Um dos maiores compositores do Renascimento na Inglaterra, sua influência se fez sentir em toda a Europa. Como Giovanni Pierluigi da Palestrina na Itália, Orlando de Lassus nos Países Baixos, e Thomas Luís de Vitória na Espanha, William Byrd faz-se um com essa tríade de expoentes da polifonia renascentista. Apesar de católico praticante, seu prestígio era tal que conseguiu sobreviver e ser admirado na herética Corte da Inglaterra tornada protestante.
Antecedentes
A Inglaterra, outrora chamada “Ilha dos Santos”, se perverteu ao protestantismo no ano de 1534, quando o Parlamento, para satisfazer ao lúbrico rei Henrique VIII, rompeu com Roma, epelo “Ato de Supremacia”, declarou o rei inglês “Cabeça da Igreja no país”, dando origem àchamada “Igreja” Anglicana.
Isso, no entanto, não ocorreu pacificamente, pois aos católicos ingleses que não quisessem aceitar essa nova situação estava reservada a prisão ou a morte.
Foi o que sucedeu com Sir Thomas More, ex-chanceler do Reino. Por não reconhecer o “Ato de Supremacia”, foi decapitado em 1535, ano em que morreu do mesmo modo o bispo de Rochester, futuro São João Fisher [gravura ao lado]. O crime deste Prelado foi o de declarar valentemente que “querer substituir o Papa de Roma pelo rei da Inglaterra como chefe de nossa religião, é como gritar um ‘morra’ à Igreja Católica”, o que ele não faria, preferindo a morte.
Dois anos depois, em 1537, ao fracassar uma rebelião católica contra o rei, seis abades, 38 monges, 16 sacerdotes e 216 leigos foram executados.
Esses fatos isolados constituem apenas uma amostra da ferocidade com que os defensores da nova igreja perseguiam os católicos fiéis. O que só cresceu durante os reinos dos sucessores do lúbrico rei, com exceção de breve intervalo durante o reinado de Maria Tudor, que era genuinamente católica.
“Devoto católico desde o berço”
Foi nesse tão conturbado contexto histórico que nasceu William Byrd entre os anos de 1539 e 1543. Sua família era de “cavalheiros”, a mais baixa patente da nobreza inglesa. De acordo com a Enciclopédia Britânica[i], que afirma que William era “devoto católico desde o berço”, supomos que, apesar da situação reinante, seus pais conservavam a verdadeira religião.
O futuro compositor tinha dois irmãos mais velhos, Symond e John, e quatro irmãs. Embora os pais fossem comerciantes, os três filhos iniciaram aos sete anos o estudo de música, tendo os dois primeiros ingressado mais tarde no coro da Catedral de São Paulo, e William, em 1540, no da Capela Real. Foi aí discípulo do famoso compositor Thomas Tallis (1505-1585), conhecido como “o pai da música sacra inglesa”. Ele se especializou na música sacra para coral, em latim, tornando-se um dos mais influentes e populares compositores renascentistas ingleses. Sua obra perdura até os nossos dias.
Tallis era excelente organista. Contudo, apesar de católico, para sobreviver na nova situação religiosa reinante, passou a compor tanto para católicos quanto para os anglicanos, o que também faria depois William Byrd.
Uma profunda e duradoura amizade uniu mestre e discípulo, de modo que Byrd convidou Tallis para ser padrinho de seu segundo filho.
Carreira precoce
Em 1563, quando Byrd tinha por volta de 20 anos, provavelmente na sua primeira nomeação oficial, tornou-se organista e mestre dos coristas na belíssima catedral gótica medieval da Bem-Aventurada Virgem Maria, em Lincoln [foto ao lado], usurpada pelos anglicanos depois do cisma. Por causa de seu já crescente prestígio, nela recebeu um altíssimo salário. Foi aí que o compositor escreveu a maior parte de suas músicas sacras em inglês.
Aos poucos a influência de sua música se estendeu não só por toda a Inglaterra, mas também pelos Países Baixos e Alemanha.
No dia 14 de setembro de 1568 casou-se com Juliana Birley, com quem teve ao menos sete filhos. O casal viveu longa e afetivamente até o falecimento de Juliana, entre 1608 e 1609.
Cavalheiro da Capela Real
Em 1572 Byrd voltou a Londres para assumir o cargo de Cavalheiro da Capela Real como músico assalariado, dividindo as funções com Thomas Tallis.
Uma das funções da Capela Real era atender às necessidades espirituais do soberano. Isso possibilitou a Byrd entrar em contato com os nobres da Corte, muitos dos quais se tornariam seus entusiastas patronos, apesar de anglicanos.
A rainha Isabel I [quadro ao lado] gostava tanto de rituais musicais elaborados quanto de obras novas, o que ajudou indiretamente William Byrd a desenvolver suas habilidades de compositor. Com o tempo a rainha se tornou uma das maiores admiradoras das músicas do prolífico compositor.
Comenta a Enciclopédia Britânica: “A estreita relação pessoal e profissional entre os dois homens [Tallis e Byrd] teve importantes consequências musicais. Em 1575 Isabel I lhes concedeu, [apesar de católicos] o monopólio conjunto para a importação, impressão, publicação e venda de música e impressão de papel musical. A primeira obra da dupla nessa nova condição apareceu naquele ano — uma coleção de Cantiones sacrae dedicada à rainha. Dos 34 motetos, Tallis contribuiu com 16 e Byrd com 18”. Entretanto, “como católicos, Byrd e Tallis foram proibidos de vender música importada e lhes foram negados quaisquer direitos sobre fontes musicais ou patentes de impressão que não estivessem sob seu comando”.
