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A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de exposição verbal do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
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Vou tratar de um pensamento contido no livro “Vienne aux Temps de Mozart e de Schubert”, de Marcel Brion. Leio as próprias palavras do autor, descrevendo os costumes da época: “Uma época que se diverte, e sempre, em grau maior ou menor; uma época inquieta, pois a procura desenfreada do prazer corresponde, conscientemente ou não, ao desejo de fazer calar, emudecer uma inquietação lancinante”.
Apesar de ser um excelente escritor, de ser da Academia Francesa e de ter escrito esta história tão brilhante, nota-se uma incorreção dele ao afirmar que uma época que se diverte é inquieta, porque a procura desenfreada do prazer oculta uma inquietação profunda. Ora, isso não está certo, porque o divertir-se não é necessariamente uma procura desenfreada do prazer. Há qualquer coisa que claudica dentro dessa frase. Ele deveria dizer que uma sociedade que se diverte desenfreadamente – esta sim – realmente oculta uma tristeza lancinante, uma inquietação lancinante. Esse seria o pensamento verdadeiro. O simples divertir-se de vez em quando, o ter um lazer de vez em quando, não justifica a frase dele.
Se está claro o pensamento – e depois de ter corrigido uma inexatidão na expressão do autor – vou fazer um comentário a respeito dele.
CONCEPÇÃO GENERALIZADA: NÃO HÁ FELICIDADE SEM PRAZER
Creio que há muita gente que tem a seguinte filosofia de vida: “Só a diversão é agradável, só o divertir-se é realmente agradável”. Pois quem assim pensa, de duas uma: ou trabalha ou se diverte. Como um trabalho sério é sempre penoso, e portanto não agradável, não se pode considerá-lo uma verdadeira fonte de diversão. Fora dessas duas alternativas há o repouso insípido, que não tem graça nenhuma. De maneira que, na vida, a única forma de alegria possível se tira do divertimento, sua única felicidade está no divertimento; e, portanto, quanto mais uma pessoa se divertir, mais feliz será, pois a fonte da felicidade está no divertimento.
O que tais pessoas entendem por divertimento? É viajar, ir ao cinema, a teatros; pior do que isso, é ir à boîte, a lugares corruptos e imorais etc. É fazer essas mínimas coisas que lhes agradam sobremaneira, e às quais tendem a se entregar desregradamente. Isso seria propriamente a diversão.
Acho que muita gente está com o espírito cheio disso, identifica o divertir-se com o ser feliz, e por isso corre malucamente atrás da ocasião de divertir-se.
Contraste entre a vida de prazer e a vida na TFP
Não há um dentre os senhores que, passando na rua e vendo uma pessoa que está se divertindo de qualquer maneira, não tenha a sensação do contraste entre a vida austera do colaborador da TFP e a vida de divertimento que aquela pessoa leva. E de vez em quando poderão ficar tendentes a achar que estão do lado da infelicidade, porque não têm os divertimentos que aquela pessoa está tendo.
Segundo essa tentação, deve-se aceitar a infelicidade por amor ao Céu, por amor a Deus Nosso Senhor, por temor ao inferno. Mas, enfim, a vida morigerada, regular, séria e sem divertimentos, não é uma vida feliz, porque a felicidade está no divertimento.
Não quero dizer que todo mundo pensa assim, mas que muita gente pensa assim. Creio que muitos dos senhores conhecem gente que pensa dessa maneira. Creio mesmo que até pessoas que não pensam assim de modo explícito passam por esse estado de espírito numa ou noutra ocasião, fugazmente, quando entram em contato com as pessoas que se divertem desregradamente.
A vida de prazer e o trabalho austero
Imaginem, por exemplo, um homem que passa por Paris, a caminho da Ásia Central, para fazer um estudo arqueológico a respeito dos restos da civilização Khmer. É uma ocupação sumamente austera, à qual ele vai se entregar. Ele passa, às 6 horas da tarde, pela Place Vendôme. Entra no Hotel Ritz e põe-se em contato com o “frou-frou” daquela sociedade internacional, riquíssima e brilhante, que se diverte no hall do hotel, entrando e saindo a caminho do prazer. Uns estão vindo de Saint Moritz, outros de teatros fascinantes; outros combinam, quando se despedem: “Da próxima vez nós vamos de iate, mas às Baleares!” Outro diz: “Hoje à noite vamos ao Ópera, hein!” Entram e saem, uns de traje esporte, outros de traje de baile, etc.
