A predominância dos problemas morais na questão social
A passagem por esta capital de um ilustre Prelado americano, que se dedica especialmente ao apostolado entre os agrários, veio tornar presente um problema que os brasileiros precisam considerar muito de perto.
Com efeito, somos essencialmente um país agrícola e, por maior que seja entre nós o desenvolvimento industrial, os problemas agrícolas ainda são os que mais de perto nos interessam.
Por isto mesmo, tem grande importância entre nós tudo quanto se refira ao operariado rural.
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Nos campos como nas cidades, a questão social envolve duplo aspecto, econômico e moral.
Do ponto de vista econômico, a situação do operariado rural tem seguido as vicissitudes das regiões em que trabalha. Na generalidade dos casos, não lhe falta alimento (excetuamos, por exemplo, como é bem de ver, certas zonas, como o Ceará, em que as condições climatéricas exercem um efeito nefasto sobre a economia). Não precisamos de agasalho, em quase toda a extensão do território nacional, e o pouco que se precisa para enfrentar nossos invernos benignos, é barato e durável. O caipira, e em geral o trabalhador rural, parece, pois, ao abrigo das necessidades mais imediatas. Vista a questão só por esse lado, poder-se-ia dizer que não temos um problema social agrário no Brasil.
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Mas essa noção é falsa. O que se passa entre nós, neste particular, atesta de modo claríssimo apredominância dos problemas morais na questão social. Mesmo nas zonas de nosso sertão, em que a abundância é quase paradisíaca, existe um problema social. Ele não tem raiz econômica, mas psicológica. Não é que os recursos da terra não bastam para o homem. O homem é que não está suficientemente desenvolvido para se por à altura da uberdade de seu solo.
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Há, no fundo de nosso caipira, uma inapetência profunda e geral. Não é apenas, que ele tenha fastio em relação ao alimento. É um fastio universal. Tudo lhe basta. Um nada já lhe sobra. E a sobra o irrita. Basta-lhe a farinha como alimento, num solo onde abundam frutos de toda espécie. Basta-lhe como morada a tapera escura e decadente, quando lhe sobram meios para construir uma habitação fresca, arejada e convidativa. Em matéria de teto, só o simples sapé. Em matéria de paredes, terra amassada. A caiação é um luxo. E, por isto, não o incomoda que sobre a superfície branca das paredes se notem largos trechos escalavrados, em que aparem a cor triste e feia da taipa. Chão? Terra batida basta. Jardim? Um cercadinho avariado por onde passam aves e porcos, feito de material precário e pobre. Nestes cercadinhos, raros os legumes, raríssimas as flores. Em abundância bichos e criançada. Por que tudo isto? Por que nosso caipira tem preguiça? Mas ele venceria por certo essa preguiça se sentisse o imenso mal da vida em que está. Sua auto-suficiência é a causa talvez mais profunda pela qual nosso caipira vive pobre e doente, como Jó em seus piores dias. E isto na própria terra onde o caipira poderia ter a fortuna e o esplendor dos dias em que Jó era próspero e feliz.
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O mais curioso é que essa inapetência, se é um defeito em si, revela a grandeza de certas qualidades de que é rica a alma caipira. Assim, a primeira coisa que impressiona na miséria do caipira é o que poderíamos chamar talvez a transcendentalidade de seus pensamentos. Não é preciso ser grande psicólogo para sentir toda a força de contemplação que há na inércia do caipira. Perdido, em seu vasto e melancólico mundo interior, ele se distrai com suas impressões, idéias, anseios, com tudo quanto há de rico e indefinido em sua alma, como um espírito mais trivial, mais burguês, se distrairia contemplando sua biblioteca, seus móveis ou melhor ainda, as prateleiras de vinho de seu bar e os álbuns de sua discoteca moderna, rica em sambas, frevos, etc. Indiscutivelmente, há mais pobreza na trivialidade do burguês, que na espiritual indigência do caipira. Mas o homem nem é só corpo, nem só alma, e toda a civilização que vive só do corpo ou só das especulações da alma, por isso mesmo é falha. A superioridade de espírito do caboclo não é titulo que justifique sua inércia. É, antes, motivo para que se aproveite seu potencial interior na construção de um Brasil grande.
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Outra nota que impressiona no lar caboclo é a largueza. Vivemos em um ambiente em que os maiores plutocratas são agarrados, pequeninos e egoístas como os mais ínfimos burgueses. A avidez e a ganância do proletariado neo-pagão também é bestial e repugnante. O caboclo, pelo contrário, na sua miséria semi-voluntária, tem larguezas de um “grand seigneur”. À sua mesa – pobre embora – sempre há lugar. Lugar, primeiramente, para os filhos que Deus manda, e para os filhos dos outros, que o infortúnio deixa na orfandade. Lugar ainda, para toda espécie de parentela. Lugar, finalmente, para os estranhos de toda marca, em cujo favor a hospitalidade cabocla, sempre desinteressada, sabe multiplicar estranhamente os recursos fornecidos pelos rudimentos de horta e de pomar, em meio dos quais a velha tapera vai lentamente caindo em ruínas.
