No balneário de Yalta, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, como vencedores da Alemanha nazista, reuniram-se Franklin Delano Roosevelt (Estados Unidos), Winston S. Churchill (Grã-Bretanha) e Josef Stalin (União Soviética) [foto acima]. Decidiriam o destino do mundo no pós-guerra. Em boa medida a ingenuidade de Roosevelt e a impotência de Churchill deixaram o caminho aberto para o triunfo de Stalin. Os acordos ali assinados (e o espírito dominante na reunião, de paz irênica) marcaram tragicamente o mundo até 1991, quando ruiu a União Soviética. Tipos de relações, zonas de influência, formas de colaboração, tudo foi lá tratado ou contaminado.
Complementando o combinado em Yalta, poucos meses depois se reuniram em Potsdam de 17 de julho a 2 de agosto de 1945, Harry Truman — Roosevelt havia falecido — (Estados Unidos), Winston Churchill e logo depois Clement Attlee (Grã-Bretanha) — o antigo primeiro-ministro havia perdido as eleições gerais — e Josef Stalin (União Soviética). A conferência de Yalta foi preparada pelo encontro de Teerã, entre 28 de novembro de 1º de dezembro de 1943. Stalin, como se sabe, não cumpriu a promessa de eleições democráticas na Europa Oriental, feita em Yalta, fraudou-as todas por vários meios, e colocou Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária sob o tacão russo. Além da Alemanha Oriental. Logo veio o período da Guerra Fria.
A conferência de Yalta nasceu de necessidade premente, assegurar a paz e a segurança, enfim a ordem internacional, depois de anos de guerra. Não foi pioneira. Logo após as guerras napoleônicas, a mesma necessidade provocou o Congresso de Viena entre maio de 1814 e junho de 1815. Ali Rússia, Prússia, Inglaterra, Áustria e França, sob a orientação muito geral de Metternich, “o cocheiro da Europa”, estabeleceram bases para paz e segurança duradoras no Velho Continente.
Igual premência determinou o tratado de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919, que pôs fim à 1ª Guerra Mundial e estabeleceu fundamentos, infelizmente precários, para a estabilidade na Europa. Dele, quando o conheceu, afirmou presciente o marechal Ferdinand Foch, o grande vencedor militar da guerra: “Não é a paz, é armistício de vinte anos”.
Em 1991 a preeminência dos Estados Unidos era de tal monta que, naqueles anos, o historiador Francis Fukuyama julgou estável o triunfo da democracia liberal e do capitalismo. Com raiz em ditos de Hegel, ficou célebre sua afirmação de que assistíamos ao fim da História, pois, acreditava, começaria etapa da evolução desprovida de grandes choques.
Inexistindo choques, estavam afastadas as grandes guerras e a disputa por áreas de influência. Ficavam sem sentido iniciativas como as que determinaram os três acordos acima mencionados, destinados a harmonizar grandes atores internacionais. Só havia um grande ator: os Estados Unidos. O tempo passou, estamos a 27 anos de 1991. A Federação Russa se recompôs, a China se agigantou.
Não só os Estados Unidos são grandes atores no momento. Temos de início um contraponto. Após o Brexit, a Europa tem dificuldades de se apresentar unida. Ângela Merkel, até há pouco era a voz que falava pelo Velho Continente; debilitou-se muito internamente. Emmanuel Macron tenta substituí-la, mas ainda não dispõe da estatura requerida. A Índia tem mediana expressão internacional. O mesmo se pode afirmar do Japão.
São só três os grandes atores no cenário internacional — Estados Unidos, China, Federação Russa —, segundo documento oficial do governo dos Estados Unidos, divulgado em abril pelo Departamento de Defesa. Título: “Resumo da Estratégia Nacional de Defesa dos Estados Unidos da América”.
Afirma o texto que, após período de atrofia estratégica, os Estados Unidos se preparam ativamente para os próximos anos. Sua primeira preocupação não é mais o terrorismo: “A competição estratégica entre os Estados, e não o terrorismo, é agora a principal preocupação da segurança nacional dos Estados Unidos”.
Contra quem? Rússia e China. “A China é competidora estratégica que usa a economia de forma predatória para intimidar vizinhos, ao mesmo tempo que militariza a região do Mar do sul da China. A Rússia violou as fronteiras de nações a ela próximas e procura ter direito de veto nas decisões econômicas, diplomáticas e relativas à segurança de seus vizinhos. […] Voltou a competição estratégica de longo prazo entre as nações. […] A China e a Rússia, agindo dentro do sistema, estão agora minando a ordem internacional”.
Continua: “O fracasso na obtenção de nossos objetivos de defesa resultará na diminuição da influência global dos Estados Unidos. A erosão da coesão entre aliados e parceiros [esfarelamento] e queda no acesso a mercados favorecerá o declínio da prosperidade e do padrão de vida”.
As três conferências (ou quatro, ou cinco, tanto faz) aqui referidas aconteceram depois de guerras pavorosas, em clima de instabilidade e insegurança. Procuravam criar situações políticas e firmar princípios que garantiriam a ordem, a segurança e a paz entre as nações. Não estamos em fim de grandes guerras. Vivemos, porém, clima de instabilidade e insegurança crescentes. Ficou concebível, quase premente, um encontro entre os três atores para estabelecer critérios de convivência que garantam um mínimo de ordem, segurança e paz. De outro jeito, ficou natural uma Yalta 2. E o encontro hoje não precisa de balneários, nem de papel. Tudo pode ser decidido de onde estão os responsáveis, e fica valendo tacitamente. Como, parece, já está acontecendo na Síria. Seria até conveniente a discrição, evitaria susceptibilidades de potências não participantes.
Virá algo parecido a Yalta? Uma Yalta2? Não sei, não tenho bola de cristal. Digo apenas, estão postas as condições; e estas podem permanecer por anos. Contudo, a aceleração dos fatos pode vir num átimo. Até poucas semanas atrás alguém julgava provável um encontro próximo entre Donald Trump e Kim Jong-um? Aconteceu. Entre Kim Jong-um e Moon Jae-in? Aconteceu. Daí podem borbotar fatos gigantescos, bons, é verdade, mas, revirando, até mesmo apocalípticos.
Falei em fatos apocalípticos. Foram dantescas, para os países da Europa Oriental, as consequências de Yalta. Do mesmo modo, para nações da Ásia. Para ficar por aqui. O encontro dos três grandes do mundo contemporâneo para alegadamente regulamentar a ordem internacional, pode trazer fatos bons, mas, em sentido contrário, catástrofes. Para a América Latina, para o Brasil, para cada um de nós.
A América Latina não está citada no diploma do governo norte-americano. E também nenhum país latino-americano. Nem a Venezuela, ameaça notória para a estabilidade da região. Constato com tristeza a omissão. Que seja motivo para enrijecer resistências saudáveis, que desviem de nossas cabeças desgraças parecidas às que despencaram sobre países da Europa Oriental, em decorrência das decisões de três políticos reunidos em 1945 em um balneário do Mar Negro.
Concluo. O desenrolar dos episódios dependerá de muitos fatores. Em particular da lucidez e vivacidade da opinião pública dos Estados Unidos, bem como de suas equipes dirigentes.