Fonte: Revista Catolicismo, Nº 857, Maio/2022
Pergunta — Desde o começo da invasão da Ucrânia pela Rússia, vejo todos os dias nos noticiários imagens terríveis das devastações da guerra e me pergunto: “Será que Deus vê tudo isso? Onde Ele está? Onde está o seu amor, do qual tanto falam os pregadores nos sermões?” Agradeço sua resposta para uma alma angustiada.
Resposta — Em várias ocasiões esta coluna tem tratado da questão da compatibilidade entre o sofrimento, a morte, a tragédia e a Divina Providência. Mas é compreensível que, em meio a uma guerra sangrenta, além da perspectiva de uma escalada que chegue a uma conflagração mundial, voltemos ao tema para confirmar na fé e na esperança os nossos leitores.
Não vamos nos ocupar aqui da possibilidade teórica de a Divina Providência atuar na vida dos homens, apesar de vivermos num mundo sob o domínio das leis naturais onde as coisas acontecem uniformemente. É verdade que com o desenvolvimento da ciência, hoje conhecemos uma explicação natural para muitos fenômenos nos quais nossos antepassados viam a mão de Deus. O que leva muito ateu prático a achar que as leis da natureza são tão rígidas que não deixam espaço para Deus intervir no funcionamento do Universo.
Nós, que temos fé, sabemos pelo contrário que é inteiramente lógico supor que Deus todo-poderoso pode continuar a agir na sua criação. Não somente por meio dessas mesmas leis naturais que regem o mundo, mas até por vezes suspendendo-as temporariamente. É o que chamamos de milagre. Por essas duas vias, uma ordinária e outra extraordinária, Ele exerce de fato uma Providência sábia e amorosa sobre a vida dos homens.
O que entender por “obra da Providência”
Mas essa consideração torna ainda mais agudo o problema: admitindo que Deus tutela a vida dos homens com sua Providência paterna, como podemos reconciliar o aspecto presente do mundo com a crença em um Deus amoroso? Como acreditar na sua misericórdia, quando vemos o inferno solto e multidões de pessoas inocentes atingidas pelo desastre mais terrível, quando ouvimos um grande lamento de agonia trazido em cada notícia que chega dos quatro cantos da terra, com imagens de desolação e morte em inúmeras casas? Como podemos continuar a afirmar o amor de Deus?
Há uma resposta óbvia que até certo ponto nos alivia e diminui esta dificuldade. Essas carnificinas não são obra de Deus, mas dos homens. Além do mais, são males que a astúcia do demônio opera contra nós. O homem pode usar seu livre arbítrio para frustrar a vontade de Deus, e Satanás pode influenciar a livre vontade do homem. E mesmo que tenha fingido dormir por muito tempo, chega uma hora em que ele mostra de novo sua cara criminosa. Não disse Nosso Senhor aos judeus que não creram n’Ele: “Vós tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele era homicida desde o princípio” (Jo 8, 44)?
Mas essa resposta não resolve tudo, pois nem o demônio nem o homem são seres que se originaram por si mesmos e, portanto, não são absolutamente independentes, já que foram criados por Deus e operam sob o seu domínio. Logo, temos de encontrar a solução para o drama mundial de nossos dias numa explicação ainda mais ampla e satisfatória, ou seja, numa concepção mais profunda do que o termo Providência significa.
Em seu sentido natural, “providenciar” é tomar medidas para a consecução de algo. Por isso, não raramente os ateus práticos, que nos veem dispostos a “confiar na Providência” em nossas dificuldades, nos acusam de confiar “na imprevidência”. Mas trata-se de uma acusação falsa, pois no seu sentido teológico, a Providência significa para nós o próprio Deus revelado nas Sagradas Escrituras. E por “obra da Providência” queremos dizer o operar desse mesmo Deus.
Amor de Deus que disciplina e corrige
O comum das pessoas — cujos pensamentos não são moldados pela lógica e muito menos pela Revelação — cria para si, com base em suas experiências difíceis da vida, uma ideia própria de Deus que não corresponde ao Deus da Bíblia. E é daí que surge esta pergunta a respeito da Divina Providência: “Mas Deus não estaria percebendo todo esse sofrimento?”
A resposta que devemos dar a eles é não pensar na imagem que cada qual faz de Deus, mas nos voltarmos para a Revelação da Providência divina e de seu amor para com os homens como nos foi dada por Nosso Senhor no Evangelho! De fato, no conceito bíblico, o amor de Deus não é apenas um amor que cria, provê, salva e santifica, mas é também um amor que disciplina e corrige.
No atual pontificado fala-se muito de misericórdia. Uma paroquiana me disse há certo tempo que a Igreja estaria enlouquecendo com essa nova doutrina do amor de Deus. Não tirei toda razão dela, pois não se pode omitir que o verdadeiro amor — por exemplo, o amor de uma mãe — é um amor que disciplina, corrige, e, quando necessário, castiga. A vontade de Deus não é que vivamos na segurança, no conforto e numa felicidade sem nuvens nesta terra.