E sabe ser gentil. Cerimonioso por índole e por feitio, infenso por dignidade nativa ao que chamaríamos “costumes modernos”, esse modo descabelado de falar, de sentir, de se portar, o caipira ainda mesmo quando desfigurado pelo amarelo de dentes sujos e cariados, metido em uma roupeta que conserva restos muito indecisos de sua antiga cor branca, ou das listas de cor que outrora a riscavam, sabe fazer uma coisa que a maior parte dos “modernos” esquecem. Acocorado sem graça nem linha à soleira da porta, contemplando com displicência as franjas em que se desfazem junto à canela os canos de sua calça, distraindo-se mesmo infindamente, em seguir com os olhos a marcha de uma minhoca ou o movimento lento dos dedos do pé riscando o chão, ele sabe entretanto em certas circunstâncias erguer-se de corpo e alma, tomar atitude, dizer sim ou não, com um porte que lhe dá aquilo que a gomalina, o esmalte de unhas, os cremes para a pele, e as casimiras custosas não dão a nenhum granfino de hoje: respeitabilidade.
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É bem de ver que essa alma cabocla era um grande potencial a ser educado. Se se insuflasse nessas qualidades nativas uma formação cristã genuína e vigorosa, que transformasse a meditação, rica mas infecunda, em interioridade disciplinada e produtiva; se se conservasse e se cristianizasse esse magnífico predomínio do espiritual sobre o material, mas se criasse ao lado dele um sentimento de respeito e consideração para com o corpo humano, o “irmão corpo”, diria São Francisco de Assis; se a graça de Deus conduzida nas asas de um apostolado, diligente e sobrenatural, pousando sobre essa natureza favorável, desenvolvesse para Deus todas estas qualidades, o Brasil muito teria a esperar, não só do braço mas sobretudo da alma cabocla, para a formação da sua nacionalidade.
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Estaria aí o campo para um incomparável apostolado. Mas infelizmente o rádio veio comprometer tudo. Ele infesta os lugarejos do interior, penetra nas fazendas, chega não raras vezes até as colônias e inunda com seus borbotões a nobre e imensa placidez daquelas atmosferas patriarcais. Ele as enche, as domina, sufoca nela qualquer coisa que não seja ele, degrada tudo quanto não exista segundo o espírito dele, sacode tudo, tudo abafa, tudo transforma. As mentes incendiadas pelos ecos dos dancings perdem a sensibilidade primitiva para as coisas da natureza, só vêm na “roça” uma prisão ignóbil, na mata um antro verde, em que habitam répteis e feras, no qual paira o fantasma do tédio e da monotonia. E daí um êxodo maciço (já muito grande antes do rádio, pela miragem distante da grande cidade) hoje quase incoercível. Êxodo terrível pela aglomeração das grandes cidades, e talvez ainda mais terrível pelo complexo que cria nos que ficam atados ao “hinterland” [interior], ardendo em sonhos irrealizáveis, inadaptados e hostis ao meio de que não puderam libertar-se, sentenciados da natureza, em lugar de cidadãos felizes e descuidados, dos palácios silvestres do Brasil.
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E por isto mesmo o apostolado agrário se torna ainda mais urgente. Ele está à espera de grandes apóstolos que o concebam na pureza do espírito da Igreja, o lancem em estrita obediência para com a Igreja, e o façam com o exclusivo intuito de servir à Igreja.
É o que nos sugeriu a visita do distinto Prelado norte-americano.
(*) Legionário, 18 de fevereiro de 1945
A Igreja envia muitos missionários para o exterior, principalmente para a África, também para socorrer aquele povo tão sofrido e esquecido da humanidade. No entanto estamos esquecendo de nosso povo que vive nos sertões, não só do nordeste, más em todo o país. Falta realmente a assistência da Igreja, infelizmente somos omissos no atendimento a esse povo que na simplicidade vai vivendo, constituindo família e como está dito, abraçando órfãos de outras famílias e colocando-os em sua mesa para a mínima refeição existente. É triste más é verdade. A Igreja Católica precisa sair de seu interior para atender o povo onde ele estiver. É recomendação do Papa Francisco: “Saiamos às ruas”. Sim Santo Padre, devemos sair às ruas para acolhermos esse povo que está sedento de conhecimentos, de vivencia com o seu exterior.
O problema do Brasil é a forma que o catolicismo aqui se desenvolveu.