Padre David Francisquini
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 878, Março/2023*
Pergunta — Fiquei chocada quando li que o Papa Francisco tinha afirmado na TV italiana que achava, ou pelo menos desejava, que o inferno estivesse vazio. Fui falar com meu pároco, que se limitou a responder-me: “Se antes de conceber seu filho, você soubesse que ele passaria a eternidade no inferno, você ainda traria seu filho a este mundo?” Meio hesitante, eu disse que não. O padre me retrucou: “Se Deus deixa pessoas sofrendo eternamente no inferno, então Ele seria menos misericordioso que você”. Por minha vez, repeti-lhe que rezamos no Credo que Jesus virá, no fim do mundo, “julgar os vivos e os mortos”, mas que isso não teria sentido se algumas sentenças, pelo menos, não fossem de condenação. Confesso que fiquei perplexa.
Resposta — Argumentos de algibeira, que exploram os sentimentos em lugar de fazer um raciocínio frio, são os que levam pessoas românticas a adotar vários pontos de vista errados: que o Deus do Novo Testamento não é o mesmo que o do Antigo, ou que o inferno não é eterno, ou mesmo que o inferno é apenas a aniquilação da alma (como insinuou o Papa Francisco em outra ocasião). Outro ponto de vista bastante popular é a afirmação de que o inferno existe, mas está ou ficará vazio.
Como essa é a questão da atualidade, deixarei para outra ocasião o assunto mais fundamental: por que Deus, infinitamente bom, manda os pecadores impenitentes para o inferno?
Uma primeira questão a resolver é semântica, ou seja, o significado da palavra portuguesa “inferno”. Porque no Evangelho lemos que, antes da Ressurreição, Nosso Senhor desceu aos infernos. Ora, como o Catecismo da Igreja Católica explica: “A morada dos mortos, a que Cristo morto desceu, é chamada pela Escritura os infernos, Sheol [em língua judaica] ou Hades [em grego], porque aqueles que aí se encontravam estavam privados da visão de Deus. Tal era o caso de todos os mortos, maus ou justos, enquanto esperavam o Redentor, o que não quer dizer que a sua sorte fosse idêntica, como Jesus mostra na parábola do pobre Lázaro, recebido no ‘seio de Abraão’. […] Jesus não desceu à mansão dos mortos para de lá libertar os condenados, nem para abolir o inferno da condenação, mas para libertar os justos que O tinham precedido” (Catecismo da Igreja Católica, 633).
Portanto, nesse primeiro sentido, a palavra portuguesa “inferno”, ou seu plural “infernos”, designa apenas o lugar dos mortos, tanto justos quanto injustos. Mas ela também significa, em outro sentido, o lugar aonde irão parar os injustos impenitentes, para o qual Nosso Senhor empregava outra palavra judaica. Diz mais adiante o Catecismo: “Jesus fala muitas vezes da ‘gehena’ do ‘fogo que não se apaga’, reservada aos que recusam, até ao fim da vida, acreditar e converter-se, e na qual podem perder-se, ao mesmo tempo, a alma e o corpo. Jesus anuncia, em termos muitos severos, que ‘enviará os seus anjos que tirarão do seu Reino […] todos os que praticaram a iniquidade, e hão de lançá-los na fornalha ardente’ (Mt 13, 41-42), e sobre eles pronunciará a sentença: ‘afastai-vos de Mim, malditos. Ide para o fogo eterno’ (Mt 25, 41)” (Catecismo da Igreja \Católica 1034).
Por toda a eternidade e não apenas em um período
O que acontecerá com os “infernos”, no primeiro sentido de Mansão dos Mortos? Serão jogados no outro “Inferno”, a fornalha ardente. O livro do Apocalipse diz, a respeito do Fim do Mundo: “A morte e o Hades deram os mortos que estavam neles, e fez-se juízo de cada um segundo as suas obras. Depois, a morte e o Hades foram lançados no tanque de fogo (o tanque de fogo é a segunda morte). E aquele que se não achou inscrito no livro da vida, foi lançado no tanque de fogo” (Ap 20, 13-15).
Então, a pergunta é se o “tanque de fogo” é eterno ou ficará vazio algum dia? Novamente, são as Escrituras que nos dão a resposta. O mesmo capítulo do Apocalipse diz:
“E o demônio, que os seduzia, foi metido no tanque de fogo e de enxofre, onde também a Besta e o falso profeta serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos” (Ap 20, 10).
Alguns alegam que “pelos séculos dos séculos” poderiam se referir a um período definido, e não a um estado eterno. No entanto, a discussão sobre o destino eterno de Satanás e seus sequazes está no contexto de uma contraposição com o destino dos justos, que certamente gozarão da visão beatífica por toda a eternidade, e não apenas em um período limitado.
