“Folha de S. Paulo”, 26 de fevereiro de 1969
A Campanha da Fraternidade convoca todos os brasileiros para uma reflexão sobre a máxima “Somos todos irmãos, somos todos iguais”. Resolvi assim dedicar a tal reflexão minhas palavras de hoje que, se outros méritos não possuem, têm pelo menos o de serem difundidas num jornal de muito larga circulação.
Desde logo, entretanto, percebi a dificuldade do tema. Por todas as vibrações de afetividade que lhe sobem do mais profundo do ser, pela clareza privilegiada com que – mesmo quando inculto – intui as grandes verdades simples e sublimes da vida, enfim pela marca que nele imprime sua tradição cristã, o brasileiro está persuadido de que somos todos iguais e irmãos.
Assim, por exemplo, a miscigenação que tem por fundamento a igualdade e a fraternidade de todas as raças, é uma constante profunda de nossa História. O que dizer, pois, de novo a nosso público sobre o assunto?
Sem dúvida, terão pensado nisto os mentores da Campanha. E não terão desejado para ela a repetição de chavões batidos, mas a evocação de aspectos esquecidos ou a retificação de conceitos mal entendidos, concernentes quer à igualdade quer à fraternidade. É este o único modo de se dizer ao público algo que para ele seja novo a respeito desses temas.
Vencida assim a perplexidade preliminar, pus-me à cata de algo “novo” a dizer. E não tardou que a memória auditiva mo trouxesse à mente.
Igualdade. Fraternidade… qual é mesmo o outro vocábulo que falta? Ah, é Liberdade. Assim se reconstituía em meu espírito a trilogia da Revolução Francesa. E ao mesmo tempo um amálgama de imagens se apresentava em tumulto à minha atenção: ensinamentos divinamente luminosos do Evangelho, conceitos lapidares do Direito Romano, franquias medievais, tiradas líricas de Rousseau, sarcasmos de Voltaire, a sangueira e a famosa Madame Roland a bradar, rumo à guilhotina, “liberdade, liberdade, quantos crimes são cometidos em teu nome”.
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Não, nada de grande, nada de saudável, nada de durável se construiu em matéria de cultura e civilização sem tomar em conta uma justa medida de liberdade, de igualdade e de fraternidade.
Porém os maiores crimes dos séculos recentes foram cometidos precisamente em nome de uma liberdade sem freios, de uma igualdade absoluta e de uma fraternidade sem discernimento. Para o demonstrar, não é necessário subir à Revolução Francesa; basta considerar o filho furibundo que esta deu à luz, o comunismo. Cobre ele hoje a terra de violência. Os executores imediatos de sua ação violenta o mais das vezes nada entendem das elucubrações filosóficas e econômicas tão esfumaçadas de Marx. Move-os em geral um raciocínio primário que poderíamos resumir assim: a) todos os homens são irmãos; b) o irmão deve desejar para seus irmãos tudo quanto de bom ele tem para si; c) logo, a igualdade completa é a conseqüência forçosa da fraternidade autêntica; d) toda desigualdade é pois uma injustiça; e) de sorte que o irmão vítima de uma injustiça tem o direito de pedir, e até de impor a igualdade em nome da fraternidade. A última conseqüência da fraternidade.
Para os que se deixaram enredar neste sofisma, parece-me que algumas reflexões sobre a verdadeira fraternidade podem trazer algo de novo.
Assim, creio, se patenteia um dos aspectos de mais palpitante atualidade da Campanha da Fraternidade.
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No âmago da problemática acima enunciada, está uma questão que é fácil pôr em termos concretos.
Imagine-se uma família com quatro gêmeos, todos homens, inteiramente parecidos pelo aspecto físico, pelos gostos, pela mentalidade, pelo nível de inteligência. Entre eles reina a mais inteira igualdade.
Imagine-se outra família com quatro filhos diferentes pelo sexo, pela idade, pela capacidade pelo nível de inteligência, por todo o feitio pessoal. Mas que sabem harmonizar e pôr em colaboração essas diversidades, pela força de um mútuo e profundo afeto.
Pergunta-se: em qual das duas famílias existem condições de convivência fraterna mais perfeitas? Em outros termos, a verdadeira fraternidade resulta da igualdade completa? Ou antes de uma igualdade fundamental temperada por toda uma escala de valores diversificados e hierarquizados?
