A Igreja Católica na Idade Média

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Série Idade Média – VI — O papel da Igreja na Sociedade Medieval – I (*)

Prof. Plinio Corrêa de Oliveira (1954)

Qual era a situação da Santa Igreja na Idade Média, os Srs. todos já sabem. Era imensamente diferente da situação que Ela tem hoje em dia. E assim como a situação da Igreja em nossos dias é o resultado de determinados pressupostos, de determinadas considerações e determinados postulados de ordem doutrinária, assim também na Idade Média a situação da Igreja baseava-se sobre postulados, idéias ou conceitos doutrinários de uma natureza diferente. Porque o que o bom senso nos mostra, e a história nos confirma, que todas as situações existentes entre homens, em última análise, são baseadas em idéias e doutrinas.

Nós não encontramos uma instituição, uma organização, um teor de relações entre homens que não seja baseado — ainda que esses homens não o percebam — em determinadas idéias, em determinados princípios que eles admitem como verdadeiros, e em função dos quais desenvolvem as suas relações. E devemos analisar um pouco a diferença de princípios sobre os quais se baseia a situação da Igreja em nossos dias, e sobre os quais se baseava na Idade Média.

Qual é a situação da Igreja em nossos dias? Para não fazer generalizações que talvez não sejam muito científicas, e para ficar dentro de um campo determinado, definido, vamos tomar a situação da Igreja no Brasil. Qual é a função legal da Igreja no Brasil, no ano de 1954? Como todos sabem, no Brasil a Igreja está separada do Estado. Quer dizer que o Estado brasileiro não reconhece como verdadeira nenhuma Igreja. Ele não admite como verdadeira a Igreja Católica, como nenhuma outra igreja, e nem dá preferência a qualquer igreja sobre as outras associações.

De maneira que a Igreja Católica Apostólica Romana, ou então a Igreja Brasileira, fundada pelo desventurado ex-bispo de Maura, ou então a igreja japonesa – que certos bonzos budistas estão construindo aqui entre nós – constituem associações de fins lícitos e que, portanto, podem livremente formar-se e livremente organizar-se. Associações lícitas, como por exemplo, associações de colecionadores de selos, associações de pessoas que apanham borboletas, uma associação de astrólogos, uma associação de poetas: diante da lei brasileira a Igreja Católica e todas essas associações estão absolutamente na mesma situação. Os fins são lícitos, as associações se constituíram, elas gozam do direito de realizarem seus fins e de se organizarem como entenderem.

Qual é pressuposto que está na raiz disto? É um pressuposto muito simples: sendo difícil saber se há uma religião verdadeira, e saber qual destas religiões é a verdadeira, o Estado não deve tomar posição, porque os homens facilmente podem enganar-se a esse respeito e podem enganar-se com inteira boa fé, com intenção perfeitamente boa. E é mesmo tão difícil, que não se pode saber se o problema é solúvel. (…)

A Igreja Católica é verdadeira

A Idade Média também admitia esse princípio. Ela entra em desacordo com o mundo de hoje num outro ponto. Ela admitia que é manifestamente errado que a Igreja Católica não fosse verdadeira. Ela tomava a veracidade da Igreja Católica — as provas que demonstram que a Igreja Católica Apostólica Romana é a única e verdadeira Igreja de N. S. Jesus Cristo, que N. S. Jesus Cristo é Deus, que a Igreja é a Igreja Verdadeira — como uma verdade tão certa, tão evidente, como nós tomamos, por exemplo, a verdade de que o curandeirismo é uma coisa falsa. Equivaliam-se as coisas.

Nós não permitiremos que uma pessoa faça propaganda para dizer que é bom tomar injeção de água no cérebro para curar resfriado, porque é uma coisa evidentemente falsa. Pela mesma razão o medieval não permitia a propaganda de uma doutrina contrária à Doutrina Católica, porque a certeza de que a Igreja Católica é verdadeira era uma certeza tão grande quanto é para nós a certeza de que a injeção de água no cérebro não cura gripe. Quer dizer, há um ponto de desacordo entre as duas concepções, a atual e a medieval, a respeito da Igreja Católica.

