Brexit, expressão de nostalgia da cristandade

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À meia-noite do dia 31 de janeiro, reunida diante de Westminster, a população britânica entoou em uníssono o hino “Deus salve a rainha”. Desafiando o frio e a garoa, exultava de alegria porque, afinal, a Grã-Bretanha havia abandonado a União Europeia (UE), três anos e meio após o referendo em que a maioria dos britânicos preferiu o Brexit, ou seja, a retirada. Após três adiamentos e uma infinidade de manobras políticas, era o primeiro país-membro a deixar o bloco europeu, desde sua criação em 1958.

Numa atmosfera típica de réveillon, cercados por centenas de milhares de bandeiras pátrias, os felizes britânicos erguiam cartazes com os dizeres “dia da independência” e “nosso país de volta”. As cores nacionais iluminavam residências simbólicas como a do primeiro-ministro, no nº 10 da Downing Street. “A guerra acabou: ganhamos”, repetia Nigel Farage, o político que batalhou durante mais de 20 anos pelo Brexit.

Em 12-12-2019 o Brexit foi ratificado por cômoda maioria, não deixando margem a dúvida, chegando alguns a qualificá-lo de “o dia da independência”

Nesse mesmo momento, com ar fúnebre, arriava-se a Union Jack nas sedes da União Europeia em Bruxelas e Estrasburgo. Alegria popular de um lado, acabrunhada dos burocratas comunitários do outro. Com o seu entusiasmo pelas nações que constituíram a Cristandade nos séculos de Fé, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira provavelmente se associaria às alegrias do outro lado da Mancha. Por ocasião de sua viagem à Europa em 1950, para contatos com representantes desse glorioso passado, ele teve um horrível choque com o que lhe confidenciou um nobre ligado a elevados eclesiásticos e príncipes reais, durante um almoço no Automóvel Clube de Paris:

“A Europa não caminha para uma dilaceração, mas para uma síntese. Está sendo preparada uma Europa Unida, que deverá absorver todos os países; e no interior de cada país, todas as facções. Haverá um parlamento e um governo europeus, que farão desaparecer as diversidades nacionais. Serão eliminadas as fronteiras, e a Europa terá um só mercado consumidor, uma só indústria e um só comércio geral […]. Compor-se-ão desde o Partido Comunista até as correntes monarquistas mais intransigentes […]. As Casas Imperiais e Reais e a antiga nobreza vão mandar seus deputados para o Parlamento de Estrasburgo. Sentado ao lado do arquiduque Otto de Habsburgo estará o presidente de um sindicato. A Europa inteira, desde a sua mais antiga tradição carolíngia até a mais moderna extrema esquerda, caminhará no mesmo rumo”.[i]

Nessa viagem de três meses, Dr. Plinio ouviu a repetição dessa mesma palavra de ordem, anunciando que tudo estava sendo planejado para pulverizar as últimas ruínas da Cristandade. Mas não perdeu a esperança, nem mesmo quando a análise metódica do noticiário confirmava o plano que estava sendo implacavelmente urdido.

Em 1988, ano de sua última viagem à Europa, ele colheu impressões opostas sobre o que então acontecia, e designou uma comissão para estudar as mudanças. Constatou que a União Europeia se arriscava ao insucesso, pois não havia conseguido convencer os europeus, mas apenas acostumá-los às benesses com que os inundava. Afirmava ele que um imprevisto poderia derrubar o plano, e deu um exemplo: “Uma nação de dimensões pequenas mas de grande cultura, como a Dinamarca, pode recusar a UE e encrencar tudo. É a famosa metáfora do carro de boi puxado por muitas juntas. De repente um boi se deita na estrada, e tudo para”.[ii]

Com efeito, em 2 de junho de 1992 a Dinamarca repeliu em referendo o Tratado fundacional de Maastricht, dando início a uma longa série de recusas plebiscitárias —deturpadas, aliás, por ardilosas manobras da UE —, até que em 12-12-2019 o Brexit foi ratificado por cômoda maioria, não deixando margem a dúvida.

“Amo a Europa, mas detesto a União Europeia. Eles querem nos controlar, fazer nossas leis, pegar nosso dinheiro”, disse Julie, educadora de Yorkshire, na festa do Brexit.

Nigel Farage: “Os britânicos […] não precisamos de uma Comissão Europeia nem de um Tribunal Europeu. […] A União Europeia é um projeto ruim, antidemocrático e inaceitável. Eu sei que os senhores querem banir nossas bandeiras nacionais, mas vamos dizer adeus”.

“Agora poderemos fazer o que quisermos, quando quisermos, porque todas as leis e regulamentações serão feitas aqui em Londres, e não na Europa”, comemorou Kevin Russell, de Milton Keynes.

Nigel Farage, líder do Brexit, falou da saída como “a coisa mais importante desde que Henrique VIII nos tirou da Igreja de Roma”. E vaticinou “uma batalha histórica” de nações como a Dinamarca, a Polônia ou a Itália, para deixar a UE.[iii]

Na sua despedida do Parlamento Europeu, os deputados britânicos desabafaram abruptamente os ressentimentos acumulados. Nigel Farage repreendeu a presidente da sessão, Mairead McGuinness: “Vi a Constituição ser rejeitada pelos franceses em referendo. Eu a vi ser rejeitada pelos holandeses em outro referendo. Vi os senhores ignorá-los e trazer a Holanda de volta com o Tratado de Lisboa.[iv] […] Os britânicos são grandes demais para se intimidar, […] não precisamos de uma Comissão Europeia nem de um Tribunal Europeu. […] A União Europeia é um projeto ruim, antidemocrático e inaceitável. Eu sei que os senhores querem banir nossas bandeiras nacionais, mas vamos dizer adeus”. Nesse momento, os deputados favoráveis ao Brexit presentes no Parlamento fizeram tremular a bandeira britânica, exclamando Goodbye! A presidente da sessão, em estilo “soviete supremo”, cortou-lhes o som e bradou: “Guardem suas bandeiras e levem-nas embora!”. Os britânicos partiram alegres, enquanto alguns europeístas choravam.[v]

Extenuantes negociações devem logo ter início, para separar os bens nacionais dos comunitários. Nessas disputas deve patentear-se a decadência da UE, similar à que Dr. Plinio assinalava sobre a decadência da Revolução iniciada com Lutero em 1517: “Ela perdeu a parti­da, dando um passo muito maior que suas pernas”. O açodamento acarretará imprudências revolucionárias, como as que desfecharam no Brexit. Por isso a humanidade irá se aproximando da situação final do filho pródigo: “Quando chegou às bolo­tas dos porcos, aí ele se lembrou da casa do pai”.[vi]

Na presente crise, os britânicos do Brexit e seus símiles tornar-se-ão cada vez mais saudosos da Cristandade que brilhou na Idade Média, deixando um legado de tradições, monumentos e instituições que ninguém pode extinguir. É oportuno lembrar que uma dezena de franceses divulgou recentemente o movimento Frexit.[vii]


[i]) Extraído de Plinio Corrêa de Oliveira, Minha vida pública, Artpress, 2015, 827 págs., p. 394.

[ii]) Apontamentos de 27-12-1989.

[iii]) TSF Rádio Notícias, 29-1-2020.

[iv]) Cfr. Catolicismo, julho/2008: “Irlanda: NÃO ao Tratado de Lisboa”.

[v]) BBC News, 30-1-2020.

[vi]) Apontamentos de 27-12-1989.

[vii]) Folha de S. Paulo, 31-01-2020.

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