Assim posto o problema, veio-me à memória uma frase de Maurois (na biografia de Disraeli) a respeito de um grupo de amigos: “Como todos os verdadeiros amigos, eles se pareciam pouco uns aos outros“. A amizade tem muito de comum com o amor fraterno. Este, como aquela, estagna e morre na monotonia irrespirável da igualdade total. Pelo contrário, vive, palpita e frutifica em um clima de desigualdades proporcionadas e harmônicas. E com isto rui por terra a identificação comunista entre igualdade total e fraternidade perfeita. E a “fraternidade”, em lugar de desfechar em lutas de classes e sangueira, dá em harmonia e cooperação construtiva.
Essa conclusão, tão lógica, me parece por demais importante para ficar desprotegida do apoio de algumas citações. Procuro-as nos documentos pontifícios.
Ouçamos a grande voz de Leão XIII: “Mais de uma vez Nós o declaramos: o remédio para esses males não será jamais a igualdade subversiva das ordens sociais, mas esta fraternidade que, sem prejudicar em nada a dignidade da posição social, une os corações de todos nos mesmos laços do amor cristão” (Aloc. de 24-1-1903 ao Patric. e a Nobr. Rom.).
Em seguida consultemos o pranteado Pio XII: “os irmãos não nascem nem permanecem todos iguais: uns são fortes, outros débeis; uns inteligentes, outros incapazes; talvez algum seja anormal, e também pode acontecer que se torne indigno. É pois inevitável uma certa desigualdade material, intelectual, moral numa mesma família (…). Pretender a igualdade absoluta de todos seria o mesmo que pretender dar idênticas funções a membros diversos do mesmo organismo” (Disc. de 4-6-1953 a um grupo de fiéis).
E por fim leiamos o tão citado João XXIII. “Disse ele reportando-se a Pio XII:
“Num povo digno de tal nome, todas as desigualdades que derivam não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas; desigualdades de cultura, de haveres, de posição social – sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da caridade mútua – absolutamente não são obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade” (Radiomens. De Natal de 1944) (Encícl. “Ad Petri Cathedram”, de 29-6-59).
Em relação ao artigo de Plinio Correia de Oliveira só há a lamentar que a sua luminosa lição tenha sido esquecida ou, pelo menos, varrida para baixo do tapete.
Constantemente a verdadeira doutrina da Igreja católica tem sido sistematicamente ignorada e, pior ainda, traída. Ha na realidade uma série de senhores que deveria ter por missão principal que a doutrina da Igreja permanecesse intocada e intocável e são eles que a desfiguram. Simultaneamente, em complemento da sua missão, deviam esclarecer os fieis, serem sempre um farol que desviasse do erro e tornam-se, mercê de uma autoridade que não têm mas que lhes emprestamos, guias para a perdição.
Eu sei, não são todos; talvez até possa dizer, hoje, que são poucos. Mas os restantes, acobardados, permitindo que a minoria atraiçoe Jesus são tão culpados como os outros, até porque sendo uma maioria, vivem sem fé, sem amor, indiferentes. Parece que para eles é muito pior indisporem-se com um bispo do que imporem a verdade de Deus.
Sempre brilhante Plinio Corrêa coloca um grande ponto de interrogação nas cabeças das pessoas a respeito dessa trilogia que tanto mal faz. Eu desde menino, na escola incutiram essas idéias e tomei veneno sem saber.
Prezado amigo Paulo Roberto Campos, permita-me responder à sua angustiada indagação:
porque os senhores “bispos” empenhados em semelhante campanha são flagrantemente materialistas e anticristãos…
Apesar de escrito pelo ilustre autor em 1969, este artigo é de uma atualidade impressionante! Ele poderia perfeitamente ser republicado como se fosse para um assunto de nossos dias: a “Campanha da Fraternidade-2010”, promovida pela CNBB com o leitmotiv “Economia e vida”.
Tal tema, tendo como pretexto o ataque ao capitalismo, defende o miserabilismo (tipo cubano). Para dar apenas um exemplo, basta considerar o empenho da CNBB com essa “Campanha da Fraternidade” em estabelecer no Brasil a limitação do tamanho das propriedades particulares, dividir as fazendas, etc. Assim, promovendo uma revolução — a luta de classes entre brasileiros.
Com a pseudo alegação de se construir “uma sociedade mais justa e igualitária” — a mesma alegação de Fidel Castro, quando subjugou Cuba ao regime comunista –, os Senhores Bispos da CNBB (refiro-me àqueles que participam do mencionado empenho) defendem a mesma igualdade social marxista condenada por tantos Papas.
Por que a CNBB, em vez de se preocupar com a salvação das almas — abandonadas e à mercê de tantas igrejolas ditas “evangélicas –, promove tal “Campanha da Fraternidade” preocupada com… economia?!