Em rumorosa vitória, na Grã-Bretanha o Partido Conservador obteve a maioria, conquistando 331 das 650 cadeiras do Parlamento e reelegendo assim o primeiro-ministro David Cameron. A vitória foi qualificada de “nocaute triplo” por um diário paulista,(1) pois os líderes dos partidos relevantes — Trabalhista (esquerda), Liberal Democrata (centro) e UKIP (extrema-direita) — renunciaram à chefia dos mesmos como única saída após a humilhante derrota. A exceção foi o Partido Nacional da Escócia (SNP), de tendência esquerdista e separatista, que levou 56 das 59 cadeiras reservadas à Escócia, em detrimento do Partido Trabalhista, também de esquerda.
Tido como força em ascensão, o Partido Trabalhista ficou entretanto com 99 cadeiras a menos que seu rival conservador. O Partido Liberal Democrata, da coalizão do governo, ficou com apenas oito assentos, após perder 49. O Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP), que em 2014 havia levado o maior número de deputados ao Parlamento Europeu, só elegeu um.
O vitorioso primeiro-ministro Cameron sofria o desgaste de fim de mandato e fazia propostas tidas como antipáticas: austeridade fiscal, equilíbrio das contas públicas, e a promessa — esta sim, popular, mas abominada pelo establishment político e midiático — de um plebiscito que pode tirar o país da União Europeia. Triunfou graças a um “levante dos conservadores”, como escreveu outro diário paulista.(2) Tal levante foi um reflexo no Reino Unido de uma tendência imperante hoje em muitos países. Assim, o resultado foi extraordinário para os conservadores, calamitoso para os trabalhistas, funesto para os liberais-democratas, destrutivo para o UKIP, e apenas o previsto para os nacionalistas escoceses.
Contudo, a derrota mais cruel coube à totalidade dos institutos de pesquisa, que predisseram em uníssono uma disputa acirrada e um futuro incerto para um país dividido após um governo conservador antipatizado. O eleitorado desmentiu essas projeções enviesadas.
De há muito que as “bolas de cristal” dos contos de fadas foram substituídas por complicados algarismos processados por computadores de ignotos programadores. Mas esses sofisticados engenhos estão se embaçando um pouco por toda parte. E os ingleses não gostam nada de números fajutos, assim como não apreciam trens e relógios atrasados. O fiasco está gerando uma autocrítica que, oxalá, afaste novas distorções dos processos eleitorais — aliás, como têm ocorrido no Brasil…
Seja como for, todos erraram: institutos internacionais ou nacionais reputados ficaram além da margem de erro.(3) O oráculo falhou. E os especialistas em modelos matemáticos aplicados às ciências políticas não sabem explicar o fracasso. Alega-se que mudanças de opinião de última hora, não captadas pelas pesquisas, teriam burlado o vaticínio. Mas ninguém revela como foi provocada essa mutação surpreendente.
Do ponto de vista cultural, histórico, tendencial e religioso, a união britânica está dividida nos reinos que a compõem, em dois blocos radicalmente divergentes, que convivem pacificamente no dia-a-dia.
De um lado, encontra-se o bloco dos herdeiros da revolução protestante, sensual e igualitária, divididos entre uma maioria de anglicanos moderados e uma minoria de presbiterianos fanáticos. Eles prepararam a revolução industrial e a transformação do campesinato em operariado massificado, concentrado nas cidades industriais de fumacentas chaminés, nas quais Marx sonhou recrutar os soldados da luta de classe comunista. Mais tarde, explodiu a revolução cultural anárquica, simbolizada pela música dos Beatles e dos Rolling Stones, que eclodiu como bolha nauseabunda nesse ambiente de pântano em decomposição. É claro que essa metade psico-cultural do Reino Unido na hora de votar escolhe a esquerda.
Do outro lado, há um vasto bloco, que se reconhece na veneração da coroa britânica, de suas cerimônias e de seu esplendor hierárquico e paternal. Recentemente esse bloco vibrou com a descoberta e posterior enterro dos restos mortais do rei católico Ricardo III, último monarca medieval e derradeiro membro da dinastia Plantageneta, substituída pela dinastia Tudor que precipitaria o reino no protestantismo. É claro que esse filão psicológico e moral propende para as instituições e as propostas conservadoras.
Evidentemente essa divisão é simplificada para efeitos de exposição, pois é claro que, mesmo entre os esquerdistas, encontra-se um número não desprezível de adeptos da Coroa.
Na véspera das eleições, a família real alegrou intensamente esse bloco conservador com o nascimento de Charlotte Elizabeth Diana, filha de William, duque de Cambridge, e de sua esposa Kate, portanto bisneta da rainha Elizabeth II. Enquanto o coro da Real Artilharia cantava Isn’t she lovely?, no Hyde Park e na Torre de Londres, 124 tiros de canhão comemoraram o feliz evento: a coroa mais prestigiosa da Terra tinha mais um continuador de seu passado multissecular!
A princesinha nasceu com atraso, mas com saúde perfeita. Não houve aspecto da maternidade que não fosse prestigiado, pela condição real dos pais, nem objeto de enternecida e demorada consideração. Nos navios da frota de Sua Majestade, marinheiros formaram sobre a coberta a palavra SISTER. A recém-nascida foi apresentada ao mundo 10 horas depois de vir ao mundo e agora é Sua Alteza Real a Princesa Charlotte de Cambridge. Para homenagear a bisneta, a rainha Elizabeth II compareceu a uma cerimônia vestida de rosa.
A popularidade da família real britânica se mantém nas pesquisas acima de 70%, amparada principalmente pela benquerença desse filão conservador. Próximo da clínica, Margaret Tyler, uma mulher do povo, levou uma garrafa de champanhe para os reais progenitores e declarou à imprensa: “Estou aqui porque a rainha está no Palácio de Buckingham por nós”. Esse filão se sentiu reconfortado pela vinda ao mundo da enternecedora princesinha. Espíritos sagazes não deixam de pesar esses movimentos coletivos de alma na hora de analisar as grandes mudanças da História. — Terá isso pesado na vitória surpreendente do conservadorismo político inglês?
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Notas:
- “Folha de S. Paulo”, 9-5-15.
- “O Estado de S. Paulo”, 9-5-15.
- Cfr. “O Estado de S. Paulo”, 9-5-15.
Lá no Reino Unido, os institutos de pesquisas falharam redondamente! Enquanto no Brasil eles acertam na mosca, não é estranho