Este Santo é um exemplo de como uma pessoa simples e sem instrução, quando tem verdadeiro amor a Deus, pode fazer grandes coisas no campo da caridade, e chegar a uma eminente santidade.
João Cidade nasceu em Montemayor o Novo, na província de Évora, em Portugal, de pais tão humildes, que a história não registrou seu nome. Quando tinha oito anos, ouviu um espanhol gabar a grandeza e beleza das igrejas e palácios de sua terra natal. Curioso, o menino desejou vê-las com os próprios olhos. Desse modo, quando o estrangeiro voltava à pátria, o seguiu, até chegar na cidade de Oropesa, em Castela.
Foi só então que o menino deu-se conta de sua loucura, e de que estava só no mundo, não sabendo o caminho de volta à pátria, e de sua casa. Desolado, rezou então a Nossa Senhora pedindo proteção.
Passou então pela estrada um lavrador bem instalado na vida que, sabendo que o menino estava desamparado, o aceitou como pastor. O curioso é que Nossa Senhora não ajudou João a voltar para sua pátria e a seu lar, mas a encontrar algo que fazer na terra do exílio. É que João de Deus não deveria ter nesta terra nenhum vínculo que o prendesse, nem mesmo o da família, pois fora chamado a ter os pobres e destituídos como seus irmãos.
João cresceu e tornou-se um robusto rapaz. Mas sempre no humilde ofício de pastor. Aos vinte e dois anos, obedecendo à voz da graça que lhe dizia que tinha nascido para algo grande, resolveu tentar fortuna como soldado. A vida licenciosa dos acampamentos acabou tendo má influência sobre o ingênuo pastor. Aos poucos foi deixando as devoções, debilitou-se sua vontade, e ele sucumbiu às tentações.
Quatro anos depois, no desejo de defender a fé contra o Islã, João de Desu alistou-se entre os que iam com o imperador Carlos V combater o turco Solimão, que ameaçava invadir Viena. No dia 19 de setembro de 1525 o mouro sitiou a capital austríaca. Mas foi tal o ardor com que os católicos defenderam a cidade, que Solimão, após ter feito matar dois mil prisioneiros em represália, abandonou a empresa.
Na volta à Espanha, João de Deus foi visitar o sepulcro de São Tiago, em Compostela. Encaminhou-se depois para seu país, indo à sua cidade natal em procura dos pais. Mas ninguém mais sabia deles. Acabou encontrando um velho tio, que lhe informou que sua mãe falecera logo depois de seu desaparecimento, e o pai terminara seus dias num convento franciscano.
Aflito, João resolveu voltar para a Espanha. Depois de curta permanência num hospital, dedicou-se novamente ao pastoreio. Mas uma voz interior não o deixava ficar naquela vida pacífica de pastor. Determinou-se então a ir para a África, para lutar contra os mouros pela fé.
Encaminhou-se para isso para Granada, onde certo dia, ouvindo o sermão que São João de Ávila pregava numa igreja da cidade sobre São Sebastião, ficou tão tocado, que prorrompeu em soluços gritando: “Misericórdia! Misericórdia!” E batia no peito, arrancava os cabelos e a barba, de tal maneira que algumas pessoas, julgando-o louco, o levaram para o manicômio da cidade.
São João de Ávila, levado por um movimento interior, foi então em seu socorro. E, com intuição profética, convenceu-o a dedicar-se ao serviço do próximo. João encontrará finalmente aí sua vocação.
Para isso, no mês de novembro de 1537, alugou com esmolas uma casa na cidade, comprou leitos, e saiu à rua em busca de pobres e doentes. Os que não podiam andar, trazia-os nos ombros.
Nascia assim o pequeno hospital que seria o berço da Ordem dos Irmãos Hospitalares de São João de Deus.
Entretanto, se ele cuidava dos corpos, era para fazer bem às almas. “Há quanto tempo não te confessas?” perguntava aos seus pobres. E mostrava-lhes que muitas vezes os males do corpo são decorrência dos males da alma. Lavava os enfermos, curava suas feridas, consolava-os, alimentava-os. E diariamente, depois do entardecer, saía com um cesto de vime às costas e dois caldeirões pendurados nos ombros para pedir esmolas para seus doentes. “Irmãos, fazei bem a vós mesmos” gritava pelas ruas mostrando que, “quem dá ao pobre, empresta a Deus”.
Certo dia em que São João de Deus rezava na igreja Nossa Senhora do Sacrário diante de um crucifixo que tinha a seu lado Nossa Senhora das Dores e São João Evangelista, estes desceram do altar e puseram na cabeça do Santo uma coroa de espinhos. Disse-lhe a Virgem: “João, pelos espinhos quer meu Filho que alcances grandes merecimentos”.
São João de Deus chegou aos 56 anos de idade gasto pelas penitências e pelos trabalhos, e teve que guardar o pobre leito no hospital. Mas ouvindo dizer que o rio que passa por Granada trazia em seu leito muita madeira, levantou-se para recolhê-la para seus pobres. Estava nessa faina quando viu um dos ajudantes do hospital ser levado pelas águas. Mergulhou para tentar salvar o pobre, mas em vão, pois não o conseguiu pegar.
Com alta febre foi levado para o hospital. Dona Ana Osório, grande dama local, vendo-o tão falto de assistência e de conforto, obteve do arcebispo uma ordem para que ele fosse levado à sua casa onde, apesar do esmerado tratamento que recebeu, faleceu no dia 8 de março de 1550.
Dele diz o Martirológio Romano Monástico neste dia: “No ano da graça de 1550, o nascimento para o céu de São João de Deus. Repentinamente convertido por São João de Ávila, que pregava em Granada a loucura da misericórdia divina, este português de quarenta anos foi considerado como atacado por perturbações mentais, e submetido aos maus tratamentos que havia na época para aquele tipo de doentes. Decidiu, a partir de então, dedicar-se a seus companheiros de infortúnio, colocando as bases da Ordem da Caridade, cujos membros são mais conhecidos pelo nome de Irmãos Hospitalários de São João de Deus”.
Cabe aqui uma reflexão a respeito da festa de São João de Deus. O “primeiro e maior mandamento” nos leva a amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos, por seu amor. Portanto, não se tem amor verdadeiro a Deus se não se tem ao próximo. Entretanto, o que se faz ao próximo, se não é feito por amor de Deus, não passa de um engano, de uma ficção. É por isso que praticamente desapareceu a verdadeira caridade em nossos dias. Mesmo o que se faz pelos pobres, é feito por razões meramente naturais, no que se chama de “filantropia”. Sobre ela diz o célebre abade de Solesmes, D. Guéranger em seu “Ano Litúrgico”: “A filantropia, em cujo nome se pretende apartar-se do Pai comum e não socorrer a seus semelhantes senão em nome da humanidade, é uma ilusão do orgulho, sem nenhum resultado. Não há possibilidade, nem duração de união entre os homens se estão separados de Deus, que criou a todos, e que quer atraí-los todos a Si. Servir à humanidade, como tal, é fazer dela um deus. E os resultados têm demonstrado que os inimigos da verdadeira caridade não têm sabido remediar as misérias do homem nesta vida, melhor que os discípulos de Jesus Cristo, que só nele puseram os motivos e o entusiasmo para consagrar-se a assistir seus irmãos”.