O arqueólogo fica olhando para aquilo tudo. Embora possa estar com a alma toda metida nos estudos da civilização Khmer, em certo momento pode ser seduzido por um lampejo, alguma coisa que lhe dirá no fundo da alma: “Arqueologia é bobagem! A civilização Khmer que vá às favas! Eu já agora vou mandar vir uma bebida deliciosa, e vou ficar uma semana no Hotel Ritz. Já de manhã vou fazer tal programa em Paris. E aquelas pedras da Ásia Central, velhas, secas, esturricadas ao sol, às quais a gente só chega depois de caminhar em dorso de camelo ou de dromedário durante vários dias, aquilo que se arranje! Entre uma poltrona do Ritz e o dorso de um dromedário, eu ainda prefiro a poltrona do Ritz”.
É um estado de espírito que pode passar pela cabeça de muitos.
SERÁ VÁLIDA ESSA CONCEPÇÃO DA VIDA?
Necessidade da felicidade neste vale de lágrimas
Nós podemos nos perguntar se realmente essa mentalidade tem razão de ser, e se o prazer é idêntico à felicidade.
No que consiste a felicidade? Não resolve o caso uma pessoa viver com este pensamento piedoso: “A felicidade não existe neste vale de lágrimas. O homem aqui é perpetuamente infeliz. Ele sai de um infortúnio para cair em outro, e no seu caminho só encontra tristeza, achaques e dores”. Isto é uma meia verdade, e portanto é um meio erro. São Tomás de Aquino diz algo que é inteiramente verdadeiro: o homem, para existir, precisa ter algo, por menor que seja, que lhe dê algum prazer.
Se imaginássemos um homem que não tivesse nem um grão de felicidade, esse homem desapareceria. E a Providência Divina, que é materna e bondosa, permite duas coisas: Primeiro, que a grande maioria dos homens tenha pelo menos uma parcela de felicidade, não uma felicidade inteira, que de fato não existe nesta vida; segundo, também faz com que os homens a quem Ela mais ama passem por períodos dos quais a felicidade desaparece completamente. São os grandes períodos da vida de um homem. É quando se faz noite para ele e a felicidade desaparece, inclusive a consolação sobrenatural. E ele entra no túnel obscuro, plumbeamente pesado, de uma infelicidade grande.
Mas os males críticos, muito agudos, não duram. Ou conduzem à morte ou passam logo. Assim também, é preciso ver essas partes trágicas da existência como permitidas por uma disposição especial da Providência, em geral com pouca duração.
O mínimo necessário de felicidade terrena
Em algo o homem precisa ter um fragmento de felicidade. E não é preciso perguntar se esse fragmento de felicidade se identifica com o prazer. Qual é o papel do prazer na posse desse fragmento de felicidade?
Nós deveríamos dizer o seguinte: há fases da história de certos povos, de certas civilizações, em que o prazer é tão excepcional na vida, o divertimento é tão pouco freqüente, que como que não existe. São duas ou três festas por ano, de qualquer natureza, e fora disso as pessoas não se divertem.
Uma pessoa pode ser feliz assim? Eu respondo: pode ser feliz, desde que compreenda bem a sua situação e saiba encontrar nela a felicidade que essa situação dá.
A RESPOSTA DOS FATOS HISTÓRICOS
O fazendeiro brasileiro do tempo do Império…
Considerem, por exemplo, a vida de um fazendeiro brasileiro no tempo do Império. O que vou dizer a seguir se aplica a todo o Brasil. Exemplifico com o Brasil, mas é evidente que situações análogas se dão em outros povos, em outras circunstâncias. Como vivia esse fazendeiro? Como vivia sua família?