E o problema posto em foco, ontem como hoje também, era o seguinte: as provas que a Igreja dá de si mesma são provas que se impõem a todo espírito reto que estude a questão? Se são, não pode haver liberdade para aqueles que discordaram da Igreja. Eles que estudem, eles verão. Se não são, neste caso então deve haver liberdade. Nós temos que a diferença entre o laicismo de hoje e a posição medieval está numa diferença de atitude perante a Igreja Católica.

O homem da Idade Média considerava a Igreja Católica certa, e as provas disto são manifestas. O homem contemporâneo considera a Igreja Católica certa ou errada, em todo caso as provas são difíceis de aquilatar, duvidosas, uma questão portanto, de opinião. Tudo quanto nós vamos estudar a respeito da posição da Igreja Católica na Idade Média gira em torno disso.

Os Srs. tomem uma sociedade em que todo mundo é católico. Mas todo mundo não quer dizer todo mundo como no Brasil, onde temos 97 ou 98% de católicos, mas onde todos os católicos, ou grande número deles, se permitem discutir, pouco mais ou menos, a religião católica. Os Srs. admitam uma época onde realmente o fluxo enorme das pessoas era católico e admitia toda a Doutrina Católica como verdadeira. Essa sociedade, que posição, que atitude tomava em face da Igreja Católica? É isso que agora vamos estudar.

A primeira coisa que eles faziam era a seguinte: uma vez que a Igreja Católica é verdadeira, eles admitiam que os Evangelhos são verdadeiros, que o Antigo Testamento é verdadeiro, e que a Igreja Católica tem o poder de interpretar, de modo infalível, o Antigo e o Novo Testamento.

Depois, admitiam também que Jesus Cristo tinha dado à Igreja Católica poderes para fazer leis no sentido de salvar os homens, e as leis contidas no Antigo Testamento, bem como as leis feitas pela Igreja Católica para governar os homens tinham o valor de leis do Estado para todas as nações católicas da Europa. Não era necessário que um país fizesse uma lei, para pôr em vigor uma lei feita pelo Papa: a lei feita pelo Papa tinha vigor em toda Cristandade automaticamente, pelo próprio fato de haver sido feita pelo Papa.

Não era necessário que um país fizesse uma lei, declarando que tal disposição do Novo Testamento está em vigor, ou que tal outra disposição do Antigo Testamento está em vigor. Deus não precisa dos homens para dizer que Ele tem licença para fazer leis, pelo contrário, é em nome d’Ele que os homens governam, em nome d’Ele que os homens fazem leis, e as leis de Deus, as leis da Igreja eram automaticamente leis de todas as nações, do conjunto de todos os Estados cristãos, que naquele tempo se chamava Cristandade.

Essas leis (do Antigo Testamento) estavam em parte revogadas pelo Novo Testamento, mas o Novo Testamento estava todo em vigor; além dessas leis do Antigo e do Novo Testamento, nós tínhamos as leis feitas pelos Papas e pelos concílios. As leis feitas pelos Papas e pelos concílios constituem o Direito Canônico que se dividia em duas espécies de legislação: as decretais, que eram as leis feitas pelos Papas; e os cânones, que eram as leis feitas pelos concílios.

A palavra cânone é uma palavra grega que quer dizer regra. Essas leis foram objeto de várias compilações sucessivas. Eu não vou dar aqui, porque o nosso curso é muito resumido, a história dessas várias compilações sucessivas — desde Dionísio (?) até São Raimundo de Penaforte, e mais recentemente até as Decretais Clementinas — mas passarei desde logo a analisar essas leis.

Essas leis o que dispunham? O que estabeleceram? A primeira coisa que nos chama a atenção no Direito Canônico é a parte das leis referente à situação do clero dentro da sociedade. Os Srs. sabem que no tempo dos romanos a Igreja era perseguida. Ela [não] tinha o direito de existir e quando Constantino a chamou de dentro das catacumbas para lhe dar liberdade, ao mesmo tempo reconheceu-a como a Igreja verdadeira. Começaram desde logo a se tirar daí as conseqüências legais decorrentes.

