Em minha já longa vida sacerdotal, encontro-me com colegas de vocação aqui, ali e acolá. Isso constitui sempre ocasião para animadas conversas, em geral profundas e sérias, a respeito da Santa Igreja e de seus ministros. Mas, se de um lado há muita empatia, de outro há incompreensões que raiam à animosidade, sobretudo quando o assunto versa sobre a atual crise na Igreja.
Findas as conversas, nem por isso os temas nelas tratados, os aspectos psicológicos e as circunstâncias que as cercaram, desaparecem da memória. Eles voltam, com frequência com indagações sobre a natureza e a oportunidade do que se conversou, a maior ou menor cortesia e respeito havidos então no trato, a clareza e a lógica ou a falta delas ao expor as ideias, a coerência ou não dos argumentos apresentados, ou seja, um retrospecto ou balanço.
Não pense o leitor que pelo fato de se tratar de sacerdotes, tais conversas sempre convirjam dentro de uma respeitável cordialidade para um ponto comum, que não poderia deixar de relacionar-se com a maior glória de Deus. No entanto, dada a relatividade de tudo em nossos dias, infelizmente isso de há muito deixou de ocorrer
O fato de se celebrar a missa tridentina promulgada pelo Concílio de Trento, de se reportar ao concílio Vaticano I e a todo o passado da Igreja visando à salvação das almas, à glória de Deus e à luta em defesa dos princípios morais, já basta para provocar não poucas dissensões entre as pessoas do clero. E elas tendem a crescer quando aqueles que defendem esse passado santo e glorioso não abrem mão do uso da batina, do barrete ou do chapéu eclesiástico, da faixa e da manteleta, como foi sempre desejado pela Igreja.
Historicamente, a partir da década de 1950, acentuando-se nos anos 1960, as ideias heterodoxas e ambíguas no campo político, social e religioso começaram a grassar nos meios católicos. Além dos costumeiros disfarces, a admissão de princípios contraditórios, como a colocação lado a lado do erro e da verdade, não poderia deixar de gerar confusão entre os fiéis.
Mas não era só nos fiéis. Em uma conversa que certa vez tive com um padre idoso e experiente, bem formado intelectualmente, ele me disse que a parte essencial e mais importante da Santa Missa era o “tomai e comei“…
Retruquei-lhe de boa fé que tal não era o ensinamento da Igreja, pois a Consagração é a parte essencial da Missa, quando se realiza o sacrifício incruento do Calvário, sem o qual não haveria o “tomai e comei”… Com efeito, as palavras da Consagração, pronunciadas distintamente para o pão e para o vinho, renovam o santo sacrifício da cruz e são como que uma lâmina ou um punhal que traspassam a Vítima e A imolam misticamente.
Meu interlocutor se contrapôs, dizendo que isso remontava ao Concílio de Trento no combate aos protestantes. Respondi-lhe que há uma missa votiva às quintas-feiras, na qual se exalta Jesus Cristo Sumo e Eterno Sacerdote. Nela o padre lê texto da epístola aos Hebreus, falando de Cristo que não se glorificou a Si mesmo para se tornar pontífice, mas o fez Aquele que lhe falou: “Tu és meu Filho, hoje te gerei“.
De igual maneira, está dito em outro lugar: “Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec”. Lê-se ainda nas Sagradas Escrituras: “Na verdade, todo pontífice é escolhido entre os homens e constituído a favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Sabe compadecer-se dos que estão na ignorância e no erro, porque também ele está cercado de fraqueza. Por isso, ele deve oferecer sacrifícios tanto pelos próprios pecados quanto pelos pecados do povo. Ninguém se apropria desta honra, senão somente aquele que é chamado por Deus, como Arão” (Hb. 5, 1-4).
Ao texto citado, o meu interlocutor disse que se tratava do Antigo Testamento… Respondi-lhe que a Igreja, ao colocar uma missa votiva todas as quintas-feiras do ano, passa a ser matéria de fé, mesmo que o texto do referido Apóstolo faça menção aos Hebreus, pois “lex orandi lex credendi”. Insisti sobre a questão da comunhão, tendo lhe deixado claro que a Missa não era uma ceia, mas um sacrifício propiciatório.
Outra conversa foi com um sacerdote também idoso, já bem próximo da morte, que levantou a questão das pessoas desajustadas na vida matrimonial, que se encontravam numa situação insolúvel. Segundo ele, a Igreja deveria rever a parte disciplinar concernente à matéria, a fim de resolver os casos em que as pessoas não podem receber os últimos sacramentos. Lembro-me de ter reportado a ele uma experiência de Santo Afonso de Ligório.
Moralista de renome, o santo se referiu ao caso de uma jovem que, estando para morrer, deu sinais de conversão e de mudança de vida. Ela manifestou então ao seu confessor o desejo de ver seu cúmplice, a fim de convencê-lo a abandonar o pecado e também mudar de vida. O confessor não se opôs e até insinuou a ela que, para se sair bem naquele propósito, fizesse tal obra de caridade para seu antigo companheiro.
Aconteceu, porém, que, ao se deparar com o conluiado, a jovem se esqueceu de todos os bons propósitos e se voltou para ele com palavras carinhosas, dizendo-lhe que ia morrer, e, portanto, iria para o inferno, que estava certa disto, mas que não se importava em se condenar. E, assim fazendo, caiu morta. Santo Afonso conclui que, para quem se escraviza ao vício impuro, é muito difícil emendar-se e se converter a Deus de todo o coração.
Santo Afonso ao pregar um retiro para sacerdotes comenta ainda o caso de um deles que levava vida de pecado, mas que se acostumara a celebrar naquele estado, contradizendo o ensinamento moral de que quem vive em pecado morre nesse estado – talis vita, finis ita. Ao celebrar a Missa no dia seguinte, quando ao pé do altar pronunciou a oração “Judica me Deus...”, ali mesmo morreu e foi julgado.
Sirvam tais lições aos leitores de que há maneiras de ser, de comportar-se e de viver pelas quais o próprio pecador procura justificar a sua conduta, passando com isso a defender erros, vícios, pecados, procedimentos que vão paulatinamente obscurecendo sua inteligência e endurecendo sua vontade, até ele passar a defender heresias, ainda que camufladas. Lembremo-nos da máxima: Tal vida, tal morte.