Exsurge domine! Quare Obdormis?

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A situação da Igreja, como a via com providencial lucidez S. Luiz Maria Grignion de Montfort, se caracterizava por dois traços essenciais, que ele nos descreve, em sua oração pedindo Missionários, com palavras de fogo [1].

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De um lado, é o inimigo que avança perigosamente, é a investida vitoriosa da impiedade e da imoralidade:

“Vossa divina Fé é transgredida; vosso Evangelho desprezado; abandonada vossa Religião; torrentes de iniqüidade inundam toda a terra, e arrastam até vossos servos; a terra toda está desolada, desolatione desolata est omnis terra; a impiedade está sobre um trono; vosso santuário é profanado, e a abominação entrou até no lugar santo”. Os servidores do mal são ativos, audaciosos, bem sucedidos em suas empresas: “Vede, Senhor Deus dos exércitos, os capitães que formam companhias completas, os potentados que ajuntam numerosos exércitos, os navegadores que reúnem frotas inteiras, os mercadores que se congregam em grande número nos mercados e nas feiras! Quantos bandidos, ímpios, ébrios, libertinos, se unem em massa contra Vós todos os dias, e isto com tanta facilidade e prontidão! Basta soltar um assobio, rufar um tambor, mostrar a ponta embotada de uma espada, prometer um ramo seco de louros, oferecer um pedaço de terra amarela ou branca; basta, em poucas palavras, uma fumaça de honra, um interesse de nada, um mesquinho prazer animal que se tem em vista, para num instante reunir os bandidos, ajuntar os soldados, congregar os batalhões, convocar os mercadores, encher as casas e os mercados, e cobrir a terra e o mar de uma multidão inumerável de réprobos, que, embora divididos todos entre si, ou pelo afastamento dos lagares, ou pela diversidade dos gênios, ou por seus próprios interesses, se unem, entretanto, e se ligam até à morte, para fazer-Vos guerra sob o estandarte e sob o comando do demônio”.

Capitães, potentados, navegadores, mercadores, isto é, os homens-chave de seu século, movidos todos pela impiedade, pela ganância, pela sede de honrarias, depravados por vícios graves, constituem com as massas que os seguem – salvas as exceções, bem entendido – uma multidão de ébrios, bandidos e réprobos que pelas vastidões das terras e dos mares se unem para combater a Igreja!

Eis o que se pode chamar clareza de conceitos e de linguagem, coragem de alma, coerência imaculada no classificar os fatos! Como este Santo há de parecer descaridoso, imprudente, precipitado em seus juízos, ao homem moderno, que teme a lógica, se choca com as verdades radicais e fortes, e só admite uma linguagem edulcorada e feita de meias tintas!

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De outro lado, ou seja, entre os que ainda são filhos da luz, S. Luiz Maria vê campear a inércia. Este fato o aflige:

“E nós, grande Deus, embora haja tanta glória e tanto lucro, tanta doçura e vantagem em servir-Vos, quase ninguém tomará vosso partido? Quase nenhum soldado se alistará em vossas fileiras? Quase nenhum S. Miguel clamará no meio de seus irmãos, cheio de zelo pela vossa glória: quis ut Deus?”

S. Luiz Maria quer tantos ou mais numerosos paladinos do lado de Deus, quanto os há do lado do demônio. Ele os quer fiéis, puros, fortes, intrépidos, combativos, temíveis, como o Príncipe da Milícia celeste. Não se limita a dizer que devem ser como S. Miguel. Ele quer que sejam como que versões humanas do Arcanjo: “quase nenhum S. Miguel clamará no meio de seus irmãos…?”

Quanto esta aspiração de ver o mundo cheio de apóstolos brandindo espadas de fogo diverge da curteza de vistas, da frieza, do sentimentalismo dulçuroso e incongruente de tanto católico hodierno, para o qual fazer apostolado é fechar os olhos para os defeitos do adversário, abrir diante dele as barreiras, entregar-lhe as armas de guerra, aceitar seu jugo e, consumada a capitulação, afirmar que há todas as razões para se estar contente, pois poderiam as coisas ter corrido ainda pior.

Enquanto esses apóstolos de fogo não vêm, corre o risco de graves revezes a Santa Igreja. Não o viam tantos tíbios e indolentes. Viu-o porém S. Luiz Maria, que a todos conclama à luta:

“Ah! permiti que eu brade por toda parte: Fogo! fogo! fogo! socorro! socorro! socorro! Fogo na casa de Deus! fogo nas almas! fogo até no santuário. Socorro, que assassinam nosso irmão, socorro, que degolam nossos filhos, socorro, que apunhalam nosso bom Pai”.