Já no Império Romano, antes da queda, havia um primeiro privilégio dos bispos. Um bispo não podia ser julgado por ninguém. Ainda que ele fosse acusado do mais atroz dos crimes, não podia ser julgado por nenhum tribunal civil. Ele só podia ser julgado por um tribunal constituído pelos outros bispos de sua província eclesiástica.

A Igreja Católica se dividiu desde muito cedo em províncias eclesiásticas, como as que temos dentro do Brasil, tendo cada uma delas à sua testa um metropolita. São Paulo, por exemplo, é uma província eclesiástica, aliás, a mais numerosa do mundo, tem 14 dioceses, tendo à testa dela um metropolita, que é o cardeal arcebispo de São Paulo.

Um bispo, segundo princípio do sistema medieval, ainda que cometesse um crime gravíssimo, só poderia ser julgado por seus pares. Não se trata aqui de um privilégio por mera amabilidade, mas é uma conseqüência rigorosa do fato da Igreja Católica ser verdadeira.

Seu bispo é o sucessor dos apóstolos: se a mais alta dignidade que existe sobre a terra é a dignidade dos apóstolos e dos seus sucessores, e a Igreja é fundada por Deus e o Estado é uma constituição material dirigida por homens, não é razoável que um bispo seja julgado pelo Estado. Não é razoável que um inferior julgue seu superior.

O que os Srs. diriam de um exército em que houvesse um regulamento dizendo o seguinte: quando um general comete um crime é sujeito ao julgamento de um tribunal de tenentes e quando um tenente comete um crime é sujeito ao julgamento de um tribunal de praças. Nós diríamos que isto é uma loucura, o contrário seria razoável, e um general só pode ser julgado por um tribunal de generais.

Pois bem, por essa mesma razão um bispo só podia ser julgado por um tribunal de bispos. E a pena que fosse dada ao bispo devia ser cumprida sob fiscalização dos outros bispos, de tal maneira que o Estado não tocasse no bispo, porque ele é uma pessoa sagrada e, para o Estado, uma pessoa intocável.

A situação hoje é diferente. Nós tivemos, por exemplo, um bispo como D. Vital levado a ferros para o Rio de Janeiro e colocado no presídio da Ilha das Cobras, porque o Estado se julgava no direito de prender um bispo. Isso seria impossível no tempo do Império Romano do Ocidente e na Idade Média.

Quanto aos clérigos, no tempo dos romanos a legislação canônica ainda não estava muito bem definida. Mais tarde ela se definiu melhor. Nos tempos dos romanos, o clérigo deveria ser julgado segundo as leis comuns. Na Idade Média estabeleceu-se que o clérigo só poderia ser julgado pelos bispos e que as penas que o clérigo devia sofrer, eram as penas dadas pelos bispos.

Apenas podia dar-se uma situação extrema, quando o clérigo merecia uma pena de morte ou merecia uma pena que importasse em derramamento de sangue: neste caso, naturalmente, a situação era outra. A Igreja nunca derrama o sangue de ninguém. Existe uma máxima: “Ecclesia abhorret a sanguine”.

O processo que se tinha de aplicar então era de a Igreja degradar o clérigo numa cerimônia impressionante, em que lhe eram tiradas as unções das mãos e ele era despojado de todos os paramentos eclesiásticos. Só então ele era entregue ao Estado, depois de ser eliminado, por assim dizer, da clericatura para ser objeto de uma condenação. Mas nunca ele era condenado na plena posse de seus direitos de clérigo, por esse princípio da inferioridade do Estado em relação à Igreja.

Foi, aliás, o que tivemos aqui no tempo do Brasil colônia, quando Frei Caneca foi condenado à morte. Primeiro ele foi degradado para depois ser entregue à justiça comum.

(*) A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a colaboradores do então Grupo do “Catolicismo”, do qual posteriormente surgiria a TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Devido à idade das gravações, alguns trechos estão inaudíveis, mas não são de monta a impedir a compreensão do sentido geral da conferência.

https://www.pliniocorreadeoliveira.info/DIS_SD_1954_Idade_Media_06.htm

(continuaremos no próximo Post a parte final que trata da regulamentação do sacramento do matrimônio, dos bens, das obras caritativas)

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