Ele vivia, em geral, numa casa de fazenda confortável, ao menos segundo as necessidades e as conveniências dele. Digo vivia, porque isso mudou com o advento do automóvel. Vivia algumas léguas distante da cidade próxima, à qual tinha acesso por uma estrada em geral difícil de percorrer. Não raras vezes, nela se corria perigo. Eram capangas do inimigo político e outras coisas dessas, que tornavam a estrada perigosa. Assim, esse homem tinha a tendência de se isolar na própria fazenda, e a viver ali na placidez da vida de fazenda.
…vivendo quase sem divertimento
O que esse homem tinha ali como divertimento? Habitualmente eram dois ou três divertimentos por ano. Havia a festa – em São Paulo, pelo menos – da Novena do Padroeiro da Matriz da cidade próxima. Eram alguns dias de festa, ocasião em que o fazendeiro ia com toda a família para a cidade. Era ocasião para regabofes. Era ocasião para festa de igreja, que tinha uma certa tonalidade mundana também, porque as pessoas iam trajadas com suas melhores roupas. Eram atos de piedade de gala, e nas saídas os encontros tomavam um certo caráter de encontros sociais, senão necessariamente mundanos, pelo menos sociais.
Havia alguns casamentos de parentes ou algum batizado, dando lugar a uma festa social também.
Uma visita a São Paulo ou ao Rio de Janeiro – que se chamava Corte, porque era o local onde residia o Imperador – era uma coisa raríssima, que o fazendeiro fazia umas cinco, seis, quando muito dez vezes.
Eu vi na Igreja do Carmo, em São Paulo, um documento muito interessante. É um testamento da Marquesa de Santos. Ela era então irmã carmelita. Ela fez seu testamento, e deu por razão disso o fato de que viajaria ao Rio. Dados os perigos da viagem, era bom dispor as suas últimas vontades. Explicava que iria por mar, o que era menos duro do que ir por terra, apesar de toda a maresia, de todos os enjôos. Por aí os senhores compreendem como uma pessoa ia raramente ao Rio de Janeiro.
Encontrava a felicidade no exercício de sua atividade
Qual era, pois, a felicidade que um fazendeiro encontrava na vida de fazenda? Deveria haver uma espécie de felicidade, porque, do contrário, ele morreria.
Era a felicidade de exercer a sua atividade, mas dando a ela os vários caracteres de que toda atividade simultaneamente deve estar cercada. Em primeiro lugar vinha o interesse e o prazer natural da atividade agrícola. Essa atividade tem em si um certo interesse: plantar, ver o que a plantação dá, dirigir os homens na colheita, guardar, entesourar o que ganhou, fazer o plano de uma melhoria para o ano que vem.
Reinava em suas terras
Isso era, em escala muito pequena, reinar. De fato, o fazendeiro era muito mais rei da sua fazenda do que o era o prefeito em relação ao município em que a fazenda estava. O verdadeiro reizinho da fazenda era o fazendeiro. Essa pequena função governativa que o indivíduo exercia na sua fazenda podia dar para um homem equilibrado, sensato, temperante, degustar a vida inteira.
Ao lado disso ele tinha o prazer de ser o patriarca da fazenda. Quer dizer, o homem em função de quem se compõe a vida da fazenda. Era líder natural, que naquele tempo dava um conselho para a família dos colonos, para a família do administrador, etc, nas diferentes situações: sobre o filho, sobre a doença, sobre o curandeiro que passou, sobre o modo de os colonos tratarem de sua própria terra, onde ele tinha uma meia parte, onde os colonos tinham um problema que o fazendeiro ajudava a resolver.
Para usar a distinção que os ingleses fazem entre governar e reinar, o fazendeiro não governava apenas, mas reinava também. Ele era a chave de cúpula simbólica da vida da fazenda. Ser isto naquela comunidade humana – pelo interesse que tem cada alma, cada homem, para a família humana – era uma coisa que estava na proporção de atrair, de distrair e de causar felicidade a um homem que entendia bem as coisas.
