Transcrevemos a conferência do Prof. Plinio, no seminário jesuíta em São Leopoldo, 1954.
“O que é a cultura?
A esta pergunta, têm sido dadas respostas bem diversas, inspiradas umas na filologia, outras em sistemas filosóficos ou sociais de toda sorte. Tal é o cipoal de contradições que em torno deste vocábulo, e outro conexo, que é “civilização”, se estabeleceu, que congressos internacionais de sábios e professores se têm especialmente reunido para lhes definir o conteúdo. Como sói acontecer, de tanta discussão não nasceu a luz…
Não seria possível na exigüidade desta palestra enunciar as teses e os argumentos das diversas correntes, afirmar por sua vez nossa tese e justificá-la, para tratar depois da cultura católica. Entretanto, podemos considerar seriamente o assunto, tomando a palavra “cultura” nos mil significados de que ela se reveste na linguagem de tantos povos, classes sociais e escolas de pensamento, e começando por mostrar que em todas estas acepções a “cultura” contém sempre um elemento basilar invariável, isto é, o aprimoramento do espírito humano.
No âmago da noção de aprimoramento, está a idéia de que todo homem tem em seu espírito qualidades susceptíveis de desenvolvimento, e defeitos passíveis de repressão. O aprimoramento tem pois dois aspectos: um, positivo, em que significa crescimento do que é bom, e outro negativo, ou seja, a poda do que é mau.
Muitos modos de pensar e de sentir correntes, a respeito da cultura, se explicam à vista deste princípio. Assim, não temos dúvida em reconhecer o caráter de instituição cultural a uma universidade, a uma escola de música ou teatro, ou mesmo a uma sociedade destinada ao fomento do jogo de xadrez ou da filatelia. É que estas entidades ou grupos sociais têm como objetivo direto o aprimoramento do espírito, ou pelo menos visam fins que de si aprimoram o espírito. Entretanto, podemos conceber uma universidade, ou outra instituição cultural, que trabalhe virtualmente contra a cultura, o que se dá quando, pelo efeito de erros de qualquer ordem, sua ação deforma os espíritos. Poder-se-ia por exemplo fazer esta afirmação a propósito de certas escolas que, levadas de um entusiasmo exagerado pela técnica, incutem em seus alunos o desprezo por tudo quanto é filosófico, ou artístico. Um espírito que adora a mecânica como valor supremo e faz dela o único firmamento da alma, nega toda certeza que não tenha a evidência das experiências de laboratório e rejeita desdenhosamente todo o belo, é sem dúvida um espírito deformado. Como deformado seria o espírito que, movido por um apetite filosófico imoderado, negasse qualquer valor à musica, à arte, à poesia, ou mesmo a atividades mais modestas mas que também exigem inteligência e cultura, como a mecânica. E de universidades que plasmassem segundo alguma destas orientações falsas os seus alunos, diríamos que exercem uma ação anti-cultural, ou propagam uma falsa cultura.
Na acepção corrente, reconhece-se que jogar esgrima é um exercício de certo valor cultural, porque supõe qualidades de destreza física, vivacidade de alma, elegância. Mas o senso comum se mostra intenso a reconhecer caráter cultural ao box, que tem em si algo de aviltante para o espírito, pelo fato de ter por alvo de golpes maciços e brutais a face do homem. Em todas estas acepções, e em tantas outras ainda, a linguagem corrente inclui na noção de cultura a idéia de aprimoramento da alma.
Cultura e instrução
À primeira vista é menos clara, no conceito geral, a distinção entre instrução e cultura. Mas, bem analisadas as coisas, vê-se que tal distinção existe, e repousa sobre um fundamento sólido.
Diz-se de uma pessoa que leu muito, que é muito culta, pelo menos comparativamente a outra que lê pouco. E, entre duas pessoas que leram muito, a que mais leu presume-se ser a mais culta. Como de si a instrução aprimora o espírito, é natural que, salvo razões em contrário, se repute mais culto quem for mais lido. O perigo de um erro neste assunto nasce do fato de que muitas pessoas simplificam inadvertidamente as noções e chegam a considerar a cultura como mera resultante da quantidade de livros lidos. Erro palmar, pois a leitura é proveitosa, não tanto em função da quantidade como da qualidade dos livros lidos, e principalmente em função da qualidade de quem lê, e do modo por que lê.
Em outros termos, em tese a leitura pode fazer homens instruídos: tomamos aqui a palavra instrução no sentido de mera informação. Mas uma pessoa muito lida, muito instruída, ou seja, informada de muitos fatos ou noções de interesse científico, histórico ou artístico, pode ser bem menos culta do que outra de cabedal informativo menor.
É que a instrução só aprimora o espírito em toda a medida do possível, quando seguida de uma assimilação profunda, resultante de acurada reflexão. E por isto quem leu pouco, mas assimilou muito, é mais culto do que quem leu muito e assimilou pouco. Em via de regra, por exemplo, um guia de museu é muito instruído dos objetos que deve mostrar aos visitantes. Mas não raras vezes ele é pouco culto: limita-se a decorar, e não procura assimilar.
Como se adquire a cultura
Tudo quanto o homem apreende com os sentidos ou a inteligência, exerce um efeito sobre as potências de sua alma. Deste efeito, uma pessoa pode libertar-se mais, ou menos, ou até inteiramente, conforme o caso, mas em si cada apreensão tende a exercer sobre ela um efeito.
Como já dissemos, a ação cultural consiste positivamente em acentuar todos os efeitos aprimoradores, e negativamente em frear os outros.
Bem entendido, a reflexão é o primeiro dos meios desta ação positiva. Mais, muito e muito mais do que um rato de biblioteca, um repositório vivo de fatos e datas, nomes e textos, o homem de cultura deve ser um pensador. E para o pensador o livro principal é a realidade que ele tem diante dos olhos; o autor mais consultado, ele próprio, e os demais autores e livros, elementos preciosos mas nitidamente subsidiários.
Contudo a mera reflexão não basta. O homem não é puro espírito. Por uma afinidade que não é apenas convencional, existe um nexo entre as realidades superiores que ele considera com a inteligência, e as cores, os sons, as formas, os perfumes que atinge pelos sentidos. O esforço cultural só é completo quando o homem embebe todo o seu ser, por estas vias sensíveis, dos valores que sua inteligência considerou. O canto, a poesia, a arte têm exatamente este fim. E é por um acurado e superior convívio com o belo (retamente entendida a palavra, é claro) que a alma se embebe inteiramente da verdade e do bem.”
Continuaremos no próximo Post com a aplicação à Cultura Católica.