Chegara a minha vez, numa roda de colegas, de enunciar o instrumento musical que eu soubesse tocar. Minha experiência com instrumentos musicais se resumia a concertos de que participei a contragosto na infância, quando a vara ou chinelo cantava e eu fazia contraponto, entoando uma melodia conhecida como abriu o oboé (o bué, como se dizia). Acho que eu nem sequer saberia tocar corretamente um apito, mas resolvi fazer uma brincadeira, e afirmei convictamente:
— Todos.
Depois de um curto intermezzo admirativo no vozerio geral, fiz com o indicador um gesto característico enquanto completava:
— … com um dedo só.
Meu gesto se vinculava ao botão play dos aparelhos de som, e podia ser interpretado como proposta alternativa a um projeto que ali se discutia, e que eu desejava tanto quanto os outros: a formação de um conjunto musical para alegrar nossas festinhas. Seguiu-se uma ruidosa cacofonia vocal ad libitum, dando-me a certeza de que o projeto era “pra valer”. Resolvi então reforçar a decisão do grupo através da oposição, que costuma ser um bom meio para isso. E sustentei a nota:
— Olhem só! Parece que vamos precisar só dos instrumentos, pois já temos o coral. Basta afinar um pouco…
Isso pôs em surdina o coro de protestos e vaias, e eu pude prosseguir:
— Tanto esforço para formar um conjuntinho de quinta categoria, quando podemos ter boa música dos melhores conjuntos. Basta comprar um bom aparelho de som e os CDs que nos interessam. É mais barato, mais fácil, e o resultado é imediato.
Se nenhum colega contra-argumentasse, eu estava preparado para acrescentar ma non troppo às minhas razões imediatistas. Mas havia gente de bom gosto ali, e logo fui contestado:
— Você acha que uma caixa de som faz o mesmo efeito que um conjunto tocando ao vivo?
— Não acho, não. Mas o som é o mesmo, e executado por profissionais.
— Você já ouviu uma banda de música tocando na rua, em festividades religiosas ou em paradas?
— É claro! Até na metrópole de Caixa-Pregos, onde nasci, havia uma lira dessas. E eu sempre a acompanhava, como todo mundo.
— Se você me disser que é a mesma coisa ouvir uma “furiosa” ao vivo ou através de um alto-falante de carro de som, vou convidá-lo a não participar do nosso conjunto, pois estará claro que não entende nada de música.
Era humilhante ser desmascarado assim ante os colegas. Minha posição estava ficando insustentável, mas a honra da firma exigia um staccato à altura:
— Acho que não estamos executando a mesma partitura, ou falando a mesma linguagem. Aparelho de som, para mim, não quer dizer traquitana de baixa qualidade, com resposta de frequência insuficiente. Estou propondo aparelhos de alta fidelidade.
— Dá no mesmo. Experimente ouvir uma música tocada no órgão de uma igreja, e a mesma música no seu aparelho de alta fidelidade. E não me diga depois que a imitação é igual ao autêntico.
Eu já estava à procura de uma deixa para o toque de recolher, quando outro colega contou o seguinte fato da vida de Caruso, o grande tenor:
Um vendedor de fonógrafos ofereceu a Caruso um desses aparelhos, que era uma novidade recente, argumentando que ele poderia gravar todo o seu repertório. Caruso gostou da ideia e quis fazer um teste. Mas em vez de cantar, tocou um número de flauta. Depois de ouvir a reprodução, perguntou:
— Isso é o que eu toquei?
— Exatamente, senhor!
— E é assim que eu toco flauta?
— Sim, senhor! É maravilhoso!
— Claro, claro!
— Quer dizer, então, que o senhor me compra o aparelho?
— Não, mas eu lhe vendo minha flauta.
Eu poderia alegar que no tempo de Caruso os aparelhos de som eram rudimentares, embora a propaganda os alardeasse como a voz do dono (e o ouvinte – eu, você – seria aquele cachorro…). Isso espicharia a discussão, mas não mudaria o resultado. Pois imitação nunca passa de imitação, por mais que melhore a tecnologia e as fábricas divulguem o contrário. Além disso, o meu objetivo estava plenamente atingido, já que meus colegas não trocariam som autêntico por imitação encaixotada.
Esta coluna semanal pode ser reproduzida e divulgada livremente desde que citada a fonte e o autor
Ufa! Até que eu posso alegar que meu canto é melhor ao vivo, não o que ficou gravado. Obrigado pela saída honrosa.