Figuras que encarnam concepções de vida

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Ocupa a revolução inglesa do século XVII um lugar saliente na história trágica do Ocidente.

Começou esta crise no século XVI, com a explosão religiosa igualitária que foi o protestantismo. Deste nasceram diversos movimentos ideológicos que, favorecidos por fatores de várias ordens, culminaram no século XVIII, numa nova explosão igualitária, a Revolução Francesa. Esta realizou na esfera político-social o triunfo das mesmas tendências niveladoras que o protestantismo havia afirmado no campo religioso. Da Revolução Francesa brotou por sua vez, através das agitações e das crises do século XIX, o comunismo, que haveria de encher a história do século XX.

Dos movimentos que serviram de elo entre a crise religiosa do século XVI e a crise político-social do século XX, nenhum, talvez, tenha tido a importância da revolução inglesa. Os problemas em trono dos quais a luta entre os partidários do Rei Carlos I e os da revolução se travou, são, implícita ou explicitamente, os mesmos que opusera na primeira Constituinte francesa “direitista” com Maury e Casalèz a “esquerdistas” como Mirabeau ou Bailly. Em ambas as revoluções, os problemas religiosos se entrelaçavam intimamente com os políticos, e os partidários do Rei, geralmente afeitos à religião dominante ( na Inglaterra o anglicanismo, arremedo natimorto do Catolicismo ), se defrontavam com adversários penetrados do espírito de dúvida e de “simplificação” do dogma. Em ambas, por fim, os atores dos primeiros lances foram pseudomoderados, postergados em seguida por exaltados que chegaram até o extremo do regicídio.

Neste sentido, com as variantes que sempre existem quando a história como que se repete a si mesma, Carlos I é bem uma pré-figura de Luís XVI, Cromwell um precursor de Robespierre ou Saint-Just, e a revolução inglesa uma “avant-première” da Revolução Francesa.

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Esta descrição muito sumária de algumas perspectivas da crise da civilização ocidental, visa apresentar em seus verdadeiros quadros históricos dois personagens típicos das idéias a que serviram de bandeiras Carlos I e Cromwell.

Em nosso clichê, Oliver Cromwell, segundo miniatura de S. Cooper. Em seu tempo, a couraça já estava em vias de ser abandonada. Nos retratos oficiais dos generais e chefes de Estado era ela de rigor para efeitos de aparato. Infelizmente, o uso desse elemento decorativo prejudicou a naturalidade de não poucos quadros, pois a couraça, mesmo num militar como Cromwell, impedia a transparência de certos elementos carregados de significação psicológica, como o porte espontâneo, o traje, etc. Assim, esta miniatura nos revela a alma do personagem principalmente pela face, emoldurada por uma simples gola de linho e uma copiosa cabeleira.

O famoso cabo de guerra está na força da idade e do talento. Seu nariz proeminente dá uma impressão de audácia. Seus lábios rasgados e crispados parecem manifestar resolução. O queixo possante deixa ver uma obstinação habituada a exercer-se. A fronte alta, o sobrecenho franzido, parecem povoados de idéias, de preocupações e de projetos. Os olhos são particularmente dignos de nota. Há neles a luz de quem tem a alma acostumada às altas esferas do pensamento, o calor de quem está penetrado até as últimas fibras pelo hábito e pelo gosto da polêmica e da luta, a força de quem transformou em segunda natureza o exercício do mando em todos os seus aspectos, governo, administração, e até inspeção férrea de pormenores miúdos. A seriedade do personagem não é de todo inautêntica. Mas também não é de todo autêntica. Há, difuso na fisionomia, um lampejo de velhacaria, há na carnadura uma intensidade de vida vegetativa que impressiona, talvez não à primeira vista, mas em uma segunda análise. Há qualquer coisa do felão e do trocista ruidoso e pesado de botequim, no que chamaríamos a segunda camada psicológica desta face em que se espelha, sob todos os aspectos, uma personalidade hercúlea.

Um Hércules, por certo. Nunca, porém, um Hércules à maneira da Renascença, burilado, lavado, estilizado, e penteado com arte discretíssima.

Há nele um desalinho geral que só não amarrotou a couraça. Quanto ao mais, tudo parece posto em desordem por um sopro que vem – coisa curiosa – de uma turbulência e uma rusticidade interior fundamental. Cabelos, gola, carnes, tudo está amarfanhado e convulsionado. Tudo lucraria em ser lavado: os cabelos sebosos, o linho da gola, o próprio rosto. Uma desordem que exprime o movimento impetuoso da alma. Uma desordem que é o efeito natural de uma situação interna. Uma desordem em que o personagem se deleita e encontra o complemento de si mesmo. Uma desordem rústica que ele ama também por ser rústica, e em cujo desalinho e rusticidade ele vê, não um mal, mas um bem, e até a nota que deveriam ter todas as coisas, para que o universo fosse simpático e habitável.

Um universo tumultuoso, inestético, convulsionado, mais parecido com o inferno do que com o Céu. Um universo revolucionário. Um herói triunfante, de uma revolução em marcha, a serviço da inversão da ordem e da hierarquia dos valores.

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Três posições do Rei Carlos I da Inglaterra, pintadas por Van Dyck.

A cabeleira, de um suave desalinho aparente, está na realidade magnificamente estudada. Uma esplendida gola de rendas e uma roupa de seda realçam o que há de extremamente delicado e poético neste varão que, se não faz pensar no Hércules da mitologia, lembra de algum modo Apolo, ou um príncipe de contos de fada.

Nesta figura de uma elegância e de uma delicadeza tão extrema que para um crítico conformado com a brutalidade de nossos dias poderia parecer algum tanto feminina, há no fundo um mosqueteiro à d’Artagnan. A longa linha do rosto, que vem do alto da fronte até a barba em ponta, quase diríamos pontiaguda, exprime obstinação. O perfil faz ver a linha do nariz, em ponta também, a indicar por sua conformação especial, espírito de aventura e de mando. O olhar é profundo como um lago que reflete todo um firmamento de tradições, cultura e princípios. Mas um lago cheio de surpresas, cuja superfície apresenta por vezes tonalidades de ironia e de crueldade.

Um herói, por certo, feito para despertar, por sua superioridade inata, dedicações sem limite. Feito para arrastar ao ataque e à morte brigadas inteiras de cavaleiros ébrios de fervor guerreiro. Feito para pôr em delírios de entusiasmo as multidões. Modelado enfim por uma longa e admirável tradição, para contemplar com a mesma superioridade serena, um pouco misteriosa, afável quase até a meiguice, mas absolutamente inacessível, um baile, uma batalha, ou seu próprio patíbulo.

Um grande homem, ele também. Grande por uma força interior vinda de uma alta consciência da dignidade régia, e feito para figurar no centro de um mundo plasmado para a ordem, a hierarquia, e uma forma solene mas natural, plácida mas variegada e viva, triunfante mas amena e meiga, de beleza. Um mundo que visa ser solene, plácido e triunfal como o Céu.

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Como o Céu? Sim e não. Para um misto de Céu e Olimpo talvez. Falta a nota sobrenatural nesta figura. A heresia passou por aí, e deixou sua marca. Há uma hipertrofia do indivíduo nesse homem, uma adoração de si mesmo, uma falta de devotamento a algo do superior a ele – ao Vigário de Cristo, a Deus – que não leva ao Céu, antes prende à terra.

Um perfeito Príncipe católico teria todas estas qualidades, é certo. Mas teria outras ainda… e não teria estes defeitos.


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