No entanto, se essa consideração óbvia não for suficiente, o próprio Jesus responde à alegação. Lemos no Evangelho de São Lucas:
“Alguém lhe perguntou: ‘Senhor, são poucos os que se salvam?’ Ele respondeu-lhes: Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque vos digo que muitos procurarão entrar, e não conseguirão. Quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, vós, estando fora, começareis a bater à porta, dizendo: ‘Senhor, abre-nos’, ele vos responderá: Não sei donde vós sois. Então começareis a dizer: ‘Comemos e bebemos em tua presença, tu ensinaste nas nossas praças’. Ele vos dirá: Não sei donde sois; apartai-vos de mim vós todos os que praticais a iniquidade. Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac, Jacob, e todos os profetas no reino de Deus, e vós serdes expulsos para fora” (Lc 13, 23-28).
Jesus Cristo retribuirá cada um segundo as suas obras
São Gregório Magno e Santo Agostinho comentam que se o Inferno tivesse um termo, então o Céu também deveria ter um. Porque se a ameaça não é verdadeira, então a promessa também não o é. E se a “falsa ameaça” não tem outra finalidade senão afastar as pessoas do mal, então a “falsa promessa” não teria outra finalidade senão atrair os bons para o bem. Como ninguém pode aceitar essa segunda afirmação, logo é preciso rejeitar a primeira e repetir, com a Igreja, que o Inferno é realmente eterno.
Outros textos bíblicos poderiam ser examinados para mostrar que não será reaberta a porta àqueles que foram expulsos do Reino, mas convém dar uma olhada nos pronunciamentos do Magistério. Na época em que se realizou o IV Concílio de Latrão (1215), havia alguns que negavam a eternidade da condenação à ‘fornalha ardente’. Para corrigir isso, o maior dos concílios da Idade Média ratificou solenemente que “Ele [Jesus Cristo] virá no fim dos tempos para julgar os vivos e os mortos, para retribuir cada um segundo as suas obras, tanto aos réprobos quanto aos eleitos. Todos eles ressuscitarão com seus próprios corpos, que agora levam, para receberem de acordo com suas obras, sejam elas boas ou más; para os últimos, castigo perpétuo com o diabo; para os primeiros, glória eterna com Cristo” (Denz. 429).
O Inferno para os que morrem em pecado mortal
Seria necessária uma colossal ginástica verbal para conseguir que perpétuo (perpetuam em latim) signifique algo finito. Se juntarmos o que Jesus disse expressamente, que alguns não serão salvos, com que o Magistério disse, que a punição dos condenados será perpétua, a conclusão lógica e inevitável é que algumas pessoas realmente sofrerão punição perpétua, junto com o diabo. O que significa claramente que o “tanque de fogo” não estará vazio.
Alguém poderia objetar que o Catecismo da Igreja Católica ensina que “é na esperança que a Igreja pede que ‘todos os homens se salvem’ (1Tm 2, 4)” (parágrafo 1821). Mas há uma grande diferença entre pedir que todos se salvem e esperar que o Inferno esteja vazio. Nós devemos rezar e esperar que muitas pessoas se salvem, especialmente aquelas que nos são próximas. Mas essa esperança não pode apagar a convicção de fé expressa em outro parágrafo do mesmo Catecismo: “A doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, ‘o fogo eterno’” (CIC 1035).
Tudo fazer para salvar nossas almas da condenação eterna
Um inferno vazio desvaloriza a religião católica e deprecia as palavras de nosso Divino Redentor, que nos alertou muitas vezes para evitá-lo. Se suas palavras são meras ameaças sem execução, por que se preocupar e levar uma vida correta, se ninguém está indo para lá? A esperança de que o inferno esteja vazio não é uma miragem inofensiva, porque ela afasta as pessoas de uma prática séria da fé e desestimula que as pessoas façam apostolado para encorajar os outros a emendar de vida, voltar-se para Deus e ir para o Céu.
Ironicamente, a esperança otimista de que o inferno esteja vazio contribui muito para ajudar a enchê-lo. Santo Afonso Maria de Ligório, em seu livro Preparação para a Morte, escreveu:
“Um autor erudito ensina que a misericórdia de Deus mergulha mais almas no inferno do que a sua justiça; porque os pecadores, confiando imprudentemente na misericórdia, não param de pecar e são condenados”.
O que isso significa para nós? Que devemos estar vigilantes quanto ao cuidado de nossas almas. Que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evangelizar as pessoas que nos rodeiam. Que devemos rezar muitas vezes a Nossa Senhora: “rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte”. E a melhor maneira de fazê-lo é rezar diariamente o terço ou, melhor ainda, o rosário inteiro.