O velho do Restelo em roupa nova

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    0resteloÉ muito louvado o gênio de Camões ao cantar as navegações portuguesas, pondo em realce o que nelas havia de sublimes propósitos, coragem intrépida, fé indômita. Menos salientado, porém, tem sido o fino senso psicológico que o autor dos Lusíadas demonstra em sua epopeia, ao descrever o estado de espírito dos que objetavam contra tão altos ideais.

    As grandes navegações encontraram, entre os quinhentistas, entusiasmo e dedicação, mas também não poucas críticas. Espíritos securitários, terra-a-terra, incondicionalmente apegados aos pequenos prazeres miúdos da vida de todos os dias, não suportavam ver nas navegações o fantasma do risco, o perigo dos mares, a incerteza da volta. E tinham por crueldade o sacrifício daqueles que deixavam em terra pais, irmãos, esposas e filhos, a fim de expandir para além das ilhas e das águas as fronteiras da Cristandade e os limites da brava nação lusa.

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    Tais oposições, os Lusíadas as descrevem simbolicamente no famoso episódio do velho do Restelo, que increpava da praia os navegantes que partiam (C. IV, 90 a 104).

    No fantástico empreendimento lusitano, o velho só via “glória de mandar, vã cobiça”, mostrando-se avesso a “uma aura popular, que honra se chama”.

    Obcecado pelos riscos: “A que novos desastres determinas / De levar estes reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas?”.

    Medo de que Portugal se despovoe com as navegações: “Por quem se despovoe o Reino antigo / Se enfraqueça e se vá deitando a longe?/ Buscas o incerto e incógnito perigo”.

    Chega a amaldiçoar o primeiro que construiu um veleiro: “Ó maldito o primeiro que no mundo / Nas ondas velas pôs em seco lenho, / Digno da eterna pena do profundo”.

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    As objeções do velho do Restelo não se fundavam, porém, em fatos maus nem utilizavam argumentos pérfidos. Eram boas e legítimas as realidades que ele invocava, como a família, que sangrava por se ver repentinamente privada de um de seus membros ou a nação despovoada.

    O erro dele consistia em negar que há frequentes circunstâncias na vida humana em que uma vocação mais alta conduz uma pessoa, ou mesmo um povo, a sacrificar situações legítimas, mas de menor elevação moral. Isto se aplica a vocações religiosas, como também a chamados de ordem temporal ou temporal-religiosa de grande vulto, como foram as cruzadas e as grandes navegações.

    Quando as famílias são verdadeiramente bem constituídas –– não apenas do ponto de vista legal, mas principalmente espiritual –– aceitam o sacrifício pedido com alegria, pois a renúncia constitui neste caso a fina ponta do amor de Deus.

    Hoje em dia tudo se passa de modo mais sutil do que na época quinhentista. Não é uma pessoa nem um povo que estão sendo induzidos a renunciar a ideais elevados, mas as nações em seu conjunto vêm sendo impelidas a abandonar toda e qualquer sublimidade e a própria Religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Pior ainda, o fundamento dessa incitação não é mais a afeição familiar, mas uns alegados “direitos humanos”, que veem no homem uma espécie de animal sem alma, ao qual devem ser resguardados apenas a paz e o bem estar material.

    O direito à propriedade, a conhecer a verdade, a falar em nome de princípios religiosos perenes, a defender os atributos de Deus, tudo isso é excluído dos tais direitos.

    Baseiam-se eles numa igualdade utópica e medíocre, que impede qualquer elevação de alma ou de ideal, qualquer elã de espírito que busque subir acima da vulgaridade reinante.

    Tal é a nova roupagem com que se apresenta em nossos dias o velho do Restelo.

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