De mais a mais, acontecia que o fazendeiro nessa posição, naquele pequeno local onde ele existia, tinha um dos prazeres que realmente a vida pode dar a um homem: o prazer da honorificência, a felicidade da honorificência, o ser honrado, receber o respeito, a consideração que está na proporção da função que ele tem.
Reinava na sua família
Ele tinha também, ali ao seu lado, a família. Dentro da fazenda, a família era um outro reinozinho dele. O fazendeiro brasileiro tradicional era o chefe em casa. Se há uma coisa que o Brasil não teve, salvo por exceção, é o matriarcado. Havia algumas matriarcas, mas em geral mandava o homem. E mandava mesmo. No Norte, tratava a mulher de “Senhora”, mas a senhora piava fino, e a coisa andava direito. Ao menos em Pernambuco, de onde sou originário ou semi-originário, a coisa era assim. Acho que era o resto da herança portuguesa “mão de pilão”.
Os filhos também eram muito obedientes e respeitadores do pai, no mais alto grau. Eu vi cartas antigas, inclusive de pessoas da minha família, que começavam sempre assim: “Meu pai e senhor”; e terminavam:” Pede vossa bênção o vosso filho, Fulano”. Uma carta como hoje em dia se faz, que começa com “paizinho”, era inconcebível.
Dentro da família ele era tratado com respeito religioso, e aquilo era um outro reino, um reino de escol dentro da fazenda, e ele ali exercia uma realeza mais imediata do que sobre os outros, porque ali residia propriamente a plenitude do seu poder. Exatamente da mesma maneira como, nos tempos do Ancien Régime, o rei reinava sobre a família real. Isto se conservou pelo menos até a Guerra de 1914-1918. Desconfio que ainda é assim em alguns lugares onde há monarquia. Depois da Revolução Francesa a monarquia constitucional espalhou-se pela Europa inteira, mas, quanto aos membros da família real e imperial, o poder do rei era absoluto. Assim era o fazendeiro. Ele tinha poder absoluto sobre os seus.
Respeitado na cidade próxima
O fazendeiro, quando ia à cidade para fazer uma compra, tratar de um negócio, entrava a cavalo, seguido de um, dois, três capangas ou guarda-costas. Para negócios, ia mais freqüentemente à cidade. Embora fosse raro ir para alguma diversão, no total ia muito mais do que a mulher.
Como vêem, era uma época muito atrasada, que não conhecia ainda as luzes da civilização. Um atentado terrorista, por exemplo, era impossível. Não é como hoje, que, graças aos princípios da Revolução Francesa, já desapareceu completamente esse perigo… Ele entrava na frente, com a coorte dele atrás. Era o senhor de tal engenho, o dono de tal fazenda que entrava. Ele gozava de um prestígio na cidade, que era a repercussão do prestígio da fazenda. Como as cidades viviam em função do campo, e todas elas estavam penetradas pela vida da agricultura, elas eram uma espécie de súmula, e ao mesmo tempo de apêndice de todas as fazendas que estavam nas redondezas. De maneira que ele entrava lá “cantando de galo”.
Ia para a casa do compadre – ser compadre, naquele tempo, era uma coisa muito mais séria do que hoje – e o compadre tinha uma certa igualdade com ele. Hospedava-se em casa do compadre, que tinha acomodações para hóspedes, e entrava logo dizendo: “Ó compadre, como vai Mecê?”
Propalava-se rapidamente na cidade a notícia de que ele havia chegado. E os da cidade vinham visitar, vinham cumprimentar, vinham fazer política, porque ele era dono dos votos dos seus colonos, e, portanto, cabo eleitoral. Quando ele era político jeitoso, era dono dos votos de várias fazendas, porque levava consigo alguns fazendeiros.
Respeitado na metrópole
Isso lhe dava uma certa autoridade, quando vinha a São Paulo. Era recebido pelo Governador da Província. Conversava com algum deputado importante – alguns eram semideuses da São Paulo do tempo -, com algum professor da Faculdade de Direito, que lhe dava audiência. Voltando, ele contava isso, o que reforçava o seu prestígio.