É a devastação na Igreja e nas almas, o fogo que consome as instituições, as leis, os costumes católicos, e a impiedade que degola as almas e apunhala o Sumo Pontífice.

* * *

Legiões inteiras de almas fora e dentro do santuário (S. Luiz Maria claramente o deixa ver) cruzavam os braços, cuidando de seu pequeno microcosmo, sem se preocupar com a Igreja e seus grandes problemas. Estavam imersas em sua pequena existência de todos os dias, seus pequenos confortos, suas pequenas economias, suas pequenas vaidades, ao par de suas pequenas devoções, suas pequenas caridades, seus pequenos apostolados, no centro do que estava muitas vezes tão somente sua pequena pessoa.

S. Luiz Maria, pelo contrário, era uma alma imensa. Posto numa situação obscura, dedicava-se inteiro a salvar o próximo nos ambientes miúdos em que vivia. Mas seu zelo não tinha fronteiras nem limites, e abrangia toda a Igreja. Ele vivia, palpitava, se rejubilava ou sofria, em função da causa católica inteira, na acepção mais ampla do vocábulo.

E por isto, dirigia a Deus uma súplica admirável: se fosse para presenciar um triunfo incessante da iniqüidade, sem que aparecesse uma reação à altura, melhor seria para ele que Deus o levasse:

“Não é melhor para mim morrer, do que Vos ver, meu Deus, todos os dias tão cruel e impunemente ofendido, e a mim mesmo ver todos os dias em risco de ser arrastado pelas torrentes de iniqüidade que aumentam a cada instante, sem que nada se lhes oponha? Ah, mil mortes me seriam mais toleráveis. Enviai-me o socorro do Céu, ou senão chamai a minha alma. Sim, se eu não tivesse a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, haveis de ouvir este pobre pecador, nos interesses de vossa glória… pedir-Vos-ia do mesmo modo que o Profeta: levai minha alma”.

O REINO DE MARIA

Parece-lhe impossível que Deus não suste a marcha da iniqüidade:

“E assim deixareis tudo ao abandono, justo Senhor, Deus das vinganças? Tornar-se-á tudo afinal como Sodoma e Gomorra? Calar-Vos-eis sempre? Não cumpre que seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu, e que a nós venha o vosso Reino?”

Não, a intervenção de Deus não faltará. Prenunciara-a Ele a almas eleitas, às quais deixou contemplar a visão de uma era futura que seria o Reino de Maria:

“Não mostrastes antecipadamente a alguns de vossos amigos uma futura renovação de vossa Igreja? Não devem os judeus se converter à verdade? Não é esta a expectativa da Igreja? Não Vos clamam todos os santos do Céu: Justiça, vindica? Não vos dizem todos os justos da terra: Amen, veni, Domine? Não gemem todas as criaturas, até as mais insensíveis, sob o peso dos inumeráveis pecados de Babilônia, pedindo a vossa vinda para restabelecer todas as coisas? Omnis criatura ingemiscit”.

E no anseio desta “reposição de todas as coisas” ele implora a Deus que venha o dia em que “haja um só aprisco e um só Pastor, e que todos Vos rendam glória em vosso santo templo”.

Aí estão delineados os elementos do futuro Reino de Maria. Será resultante da conversão de todos os infiéis, do ingresso de todos os povos no aprisco da Igreja, e da “reposição de todas as coisas”, isto é, da restauração em Cristo de toda a vida intelectual, artística, política, social e econômica que o Poder das Trevas subverteu. É a reconstrução da civilização cristã.

Como se vê, trata-se de acontecimentos futuros. Caminhamos para eles. Cumpre apressar por nossas orações, nossas penitencias, nossas boas obras, nosso apostolado, este dia mil vezes feliz, em que haverá um só rebanho e um só Pastor.

UMA NOVA ERA HISTÓRICA

Já fizemos ver ( CATOLICISMO, nº 53, maio de 1955: “Doutor, Profeta e Apóstolo na Crise Contemporânea” ) que nossos dias se inserem no longo processus histórico iniciado entre 1450 e 1550 com o humanismo, a renascença e o protestantismo, acentuado fundamente com o enciclopedismo e a Revolução Francesa, e por fim triunfante nos séculos XIX e XX com a transformação dos povos cristãos em massas mecanizadas, amorfas, largamente trabalhadas pelos fermentos da imoralidade, do igualitarismo, do indiferentismo religioso, ou do ceticismo total. Do liberalismo já passaram para o socialismo, e deste estão em vias de descambar para o comunismo.

