A família da princesa russa Marie Vassiltchikov teve de deixar seu país quando ela tinha pouco mais de um ano de idade, devido à perseguição de Lenine aos nobres. Tendo perdido suas propriedades, a família passou por vários países e se dispersou. Em 1940, aos 23 anos, Marie residia em Berlim com sua irmã Tatiana, exercendo funções burocráticas num ministério governamental, onde teve contato estreito com os conspiradores que tentaram matar Hitler no famoso atentado do coronel Stauffenberg. Transferiu-se depois para Viena, como enfermeira, na fase final da guerra.
Marie escreveu um diário extremamente interessante e ilustrativo, abarcando todo o período da guerra. Ele foi publicado em inglês depois de sua morte, ocorrida em 1978, com acréscimos explicativos de seu irmão Georgie. Para conhecimento dos leitores citamos aqui alguns poucos trechos, extraídos da sua edição em língua portuguesa: Diário de Berlim 1940-1945, Editorial Boitempo, São Paulo, 2015.
Situação em Berlim e Viena
- “Um novo decreto do governo: nada de banhos, exceto nos sábados e domingos!” (p. 29)
- “Nosso vizinho ao lado contou que, enquanto estava na fila do lado de fora do açougue onde costuma comprar carne, viu um burro morto sendo carregado para dentro pela porta dos fundos; ele notou pelos cascos e pelas orelhas, que ficaram de fora da lona que o cobria. Então é daí que os nossos schnitzels (bifes) semanais podem estar vindo!” (p. 77)
- “Hitler parecia ter algum encantamento mágico que o protegia, pois todo atentado contra ele falhava.” (p. 140)
- Enterros em Viena, na fase final da guerra: Poldi Fugger, general condecorado da Força Aérea, “continua aqui para o enterro de sua mãe. Até o momento o enterro não pôde acontecer devido à falta de caixões. Parece que num primeiro momento as pessoas usavam os papelões que cobriam as janelas quebradas [pelos bombardeios] em muitos prédios, mas agora até isso está em falta. Alguns dias atrás Meli Khevenhüller me disse que ela me proibia de morrer agora: ‘Você não pode fazer isso conosco’, sugerindo que meu funeral iria causar problemas demais! Não só faltam caixões, mas os amigos e parentes do morto devem eles mesmos cavar a cova, pois todos os coveiros foram recrutados. Assim, em muitos lugares, há pilhas de caixões improvisados esperando o enterro. Enquanto durar o inverno, essa situação será apenas estranha, mas só Deus sabe o que acontecerá quando a neve derreter na primavera. Dias atrás foi realizado o funeral de um coronel. Havia até uma banda militar. Quando o caixão estava baixando para a cova, a tampa se abriu e apareceu o rosto de uma mulher grisalha. A cerimônia prosseguiu!” (p. 392)
Bombardeios britânicos em Berlim
- “De noite eu estava numa festa quando o alarme soou. Os tiros eram muito altos e o pobre Mäxchen Kieckbusch, cujos nervos ficaram em frangalhos depois de ser ferido na espinha, na França, rolava no chão gemendo sem parar: ‘Eu não posso mais escutar isto’.” (p. 73)
- “Ataque aéreo. Eles estão me atacando os nervos. Agora meu coração dispara cada vez que começam as sirenes.” (p. 101)
- “Bombas caíam por toda parte: sobre a casa, a igreja e outros prédios. Ao todo, cerca de trezentas foram lançadas, de todos os tipos: os chamados ‘torpedos aéreos’, bombas explosivas, incendiárias etc. Um desses torpedos atingiu a igreja, que pegou fogo imediatamente. Um jovem correu para dentro, pegou o ostensório e o trouxe para fora, queimando as mãos gravemente.” (p. 120)
Cumplicidade dos Aliados com o comunismo soviético
