As reações que os gatos despertam nos homens são muito diversas, pois vão do extremo da antipatia até o extremo do carinho, passando por toda a gama intermediária.
É que no gato, animal extraordinariamente rico em aspectos, há de tudo.
Tigre em miniatura, é ele uma minúscula fera, que às vezes se manifesta arranhando, mordendo, saltando inopinadamente, assustando, pondo tudo em rebuliço e quebrando o que encontra.
Mas, quando o elemento “fera” se aquieta, o gato se mostra de modo oposto: encantadoramente vivaz, delicado e distinto em todos os seus gestos, expressivo em suas atitudes, carinhoso, mimoso, em suma um verdadeiro bibelô vivo.
Um bibelô, entretanto, que não tem certo ar de bagatela, inseparável em geral até dos bibelôs mais finos. Porque em seu olhar, que tem algo de magnético e insondável, de reservado e enigmático, o gato conserva a terrível e atraente superioridade do mistério.
Tal é a riqueza da obra do Criador, que nesse ser meramente animal há alguma coisa que apresenta uma analogia frisante com as qualidades e os defeitos do homem.
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Nu, suarento, agressivo, todo entregue aos instintos e às impressões, com o espírito tão limitado que não parece ter a menor consciência do primitivismo de suas armas, nem do primarismo de seus enfeites, esse pobre chefe bárbaro se encontra imerso no mundo da rudeza, da grosseria e da ferocidade.
Muito mais do que no gato, há nele uma dualidade. O homem, concebido em pecado original, tem em si, por assim dizer, uma fera e um anjo. Nesse infeliz africano a fera está bem à mostra. Vendo-o, quem se lembraria do “anjo”?
Esses dois gatinhos tão mimosos, tão delicados, tão meigamente aconchegados um ao outro, são… civilizados. Se, em lugar de terem sido criados em um salão, tivessem vivido sempre na taba desse bárbaro, certamente não seriam assim.
Mas há mais. A educação de uma criança começa cem anos antes de nascer, dizia Napoleão. O mesmo pode dizer-se dos gatos. Há pelo menos um século de vida de salão, na delicadeza que desabrocha nesses macios bichanos. Eles não têm só civilização. Têm tradição.
Esse pobre bárbaro também tem tradição. Pesam sobre ele séculos de selvageria, sem os quais, em via de regra, ninguém chega a ser tão típica, tão inteira, tão escancaradamente assim.
Tradição de barbárie, que degrada o homem fazendo com que pareça um bicho. Tradição de civilização, que faz com que um bicho pareça quase ter um pouco de humano.
É a força modeladora da civilização. É a influência indiscutível e profunda da tradição.
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Para terminar, uma pergunta. Numa cidade onde houvesse só play-boys e suas congêneres femininas, onde só se tocasse e dançasse rock-and-roll, onde se comesse, falasse, agisse e brigasse à rock-and-roll, ao cabo de cem anos como seriam os gatos? Ficariam igualmente mimosos? Ou tomariam jeito de gato de telhado? Imaginemos um gato que vivesse junto a esse bárbaro: seria muito diverso do gato play-boy?
Tal amo, tal criado, dizia-se. Tal gato, tal dono, poder-se-ia dizer. Os gatos nascidos no “play-boysmo” e na barbárie seriam semelhantes… porque “play-boysmo” não é senão barbárie no cimento e no asfalto.
- Publicado originalmente na revista “Catolicismo” Nº 109 – Janeiro de 1960, na seção Ambientes, Costumes e Civilizações.
Só uma sabedoria Pliniana,formada por diversos aspectos,lindos como pequenos vidros de vitrais duma Catedral Medieval,que crescem como raízes ligadas em um tronco,que é Deus,seria capaz de fazer tal analogia.