Felicidade em compreender e degustar essa situação
Ora, um homem que sabe compreender essas coisas, sabe degustar o que elas têm de legítimo, sabe viver dessa degustação temperante, é um homem em que a felicidade ocupa um bom papel na vida. Não é um homem em cuja vida a diversão ocupa um bom papel. Os divertimentos – quer dizer, a televisão, o rádio, o cinema, a avenida febricitante e outras coisas desse gênero – para ele não são nada, ele nem os conhece. Ele tem uma forma de felicidade que não é a do prazer.
Quais são as características dessa felicidade? Antes de tudo, ela é sumamente razoável. Em segundo lugar, ela só pode ser degustada por um indivíduo temperante. De outro lado, ela cria a temperança, ela interpõe a temperança, porque quem degusta isso vive temperantemente.
Não há nele as tais ânsias, os tais delírios, as tais inquietações, as tais agitações que o homem de hoje tem. Os episódios da vida de um homem assim procedem da calma, detêm a calma e mantêm no homem a calma. Conduzem o indivíduo a uma sensação de harmonia, de equilíbrio, de abastança, que faz com que ele se sinta seguro e tranqüilo sobre si mesmo. Sabe inclusive que há outros que são mais do que ele, mas sente-se tranqüilo de ser o que é. E é qualquer coisa.
Outro exemplo: o professor alemão
Isso que era o fazendeiro, eram os professores no estilo europeu de vida de cidade, que não é mais o da Europa de hoje, mas seria o da Europa de 1914, da Europa da belle époque, no século passado (XIX). Os senhores encontram muito disso em vários países da Europa; na Alemanha, talvez mais caracteristicamente do que em outros. O Herr Professor alemão, por exemplo, só por exceção é um nobre. Há até grandes nomes da nobreza que se dedicam ao ensino, mas é exceção; em geral os professores são homens da burguesia, de todas as camadas da burguesia. Às vezes, até do operariado, de famílias operárias. Mas uma vez que conseguiu uma cátedra universitária, ele se torna um homem da boa burguesia, que vive no cultivo de uma matéria de que gosta, pela qual se interessa. Vive do ensino, que ele acha interessante.
Ele é rei nessa cátedra. É membro do senado, quer dizer, da Congregação de uma Faculdade, que em geral é o centro da vida de uma cidade, ou um dos pontos altos de uma cidade.
De sua cátedra, ele sabe que tem uma projeção sobre todos; sabe que é dono de um colossal prestígio, que o cerca da auréola e do respeito que a sua situação merece. Ele vive uma vida de estudos, calma, sem divertimentos. É a transposição do estilo do fazendeiro para a situação do professor.
A felicidade de um pequeno comerciante em sua situação
Isso também vale, por exemplo, para o pequeno comerciante. Uma figura característica do pequeno comerciante, profundamente tranqüilo, profundamente sereno, profundamente equilibrado, é o pai de Santa Teresinha. Na pequenina cidade de Alençon, uma cidade com um nome lindo como uma música, ele era joalheiro. Ele fez sua fortuninha, e pode-se imaginar com que honestidade.
Nessa altura da vida ele encerrou seu comércio, e foi fazer o que na Europa daquele tempo se chamava “retirar-se”. Já tinha bastante dinheiro para viver de renda, e retirou-se. É umrentier – a palavra não existe em português – um rendeiro. Quer dizer, um homem que vive de rendas. Construiu seus Buissonnets, que são um poema da pequena graça miúda, pequeno-burguesa. E viveu na tranqüilidade daquela fisionomia magnífica de paz, de estabilidade, de equilíbrio de alma, que ele tinha.
Essa tinha sido uma vida na qual o prazer tinha representado pouco. Mas as pessoas eram educadas, pelo ambiente, para gostar desta forma de felicidade.
A felicidade, sem prazer, de uma mãe de família
Houve mães de família modelares a granel, na medida em que houve senhoras que compreendiam que viver dentro de um lar é uma fonte de felicidade. Eu me lembro de que uma vez, quando era deputado, vi dois deputados mineiros que conversavam perto de mim. Um dizia para o outro: “Minha mãe não sai de casa há muitos anos, nem para ir à igreja. Entretanto, tem uma saúde enorme; em casa ela trabalha, sobe e desce escada, etc, mas a vida dela é a casa”.
