Péricles Capanema
Virou moda repetir que a América Latina tomou um rumo esquerdista. Álvaro Uribe da Colômbia representaria a grande exceção. Seria inconteste a superioridade da esquerda, se somadas as duas no poder, a carnívora (vou utilizar esta nova terminologia, imprecisa, mas prática) − Cuba de Fidel ou Raul Castro, Venezuela de Hugo Chávez e Bolívia de Evo Morales− e a herbívora, Brasil de Lula, Argentina de Cristina Kirchner, Uruguai de Tabaré Vásquez, Paraguai de Fernando Lugo, Chile de Michelle Bachelet, Equador de Rafael Correa e ainda Daniel Ortega na Nicarágua e Mauricio Funes em El Salvador.
Leitor, você acha que faz uma divisão melhor? Quer deslocar acima alguns da esquerda herbívora para a carnívora? Ou vice-versa? Nenhum problema. Mude. Faça sua classificação. E outros leitores farão classificações diferentes. Natural, é difícil classificar cada um desses governos só na coluna soft ou só na coluna hard. Na prática, as políticas que aplicam são sempre uma mistura de medidas carnívoras e de medidas herbívoras. Em cada tema haverá uma divisão particular entre os governos de tipo soft e os de tipo hard.
Até mesmo em cada um dos governos aqui considerados, ao longo dos meses, não é estável a proporção de políticas hard e políticas soft. A proporção está ligada a fatores vários, à situação interna de cada um desses países, a relações de poder internas ou externas, a oscilações na opinião pública, também de âmbito interno ou externo, e a tanta coisas mais.
Mas o que eu queria dizer era outra coisa, chamar a atenção para ponto pouco tratado. Este dragão que tanto atemoriza tem pés de barro. Por que são frágeis seus alicerces? Por isso: suas maiorias eleitorais, absolutas ou relativas, são instáveis. Atenção, distraídos: maioria eleitoral não quer dizer maioria da população; quer dizer apenas votos necessários para vencer uma eleição.
Pode estar bem abaixo da maioria da população, entre outros motivos, por causa da abstenção, votos brancos e nulos, número de candidatos, legislação eleitoral. A inconstância das maiorias eleitorais significa pouca convicção ideológica. O mesmo eleitorado que votou na esquerda pode votar, dois ou três anos depois, na direita.
Os votos são muito influenciados por razões circunstanciais, em geral ligadas a crises econômicas ou à corrupção, até mesmo na vida privada, fácil de ser percebida pelo público. Em outros termos, se a aplicação do programa revolucionário provocar muitos sobressaltos, parte do eleitorado se voltará contra a esquerda, buscando estabilidade e segurança, o que traria, no caso, o triunfo de correntes contrárias ao socialismo.
Nestas circunstâncias, é difícil aplicar com rapidez um programa revolucionário radical. Só há, no caso, uma solução, muitas vezes aplicada sem escrúpulos pela esquerda carnívora. Reprimir e sufocar as reações, utilizando os mais variados meios como demissões, confiscações de bens, prisões, assassinatos, deportações. A tática hoje em geral utilizada é a de ir acostumando o público com os objetivos revolucionários. Na sociedade, com novos costumes, mentalidades e convicções, na maioria das vezes de forte sabor libertário. No Estado, além das medidas de caráter coletivista, em especial o que hoje se chama revolução cultural, como legalização do aborto, privilégios para homossexuais, generalização do divórcio e da eutanásia, descriminação do consumo de drogas, radicalização do laicismo de Estado.
Existe outro fator que precisa ser realçado em negrito. É a generalizada associação no espírito de muita gente (multidões) entre socialismo e compaixão. É uma mentira deslavada, patranha desmentida cruelmente pela História (e também pela doutrina, às vezes evidente, às vezes por via dedutiva), mas muito eficaz eleitoralmente. Historicamente, seria fácil ligar a esquerda com pauperização, crueldade e atraso, todos sabem disso. Mas, enfim, mistificação é uma coisa; realidade, outra. Segundo esta patota, os socialistas teriam pena dos pobres, trabalhariam por eles.
Os conservadores, pelo contrário, seriam insensíveis aos sofrimentos dos pobres e defenderiam políticas favoráveis aos ricos. E então fica forçoso; quem é a favor dos pobres, vota na esquerda. Lula se beneficia muito deste mito. Ele, o PT, partido ao qual pertence e seus aliados no poder podem mentir, roubar, dilapidar com despropósitos bilionários o dinheiro público, encher a administração do Estado de incompetentes e corruptos, legalizar medidas de apoio à revolução cultural ou ao coletivismo, em especial no campo, mas para tal contingente mistificado, sempre lhes fica este capital: Lula veio de baixo, foi operário, tem pena dos pobres, trabalha por eles. E o mesmo vale, em boa medida, para seus aliados.
Então merecem o voto dos que têm pena dos pobres. Em sentido contrário, seus oponentes, sempre segundo esta mitologia, mesmo quando honestos e eficientes, são insensíveis aos sofrimentos dos que nada têm, bajulam e favorecem os ricos. Então, não merecem ser votados. De um lado, este voto é forte. Tem resistido a muitos desmentidos provenientes de fatos notórios. De outro, fraco. É condicional e superficial. O eleitor, em boa parte, elege uma pessoa tida por ele como compassiva e caridosa. O programa coletivista e igualitário fica em segundo plano. E isto quando chega a entrar em consideração.
Em resumo, se a mistificação fosse destruída no espírito das mencionadas multidões, o voto na esquerda minguaria. E provavelmente não haveria mais as referidas maiorias eleitorais que prejudicam gravemente o desenvolvimento da América Latina. Sei bem que esses fenômenos não são tristes particularidades latino-americanas, como o poncho ou a tequila. Com adaptações maiores ou menores, estão presentes no mundo inteiro.
Ponderem que pode existir os CARNÍVOS LIGHT.
Essa análise me esclareceu muita coisa. Uma visão de conjunto indispensável para quem quiser entender o que realmente se passa nessa América Latina populista de Chávez, Evo, Lula e caterva.
Parabéns pela apurada análise da conjuntura latino-americana. Então, se entendi bem, o PNDH-3, por exemplo, corresponderia a uma tentativa “carnívora” ou hard, dificilmente assimilável pela população, enquanto programas tipo Bolsa Família serviriam para atrelar ao Lula, que vive flertando com o chavismo, a imagem de protetor dos menos favorecidos, embora se saiba que com isso ele só favorece o ócio e a divisão de classes. Também a distinção entre maioria populacional e maioria eleitoral é muito importante para o desfazimento do mito da preponderância da esquerda.