram Deus pelo homem, e hoje tudo se faz para o homem. E há quem pretenda que a própria Igreja exista para servir o Homem.
Os monarcas cristãos tinham seu cetro relacionado com Cristo, realizando o que dizia a Escritura da Sabedoria Encarnada: “por mim reinam os reis”. Por isso, ao Rei da Hungria, Santo Estevão, o Papa, após confirmá-lo em seu trono e enviar-lhe a coroa, lhe deu o título de Rex Apostolicum.
O Rei da França era sagrado e ungido em Reims com o óleo santo como os antigos reis de Israel. A ele a Igreja deu o título de Rei cristianíssimo; os reis de Espanha eram chamados os Reis Católicos e os de Portugal, Reis fidelíssimos. O Rei da Inglaterra teve o título de Defensor Fidei. O sumo da dignidade real estava em servir ao Rex Gloriae, Cristo Jesus, e a seu vigário. Na Missa do Papa, os reis da Cristandade serviam como acólitos.
Essa Ordem era Sacral
Essa ordem sacral e hierárquica medieval que tinha Cristo como pedra de ângulo e pedra de fecho, alfa e ômega, princípio e fim, era considerada como a realização do reinado de Nosso Senhor, Reino inextinguível contra o qual toda insurreição é mero parêntese após o qual o nome de Jesus volta sempre a triunfar. Esta é a razão da esperança e a promessa da vitória.
A Revolução não pode destruir totalmente o reino sacral de Cristo. Pode perseguí-lo, mas não destruí-lo totalmente. É arquitetônico que a Revolução acabe e acabe ao mais baixo da infâmia.
Da Idade Média se pode dizer, em certo sentido, o que um sublime canto gregoriano dizia de Jesus: “Jesus dulcis memória dans vera cordia gaudia”. Idade Média, quão doce é tua lembrança, tu que dás ao coração a verdadeira alegria. Idade Média que une a doçura da caridade cristão com a alegria do triunfo da Cruz. Idade Média “doce primavera de fé”.
(*) https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Minha_Vida_publica/MVP_11_O_Grupo_de_CATOLICISMO_nos_anos_1950.htm