Esta marcha ascensional dos falsos ideais leigos ( de fundo panteísta, cumpre notar ) e igualitários é o grande acontecimento que domina nossa era histórica. No dia em que tal marcha começasse a regredir, de um retrocesso, não pequeno e ocasional, mas contínuo e possante, outra fase da História teria começado.

Em outros termos, a descristianização é o signo sob o qual estão colocados todos os fatos dominantes ocorridos no Ocidente, do século XV a nossos dias. É o que une entre si estes quinhentos anos, e deles faz um bloco no grande conjunto que é a Historia. Cessada a descristianização por um movimento inverso, teremos passado de um conjunto de séculos para outro.

Era precisamente um fato desta amplitude, um corte no processus descristianizante e um surto da Religião sem precedentes, que S. Luiz Maria implorava, esperava e, disto estamos certos, obteve.

“O reino especial de Deus Padre durou até o dilúvio, e foi terminado por um dilúvio de água; o reino de Jesus Cristo foi terminado por um dilúvio de sangue, mas vosso reino, Espírito do Padre e do Filho, está continuando presentemente, e há de ser terminado por um dilúvio de fogo, de amor e de justiça”.

E o Santo pede esse dilúvio:

“Quando virá esse dilúvio de fogo do puro amor, que deveis atear em toda a terra de um modo tão suave e veemente que todas as nações, os turcos, os idólatras, e os próprios judeus hão de arder nele e converter-se? Seja ateado esse divino fogo que Jesus Cristo veio trazer à terra, antes que ateeis o fogo de vossa cólera, que há de reduzir tudo a cinzas”.

INSTRUMENTO PROVIDENCIAL

O meio para se chegar a este triunfo será uma congregação toda consagrada, unida e vivificada por Maria Santíssima.

O que seja propriamente essa congregação, na mente do Santo, não se pode afirmar com certeza absoluta. Em certo sentido, parece uma família religiosa. Mas há também aspectos por onde se poderia pensar diversamente. De qualquer forma, essa congregação será o instrumento humano para implantar o Reinado de Maria. E, como tal, as vistas da Providência repousam amorosamente sobre ela desde toda a eternidade:

“Lembrai-Vos, Senhor, de vossa congregação, que desde o princípio Vos pertenceu, e em que pensastes desde toda a eternidade; que seguráveis na vossa mão onipotente quando, com uma palavra, tiráveis do nada o universo”.

No momento entre todos trágico e feliz em que se consumou nossa Redenção, Deus “a escondia em seu coração”, e seu Divino Filho “morrendo na cruz a consagrou por sua morte, e a entregou qual precioso depósito, à solicitude de sua Mãe Santíssima”.

Essa misteriosa congregação, que será uma “assembléia, seleção, escolha de predestinados feita no mundo e do mundo; rebanho de pacíficos cordeiros a serem reunidos entre os lobos; companhia de castas pombas e águias reais entre tantos corvos; enxame de laboriosas abelhas entre tantos zangões; manada de céleres veados entre tantos cágados; batalhão de leões destemidos entre tantas lebres tímidas”, essa congregação só pode ser constituída por uma ação fecunda da graça nas almas dos que devem compô-la. Mas para Deus nada é impossível: “Oh grande Deus, que podeis fazer das pedras brutas outros tantos filhos de Abraão, dizei uma só palavra como Deus, e virão logo bons obreiros para a vossa seara, bons missionários para a vossa Igreja”.

Há séculos, os justos pedem a Deus a fundação desta congregação:

“Lembrai-Vos das preces que desde tantos séculos vossos servos e servas para este fim Vos têm dirigido: venham à vossa presença seus votos, seus soluços, suas lágrimas e seu sangue derramado, e poderosamente solicitem vossa misericórdia”. Como esta congregação será de Maria, é para Ela que tão rico dom da Providência se destina: “Lembrai-Vos de dar à vossa Mãe uma nova Companhia, a fim de por ela renovar todas as coisas, e terminar por Maria Santíssima os anos de graça, assim como por Ela os começastes”.