Sua vontade é acima de tudo a nossa santificação, a nossa salvação, para vivermos eternamente unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim como um bom lavrador, Deus se utiliza de tempos em tempos de sua tesoura de poda; como um bom ourives, purifica o ouro de nossa alma com o crisol da dor; e como um bom Pai, chama-nos firmemente, pois Deus pode ser firme na penitência e na esperança.
A própria natureza opera sua retribuição
Ao se deparar um ateu com uma reviravolta mundial — com uma guerra, por exemplo —, ele tem a impressão de que uma força misteriosa desatou rude e impiedosamente as amarras do mundo, e que este caminha para o abismo movido pelo acaso. Mas não podemos ver as coisas dessa maneira, pois equivaleria a transferir o nosso modo humano de agir para o campo do operar de Deus, e de imaginar que em sua Providência Ele olha para as tragédias ou para as coisas boas que acontecem exatamente como nós as olhamos, achando que acontecem “por acaso”.
Pelo contrário, Jesus nos ensinou: “Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros e vosso Pai Celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?” (Mt 6, 26).
É precisamente esse carinhoso amor que leva Deus a permitir, ou até mesmo enviar, o sofrimento. Pois o que O comove supremamente é o pecado, não o sofrimento; inversamente, o que comove supremamente o homem é o sofrimento, não o pecado. O profeta Isaías exprime claramente essa diferença de critérios e de vias: “Renuncie o malvado a seu comportamento, e o pecador a seus projetos; volte ao Senhor, que dele terá piedade, e a nosso Deus que perdoa generosamente. Pois meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo de agir não é o meu, diz o Senhor” (Is 55, 7-8).
Isso não significa que todo sofrimento seja o resultado direto do pecado. É verdade que muitas vezes Deus nos castiga pelas consequências de nossos próprios pecados, como as doenças para a bêbado, a miséria para o drogado, o remorso da mãe que aborta etc. A própria natureza opera sua retribuição, dura como a morte, impiedosa como a sepultura.
A felicidade em suportar a própria cruz
Mas há também muito sofrimento resultante de nossa entrega a Deus, que deseja ver nossos nomes inscritos no rol de honra imortal daqueles que associaram seu sangue e suas lágrimas aos de Cristo, que combateram como São Paulo o bom combate, e que cobertos de feridas — outros tantos troféus de uma luta bem travada — receberam a palma da vitória.
Se não podemos afirmar que o sofrimento é sempre consequência do pecado, podemos com certeza dizer que muitas vezes pecamos porque não sofremos! Pois na vida cotidiana rejeitamos o espírito de disciplina, esquivamo-nos de suportar a nossa cruz, saímos do caminho no qual os desígnios de Deus a nosso respeito resplandecem mais porque iluminados pela luz de Cristo, como a coluna de fogo que guiava os judeus pelo deserto rumo à Terra Prometida. A Cruz foi de fato a maior manifestação do amor de nosso Divino Redentor por nós. Esta é a grande consolação cristã de um habitante de Kiev cujo apartamento foi demolido, de um pai que teve todos os seus filhos mortos num bombardeio aéreo, ou de uma mãe que perdeu seus filhos em tenra idade durante a fuga.
Dois pensamentos devem, portanto, nos dar alento em meio às tragédias individuais ou coletivas.
O primeiro é o de que esses sofrimentos não são apanágio da nossa geração. Há muitos séculos, 50 ou 60 anos antes de desaparecer, um jovem virgem viu não apenas um soldado massacrado ou um prédio bombardeado, mas o próprio Deus crucificado, em cujos divinos lábios os Salmos colocaram esta queixa: “Eu, porém, sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e a abjeção da plebe” (Salmos, 21,7). São João continuou entretanto a crer na Providência de Deus e, na velhice, a confortar seus discípulos com a firme convicção de que “Deus é Amor” (1Jo 4,8). Na memória do velho apóstolo, a maior garantia desse amor estava precisamente na Cruz de Cristo. Depois dele, outros sofrimentos ainda puseram à prova a fé de legiões de cristãos, mas a sua fé reivindicou sempre a vitória.
O segundo pensamento é o de que as pessoas em situações dramáticas recebem uma graça especial de Deus proporcionada à provação especial por que passam. Como nos dias da Igreja primitiva, em que cada cristão era um missionário e todo missionário um potencial mártir no Coliseu, mas que eram sustentados pela graça divina para enfrentar o gládio, o fogo ou as feras.
Essa crença na Providência de Deus e na onipotência da graça divina tem sido sempre o suporte e o consolo daqueles que têm passado por toda sorte de sofrimento. Os caminhos da humanidade até o altar do amor de Deus estão gastos como os pés de muitos peregrinos sofredores que encontraram luz e refrigério na Cruz meditando nestas palavras de São Paulo sobre Nosso Senhor: “Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso também Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome” (Fil. 2, 8-9). E cuja Mãe é Nossa Senhora das Dores, a Quem a liturgia aplica as palavras de Jeremias:
“Ó vós todos os que passais pelo caminho, parai e vede se há dor semelhante à minha dor” (Lam. 1, 13).