- 13-4-1943: Encontrados numa cova 4.400 corpos de poloneses assassinados em Katyn, perto de Smolensk (Rússia). Tratava-se de poloneses que tinham sido aprisionados pelos soviéticos depois da invasão da Polônia. “A descoberta de Katyn foi altamente embaraçosa para os Aliados […]. Havia uma grande corrente de simpatia pelos ‘galantes aliados soviéticos’, o que tornava difícil o reconhecimento de que eles pudessem ser capazes de tal iniquidade. E assim um pacto de silêncio com a complacência dos Aliados bloqueou qualquer outra menção ao assunto até o final da guerra. […] Como entre as vítimas de Katyn havia 21 professores universitários, mais de 300 médicos, 200 advogados e 300 engenheiros, além de centenas de professores de escola, jornalistas, escritores e industriais, na Polônia o massacre é visto como uma tentativa de eliminar todos os não comunistas que poderiam liderar o país após sua libertação.” (p. 171)
- Liderados pelo general Andrei Vlassov, o ‘Exército de Libertação da Rússia’, composto por russos anticomunistas, lutou contra a Rússia soviética. Em 1945 “se renderam aos Aliados, que, invocando os acordos de Yalta, os entregaram à atenção misericordiosa de Stalin. Muitas dessas ‘vítimas de Yalta’ preferiram se suicidar a voltar para casa. As outras foram fuziladas imediatamente ou enviadas para o gulag, de onde poucas retornaram. Vlassov, com seus generais superiores, foi enforcado em Moscou em 1946.” (p. 258)
- “Os cossacos, cuja maioria era tradicionalmente anticomunista, foram dos combatentes mais motivados ideologicamente […]. Nas últimas semanas da guerra eles abriram caminho até a Áustria, onde cerca de 60 mil se entregaram ao Exército britânico. Como aconteceu com o ‘Exército de Libertação da Rússia’, do general Vlassov, os ingleses os fizeram acreditar que estavam sendo embarcados para outros lugares, mas, invocando os acordos de Yalta, os forçaram a voltar para a União Soviética. Muitos, inclusive mulheres e crianças, cometeram suicídio. Os oficiais superiores foram enforcados, e os subalternos fuzilados. Os outros desapareceram nos ‘gulags’, de onde poucos voltaram.” (p. 300)
Exemplo edificante
“Entre os prisioneiros dos nazistas (muitos deles cristãos fervorosos) havia vários clérigos. Através de subornos ou conseguindo a colaboração dos guardas por outros meios, os padres católicos conseguiam ouvir os prisioneiros em confissão e dar absolvição; um dos presos auxiliares trazia uma carta com a confissão e levava outra com a absolvição, junto com uma hóstia consagrada em outro envelope. Assim, apesar do confinamento solitário e da regra de silêncio absoluto, formou-se uma rede de solidariedade cristã que nem mesmo a Gestapo conseguiu romper” (p. 365). Sem entrar no mérito da validade de uma absolvição por carta, o certo é que uma tão grande fé atrai o perdão e a misericórdia de Deus.
Nazistas contra a nobreza
- O jornal oficial da SS [organização paramilitar nazista], Das Schwarze Korps (A Corporação Preta) tem escrito violentamente sobre a “blaublütige Schweinehunde uns Verräter” (“a corja traidora de sangue azul”). (p. 368)
- Comentário sobre a situação da nobreza austríaca depois da anexação do país pela Alemanha: “Há uma grande diferença, eu acho, entre a geração dos aristocratas austríacos, que dirigiam um império, e a geração atual que, quase todos, são profundamente provincianos e, mesmo quando há muito dinheiro à volta, mal e mal conseguem falar alguma língua estrangeira e muito poucos estiveram fora da Áustria por algum tempo. Além disso, embora sejam charmosos e em geral uma boa companhia, eles são pesos-leves demais, poucos têm aquelas qualidades fundamentais e sólidas que caracterizam os bons alemães da mesma geração, dos quais conheci tantos em Berlim. Isso pode ser em parte, é claro, consequência do Anschluss (anexação) de 1938, com suas restrições subsequentes (serviço militar, trabalho compulsório etc.), a que se seguiu esta guerra, quase de imediato.” (p. 387)