TROPA DE CHOQUE DA IGREJA MILITANTE

Como se sabe, Companhia significava no tempo de S. Luiz Maria regimento, ou batalhão. Foi neste espírito que Santo Inácio chamou Companhia de Jesus seu ínclito Instituto. S. Luiz Maria concebia a sua Companhia como essencialmente militante. Ela será como que um prolongamento de Nossa Senhora, em luta permanente e gigantesca com o demônio e seus sequazes:

“É verdade, grande Deus, que o mundo há de armar, como predissestes, grandes ciladas ao calcanhar dessa Mulher misteriosa, isto é, à pequena Companhia de seus filhos que hão de surgir perto do fim do mundo: é verdade que há de haver grandes inimizades entre essa bendita posteridade de Maria Santíssima e a raça maldita de satanás: mas é essa uma inimizade toda divina, a única de que sejais autor. Porém esses combates e perseguições dos filhos da raça de Belial contra a nação de vossa Mãe Santíssima só servirão para melhor fazer resplandecer o poder de vossa graça, a coragem da virtude de vossos servos, e a autoridade de vossa Mãe, pois que Lhe destes desde o começo do mundo a missão de esmagar esse soberbo, pela humildade de seu Coração”.

Este tópico é dos mais importantes, de vez que mostra a modernidade da Companhia, de seu apostolado militante, de seu espírito profundamente – quase diríamos sumamente – marial.

De fato, S, Luiz Maria vê essa Companhia destinada a “surgir perto do fim do mundo”. E se, na linguagem dos adoradores da modernidade, cada século é mais moderno que os que o antecederam, não haverá séculos mais modernos – pelo menos no sentido cronológico da palavra – que os que estiverem “perto do fim”.

Que quer dizer este “perto”? Em linguagem profética, é discutível a precisão do termo. Será talvez a última fase da humanidade, isto é, o Reinado de Maria. Quanto durará esta fase? É outro problema, para cuja solução não encontramos elementos na Oração do Santo. Mas, de qualquer forma, estabelecida a “modernidade” absoluta desse apostolado, vejamos algumas das características que ele terá. Os que julgam anacrônicas essas características verão quanto se enganam.

DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA

Esses apóstolos dos últimos tempos serão “verdadeiros filhos de Maria Santíssima, engendrados e concebidos por sua caridade, trazidos em seu seio, presos a seu peito, nutridos de seu leite, educados por sua solicitude, sustentados por seus braços e enriquecidos por suas graças”. E mais adiante afirma: “Por seu abandono à Providência e pela devoção a Maria Santíssima terão as asas prateadas da pomba, isto é, a pureza da doutrina e dos costumes; e douradas as costas, isto é, uma perfeita caridade para com o próximo, para suportar-lhe os defeitos, e um grande amor a Jesus Cristo para levar sua cruz”.

COMBATIVIDADE

Mas essa devoção marial e essa caridade se realizarão numa pugnacidade extrema, decorrência da própria devoção marial. Com efeito, serão eles “verdadeiros servos da Santíssima Virgem, que, como outros tantos São Domingos, vão por toda a parte com o facho lúcido e ardente do Santo Evangelho na boca, e na mão o Santo Rosário, a ladrar como cães fiéis, contra os lobos que só buscam estraçalhar o rebanho de Jesus Cristo; que vão, ardendo como fogos, e iluminando como sóis as trevas do mundo”. Sua vitória consistirá, “por meio de uma verdadeira devoção a Maria Santíssima… em esmagar em todos os lugares em que estiverem, a cabeça da antiga serpente; para que a maldição que sobre ela lançastes seja inteiramente cumprida”.

E por isto S. Luiz Maria multiplica ao longo de sua Oração as metáforas e adjetivos alusivos à combatividade dos membros da sua congregação: “águias reais”, “batalhão de leões destemidos”, terão “a coragem do leão por sua santa cólera e seu ardente e prudente zelo contra os demônios e filhos de Babilônia”.

E é essa falange de leões que ele pede a Deus no tópico final de sua oração:

“Erguei-Vos, Senhor: por que pareceis dormir? Erguei-Vos em todo o vosso poder, em toda a vossa misericórdia e justiça, para formar-Vos uma companhia seleta de guardas que velem a vossa casa, defendam vossa glória e salvem tantas almas que custam todo o vosso sangue, para que só haja um aprisco e um Pastor, e que todos Vos rendam glória em vosso santo templo: Et in templo ejus omnes dicant gloriam – Amen”.

[1] Os primeiros artigos desta série foram publicados em Catolicismo nos nºs 53 e 55, de maio e julho de 1955.

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