Vamos deixar de lado o fato de essa senhora não ir à igreja. Não encontrou ela a fórmula de felicidade que na vida é possível? Encontrou, porque exatamente ela encontrou a degustação das situações, e toda situação honesta tem algo de degustável.
A SOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DO PROBLEMA
O prazer morigerado tem seu lugar na vida
Essa degustação das situações, esse prazer morigerado, constitui propriamente a felicidade. Qual é a relação entre isso e o prazer? O prazer não é o contrário da felicidade. O prazer é como um tempero, é como um sal que dá à felicidade um certo sabor.
Uma vida dessas, à la longue, pode ficar um pouco sensaborona. Faz parte da mutabilidade do espírito humano que ele queira, de vez em quando, certa variedade. E é concebível que ele queira, de vez em quando, um prazer honesto. De maneira que o prazer não é o contrário da felicidade.
Temperança, a chave da felicidade
A chave da questão está então na temperança. Se o indivíduo é temperante, é capaz de degustar a situação legítima em que se encontra, e de nela encontrar a felicidade. Se é intemperante, ou se se deixa tornar intemperante, ele corre atrás dos prazeres. Correndo atrás dos prazeres, corre atrás das sensações. Correndo atrás das sensações, volta ao número zero.
É próprio do que se convencionou chamar “espírito holywoodiano” o ter transformado em uma fonte de prazer intemperante até mesmo as coisas que de si não dão prazer. O alemão típico, por exemplo, encontra a felicidade no trabalho intenso, mas calmo. A pessoa de espírito holywoodiano busca o prazer no trabalho agitadíssimo, e que produz como que uma embriaguez da realização. O turista europeu, pelo menos o de até pouco tempo atrás, encontrava o prazer numa viagem ponderada, equilibrada, tranqüila. O turista holywoodiano, segundo a imagem convencional, encontra o prazer em devorar as distâncias e em se intoxicar de sensações sucessivas, que ele não é capaz de digerir.
Febricitação – oposto da temperança e da felicidade
A febricitação é a mania de ter continuamente sensações fortes, de não viver na placidez de uma vida ordenada e comum, mas de estar imerso nas sensações fortes.
Essa é uma mania que é a extensão lógica da sede de prazer para a sede de outras sensações em outros terrenos da vida, e que criam o estilo moderno de viver. É uma corrida atrás da sensação, a propósito de tudo e de nada. O homem temperante se defende da sensação, o intemperante corre atrás dela e procura viver sugando sensações.
Daí os senhores têm, em grande parte, o desequilíbrio da sociedade moderna, e a alegria que certo caipira encontra quando chega à cidade moderna. É por causa das sensações fortes que a cidade moderna dá, ainda que seja a sensação de que uma pessoa pode ser atropelada num desastre de automóvel. Ele volta para a sua cidadezinha e começa a contar na praça pública como foi que ele quase morreu. Ele esteve numa cidade onde os automóveis correm tão depressa que ele quase morreu debaixo de um. Acha isso bonito. O coitado quase foi morto, e não só gostou de sentir essa sensação, mas gosta de contar que sentiu, para fazer participar os outros, como de um vinho capitoso, da sensação de quase ter morrido.
Outro exemplo, nós o tivemos hoje. Um jornal publicou uma fotografia que, modernosamente falando, é muito bonita: um avião vai descendo, e em primeiro plano estão umas flores, e depois um mastro. O fato é que perigava acontecer um desastre, porque o trem de aterrissagem não se soltava. Em certo momento o piloto meteu o pé num dispositivo qualquer, e o trem de aterrissagem desceu. Eu lhe garanto que muita gente acha que esse homem viveu um momento delicioso da vida: “Ele teve um grande susto e quase morreu. Que grande homem!”
