Esta secção tem tratado muitas vezes de ambientes enquanto criados por edifícios, móveis, paisagens, etc. Seria interessante acentuar que o elemento principal de todo ambiente é o próprio homem. Verdade evidente no que diz respeito às idéias que o homem externa, e aos atos que pratica, e menos evidente talvez no que poderíamos chamar os imponderáveis da presença humana: o porte, a atitude, o olhar.
Detenhamo-nos na análise do olhar humano.
Nosso primeiro clichê representa uma das personalidades mais insignes do movimento ultramontano francês no século passado, Dom Prospero Guéranger, O. S. B., fundador e Abade do famoso Mosteiro de Solesmes, restaurador da Sagrada Liturgia, escritor exímio, e grande amigo de Louis Veuillot.
A fronte larga, os traços acentuados e vigorosos, indicam inteligência e pujança de personalidade. Mas tudo quanto estes traços possam significar está resumido, condensado, e levado à sua mais alta potência de expressão nos olhos. Grandes olhos claros, cheios de luz, nos quais parece nunca se ter espelhado qualquer fraqueza ou qualquer baixeza humana. Grandes olhos que parecem feitos para a exclusiva consideração do que há de mais transcendental nesta vida e para os imensos horizontes do Céu. Mas ao mesmo tempo olhar de uma invencível força perfurante em relação às coisas da terra, capaz de transpor todas as aparências, todos os sofismas, todos os artifícios dos homens, mergulhando até o mais fundo recôndito dos acontecimentos e dos corações. Alma de varão justo e contemplativo, que vê alto e vê fundo, porque vive imersa nas claridades de um pensamento lógico, iluminado por uma fé impecavelmente ortodoxa.
Diante de tal olhar, como não pensar nas belas palavras do Santo Padre Pio XII em sua alocução de 12 de junho p.p. aos membros do 1º Congresso Latino de Oftalmologia: “Tudo se reflete nos olhos: não só o mundo visível, mas também as paixões da alma. Mesmo um observador superficial descobre neles os mais variados sentimentos: cólera, medo, ódio, afeto, alegria, confiança ou serenidade. O jogo dos diversos músculos do rosto encontra-se de algum modo concentrado e resumido nos olhos, como num espelho”.
Dos grandes olhos que Dom Guéranger mantinha tão abertos para Céu e para esta vida, passemos para a admirável expressão de olhos que a morte cerrou, e que só se reabrirão “in novissimo die”, para contemplar os terríveis esplendores do Juízo Universal.
Trata-se da admirável máscara funerária de S. Felipe Néri, o famoso apóstolo de Roma no séc. XVI. Tal foi o vigor de sua personalidade, que sua máscara mortuária por assim dizer ainda reluz de finura, de força, de uma ligeira e suave ironia que parece prestes a entreabrir os lábios num imperceptível sorriso; mas o “olhar” ainda é a nota mais expressiva, com uma fixidez, uma lucidez, uma força que transpõe não só as pálpebras mas os véus da morte e do tempo, deixando ver até o fundo a coerência, a robustez, a sanidade da alma que já se foi. Força, harmonia, lógica de Santo que mereceu ver no Céu a luz diáfana de Deus.
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- Publicado originalmente na revista “Catolicismo” Nº 45 – setembro de 1954, na seção Ambientes, Costumes e Civilizações.