Byrd e a religião
Sendo William Byrd “não apenas o melhor compositor inglês de seu tempo, mas um católico convicto”[ii] e mais ou menos notório, ele teria que enfrentar muitos problemas com as autoridades anglicanas.
Assim, quando começaram em 1577 a serem aplicadas severas sanções contra os que se recusavam a comparecer aos serviços do culto anglicano, Byrd mudou com sua família para Harlington, Middlesex, onde podia viver com na privacidade que não tinha em Londres.
Aí podia também ajudar seus irmãos de fé que viviam na clandestinidade. Diz a Enciclopédia Britânica: “Apesar de seu contato social próximo com muitos outros católicos, alguns dos quais certamente estariam envolvidos em atividades [julgadas] traiçoeiras, sua própria lealdade ao governo nunca foi questionada”.
Contudo, em 1583, supondo-se que poderia ter havido uma possível associação sua com nobres católicos suspeitos de envolvimento no Throckmorton Plot — fracassado atentado para depor Isabel substituindo-a por Maria Stuart —, ele teve sérios problemas que só conseguiu contornar devido ao seu prestígio, habilidade e ajuda de protetores.
O que não evitou que, dois anos depois, seu nome voltasse a aparecer na lista dos “recusantes”. Pelo que foi pesadamente multado, mas não teve que enfrentar outro tipo de perseguição na época.
Acontece que a profissão de fé católica mais ou menos conhecida de Byrd continuamente molestava as autoridades protestantes em Stondon Massey, Essex, para onde ele se mudou. Pois, segundo seu biógrafo moderno, a escritora Kerry McCarthy, Byrd figurava para os anglicanos “como um dos católicos ‘suspeitos de sempre’”[iii]. Pelo que foi condenado a ter que comparecer regularmente às quartas-feiras nas repartições oficiais e pagar outra vez pesadas multas por sua recusa, escapando de punições mais severas novamente pela intervenção de seus patronos.
Enfim, em 1592 as perseguições terminaram de vez, em virtude de uma nota concisa vinda do palácio: “Que o julgamento [de Byrd] cesse por ordem da Rainha”.
Assim, o gênio musical de Byrd e sua habilidade levou a que, embora ele nunca renegasse sua fé na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, sua obra musical encontrasse a aprovação dos próprios protestantes, como a do arcebispo anglicano de Canterbury, Richard Bancroft, que deu aprovação ao seu “Gradualia” de 1605-1607, magnífico calendário musical do ano católico tradicional[iv].
“Alto tom moral, religioso e metafísico”
Com a morte de Tallis em 1585, Byrd herdou todo o monopólio editorial. Assim, em 1588 ele imprimiu o primeiro cancioneiro inglês, Salmos, sonetos e canções.
Consta que William Byrd escreveu sobre quase todos os gêneros de música da época, utilizando para isso “textos de alto tom moral, frequentemente religioso ou metafísico”[v]. Nessa linha ele publicou três missas latinas, embora estas não pudessem ser executadas publicamente, e entre 1605 e 1607 compôs peças para as principais festas católicas.
“A música coral católica de Byrd une uma tradição inglesa de polifonia floreada com a estética emergente da Contra-Reforma europeia”[vi], sendo que não pode ser negado que ele atingia seu maior auge em suas músicas sagradas em latim.
Em 1593 Byrd se estabeleceu em Stondon Massey, Essex, onde morava um de seus clientes, Sir John Petre, um católico discreto e proprietário de terras. Ali ele viveu até o resto de seus dias, e começou a escrever música litúrgica para diferentes festas do calendário da Igreja Católica. “Embora Byrd tenha escrito muitas peças em inglês, ele é mais lembrado por sua música sacra latina. Os dois conjuntos de ‘Cantiones sacrae’, publicados em 1589 e 1591, podem ser considerados os melhores entre seus trabalhos. Estes foram escritos principalmente para uso privado nos círculos católicos, onde lhe permitiram escrever livremente, sem nenhuma consideração litúrgica”[vii].
William Byrd morreu em Stondon Massey no dia 4 de julho de 1623. Sobre a atualidade de sua obra, noticiou o economist.com a propósito dos quatrocentos anos de seu falecimento: “As salas de concerto, igrejas e catedrais britânicas também agendaram homenagens a esse talento multifacetado, desde um “Byrd-a-thon” de 24 horas em Oxford, até o compromisso da Catedral de Westminster [católica] (foto acima) de executar todas as 109 peças do Gradualia. O que Byrd chamou de sua ‘inclinação natural e amor pela arte da música’ o sustentou em tempos difíceis e perigos mortais. Este ano, ele vai ganhar novos convertidos”.
[i]https://www.britannica.com/biography/William-Byrd
[ii]https://www.economist.com/culture/2023/02/16/william-byrd-was-a-favourite-composer-of-elizabeth-i
[iii] Id.
[iv]Id.ib.
[v]https://www.allmusic.com/artist/william-byrd-mn0000804200/biography
[vi]In www.economist.com
[vii]Cfr. https://pt.celeb-true.com/william-byrd-gifted-music-composer-renaissance-period-check-this
Anglicanismo, Catolicismo, Inglaterra, Monarquia, Música Sacra, São João Fisher