É ou não é verdade que os senhores conhecem por aí gente que até consideraria esse piloto com certa admiração? Porque ele praticou essa forma intensa de viver, que é ter passado por uma sensação extraordinária. Tudo quanto é sensação extraordinária passa a ser felicidade. Todos – ao menos todos os bobos – ficarão com admiração por esse coitado atraiçoado pela técnica. No entanto, à noite ele dormiu agitado, e nos nervos dele ficou uma carga da qual talvez jamais se desfaça. É o preço que terá tido de pagar pelas sensações fortes.
E daí vêm os mil desatinos dessa nossa civilização, que pode ser chamada a civilização do sensacional, em oposição à civilização antiga, que era a do racional, do razoável, do equilibrado, do comedido.
Como a febricitação penetrou em Viena
Aqui fica uma justificação da frase de Marcel Brion, a propósito da transformação que houve em Viena. Ela foi a cidade da alegria, mais ou menos até o momento em que ela se deixou dominar pelos eflúvios da Revolução Francesa. À medida que aqueles eflúvios foram penetrando, penetraram junto a intemperança, o gosto das sensações fortes. E Viena, a cidade da alegria – mas da alegria comedida, razoável, estável – passou a ser a cidade dos prazeres, dos divertimentos, e portanto da intemperança. Passou daí a ser também a cidade da infelicidade.
O autor então compara o minueto – a dança do Ancien Régime, com toda aquela simplicidade, aquela calma, aquela racionalidade – com a valsa, que era uma dança praticada por pares, num verdadeiro turbilhão: dança que dança, gira que gira, como um dervixe do Oriente. Ficaram em moda salões de baile enormes. Às vezes eram salões de baile populares, em que dançava quem queria, embora num ambiente de muita moralidade. Tornou-se moda dançar a valsa o mais depressa possível, correndo, correndo, correndo, de ponta a ponta do salão. De maneira que a valsa passou a ser uma corrida. Quer dizer, algo de mais inebriante.
Diz o autor que essa mudança indicava uma mudança do estilo de sensibilidade, e a passagem da serenidade para a sensação.
APLICAÇÕES CONCRETAS
Tão forte é nossa escravização à sensação, ao sensacionalismo, que eu fiz um pequeno teste: tardei um pouco demais na descrição da vida calma, e vários dos senhores, que tiveram a condescendência de ouvir com interesse esta exposição, ficaram com o olho vidrado, um pouco alheios, como quem diz: “Mas também assim é calmo demais!”
Um exame de consciência
Para quem queira fazer um exame sobre em que ponto está sua posição face ao problema das sensações, poderíamos perguntar o seguinte: Quem é que se agradaria de levar a vida antiga, como eu acabo de descrever, nos vários níveis que ela tinha? A vida do castelão do interior, do político, do prefeito, do administrador numa cidade onde a política não tivesse a fermentação que atingiu com a vida moderna; ou do bauer, do fermier – que é uma espécie de camponês, meio termo entre o fazendeiro e o camponês – ou do trabalhador manual na vida do interior.
O “Angelus” de Millet
Termino com a evocação de um quadro, o Angelus, de Millet. O que Millet quis exprimir naquele quadro, de modo romântico, é a felicidade sem prazer. É a tranqüilidade imensa do campo, do trabalho que terminou, do Angelus que está tilintando o sino da igreja próxima; do casal que está rezando na castidade da vida do campo, de tamancos, com os trajes de campo e com os instrumentos de trabalho; e que, na calma do campo, vai voltar para casa e vai jantar.
Um vai descansar, vai sentir o cheiro da comida, que começa a entrar pela casa, a fumaça que sobe pela chaminé, o teto de colmo, o barulho de um bicho que está procurando um pouso, uma criancinha que está fazendo suas últimas piruetas antes de dormir. Vem a noite, e aquela segurança dentro da casa, enquanto a intranqüilidade da noite domina em volta dela. É a alegria, a felicidade das situações.
Não é bem verdade que todos nós lucraríamos muito em inalar essa felicidade, e que é um verdadeiro infeliz o indivíduo intoxicado pela posição de espírito oposta? A mim me parece que sim.
É exatamente o que eu admiro nos nossos êremos (*), em matéria de graça. Eles são tocados por uma graça, por onde seus ocupantes vivem bem lá. Creio que quase todos os senhores têm estado nos nossos vários êremos. Não acham nem soluço nem tristeza dentro. Não há também alegria excitante. Existe essa tranqüilidade de quem leva uma vida normal, calma, sem sensações, de uma atividade fecunda, de oração, etc.
De tal maneira eu desejaria que todos os colaboradores da TFP tivessem esse estado de espírito temperante, que tive como uma das intenções, na decoração da Sede do Reino de Maria (**), exatamente criar um ambiente que o propiciasse. É o gosto de uma situação.
A pessoa presente na Sede do Reino de Maria ( atual sede do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira ) degusta uma situação, tanto quanto o ambiente pode influenciar uma pessoa, sem lhe dar vontade de sair, sem lhe dar vontade de se divertir, de fazer outra coisa senão sentar-se lá e dizer: “Isso aqui foi feito para mim, isso aqui é minha casa, é o lugar onde eu repouso, é o lugar onde eu me preparo para o trabalho”. Contemplar, andar de um lado para outro, sentar-se um pouco.
Não é bem verdade que a Sede convida para isso, de modo formativo e atraente? Como isso é diferente da civilização atormentada, do trabalho agitado, da ambição torturante, da vaidade ditatorial que impõe às pessoas modas absurdas e regimes horrorosos, e do prazer hipnótico, fascinante e deteriorante!
O homem temperante é batalhador
Aí os senhores têm dois estilos de vida. Não sei bem se esta é uma conferência ou uma meditação, que eu quisera fazer para despertar nos senhores o desejo de rumarem o quanto possível para esse estado de espírito, que é de onde sai o homem batalhador.
Esses fazendeiros antigos não eram songamongas. Depois um certo número deles decaiu, mas os antigos eram guerreiros, quase como senhores feudais. Eu conheci alguns desses. Tinham uma estabilidade e um senso de felicidade que hoje desapareceu.
É nesse sentido, portanto, que o prazer é uma cilada. Ele facilmente convida para o abuso. Não quero dizer que se deva abster-se dele, mas sim que se deve tomar cuidado com o prazer; como em relação a certos remédios, que tomados em dose muito pequena podem ser úteis, e até indispensáveis; mas ai de quem errar a dosagem! Fica envenenado. É assim também com o prazer.
NOTAS
(*) “Êremos”: sedes da TFP especialmente destinadas a estudo e oração, caracterizadas por um ambiente de recolhimento e por uma regra de vida precisa.
A palavra “êremo” deve-se a Fábio Vidigal Xavier de Silveira, dirigente da TFP brasileira, falecido em 1971. Alguns anos antes da sua morte, visitando o célebre Eremo delle Carceri, em Assis, tinha-se entusiasmado com o espírito sobrenatural que o caracterizava e tinha aplicado o uso desta palavra, na linguagem familiar, à sede em que trabalhava (Cfr. “O Cruzado do Séc. XX”, Cap. 5, 2).
(**) Outrora sede do Conselho Nacional da TFP brasileira, à Rua Maranhão, n.° 341, São Paulo, e atual sede do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, solenemente inaugurada em 25 de dezembro de 1970: “Essa sede é consagrada ao Reino de Maria, sendo denominada, na linguagem corrente da TFP, Sede do Reino de Maria. Com isso, os sócios e cooperadores da entidade querem manifestar o seu ardente desejo da plena restauração da civilização cristã em nossos dias, conforme a promessa de Nossa Senhora nas aparições de Fátima: ‘Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará’. O Reino de Maria – segundo explanam vários santos insignes, especialmente São Luís Maria Grignion de Montfort – é a plena vigência dos princípios do Evangelho na sociedade humana, espiritual e temporal” (cfr. “Um homem, uma obra, uma gesta – Homenagem das TFPs a Plinio Corrêa de Oliveira”, Capítulo V, 30 – Inauguração da atual sede do Conselho Nacional da TFP)
(***) Para a continuação do vídeo sobre a Sede do Reino de Maria ver: Parte II (Fim vídeo SRM)
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Fonte: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/DIS_SD_19720328_Felicidadedesituacao.htm#.Wu5dqYgvzIU