Outro título para o artigo: cruzado no queixo — do brasileiro. Podia ser: divagações melancólicas. Uma mais, angústias perenes. Ainda: opção preferencial pelo desmoronamento. Luzes depois da tormenta indicaria resistência ao infortúnio. Tantos mais haverá; depois de respigar algumas ideias do texto, os escassos leitores verão qual escolheriam. Certamente, espero, teriam boas ideias, distantes das apagadas atrás enfileiradas.
Entro no assunto. Amigo antigo, observador agudo, enviou-me lista de políticos hoje praticamente desconhecidos, engolidos pelo turbilhão dos acontecimentos. Acompanhava-a apenas a frase: — “Compare, ainda tem jeito? Divulgue.” Compare, ainda tem jeito? Entendi o desafio, era para comparar os nomes constantes da lista com a (tive a tentação de escrever) fauna política que nos rodeia, em que campeiam a desorientação, a boçalidade, primarismos, grosserias, ladroeiras. Na lista, em sentido contrário, havia figuras de reconhecida cultura, inteligência refinada, educação cuidada, capacidade testada de gestão e governo, figuras de destaque provenientes do mundo da ciência e da experiência. E eram políticos correntes na época, o arroz com feijão.
E o “ainda tem jeito”? A que vinha? Entendi também, referia-se à situação em Pindorama. Com os dirigentes que temos, exceções de praxe, ainda haveria esperanças de aperfeiçoamento e progresso no Brasil? Ou não haveria mais jeito, a vaca já foi para o brejo? De passagem, acho que ainda há esperança, só que o começo da solução não está em eleições, em políticos e em poder político.
Li e reli a lista. E me veio ao espírito a conhecida observação de Ulisses Guimarães, provavelmente de 1991, tantas vezes repetida, com versões ligeiramente diferentes, em resposta a pessoa que lamentava a baixa competência dos membros do Congresso Nacional: “Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espere a próxima. Será pior. E pior e pior. Temos algumas poucas cabeças boas aqui. É necessário juntá-las, onde quer que estejam, e fazê-las trabalhar num rumo só: para a frente. Sempre.”
Para o vivido político, a péssima representação política brasileira, cada vez pior, seria como que abracadabra macabro nosso, cujos eflúvios mefíticos fatalmente nos empurrariam ladeira abaixo. Rumo a o quê? Óbvio, rumo ao desastre, provocado em especial pela degringolada moral e escasso valor humano dos dirigentes que vencem as eleições com promessas ocas e engodos indecentes, constituindo na prática (outra vez, eliminando as honrosas exceções) triste amontoado incapaz das mais comezinhas noções de bem comum e senso de governo; a mais, foco de roubalheiras, indiferença à sorte popular e desconhecimento do que seja aperfeiçoamento da sociedade e do Estado. Para muitos dos brasileiros, a qualificação correta vai mais fundo, seriam menos que amontoados, constituiriam, na verdade, monturos, lupanares autênticos, onde se traficam honra, propinas e favores torpes.
A trágica situação evidencia opção preferencial pelo atraso. E exclusão sobretudo dos mais gabaritados e melhores, que teriam condições de contribuir mais para a ascensão popular. Significa, de outro lado, adiar, sabe Deus para quando, a inclusão social de milhões, impedindo-lhes vida digna. Crueldade de insensíveis.
Depois de recordar o que hoje se encarapita no mundo oficial, obedeço de novo a meu amigo e revelo o que dele recebi. A lista é a representação federal mineira nas eleições de 1954, 39 deputados federais. Entre eles, Ovídio de Abreu, Bilac Pinto, José Maria Alkmin, Israel Pinheiro, Magalhães Pinto, Último de Carvalho, Milton Campos, CarlosLuz, Nogueira da Gama, Oscar Dias Corrêa, José Bonifácio, Gustavo Capanema, Afonso Arinos , Otacílio Negrão de Lima, Artur Bernardes, Rondon Pacheco, Pinheiro Chagas, Mário Palmério, Tristão da Cunha, Gabriel Passos. Dos39, escolhi 20, um tanto aleatoriamente. Os não constantes, regra geral, fazem também boa figura. Não analiso aqui posições políticas, nem sua contribuição positiva ou negativa ao Brasil. Todo político é controvertido. Meu foco é outro: tipos humanos, padrão, personalidade, gente moldada para a vida pública, apta a trabalhar com eficiência pelo bem comum. Via de regra, os referidos representantes viviam imersos em ambientes embebidos de hábitos de sobriedade, morigeração, decência, cortesia. Ali moldavam a personalidade, instrução, exemplos, até por osmose. E, sem restauração de tais cadinhos de norte a sul, o Brasil não tem jeito. Se a eles dermos as costas, serão inúteis, por vezes contraproducentes, esforços por um mundo mais justo e solidário; mais cristão, enfim. Nenhuma árvore é viçosa sem raízes saudáveis.
Recuo 20 anos, foco num aspecto da Constituinte de 1933. Plinio Corrêa de Oliveira [foto acima], seu deputado mais jovem e mais votado em todo o Brasil, assim descreve o clima ali reinante em artigo para “O Legionário” (10-12-1933): “À medida que vão passando os dias, os diversos tipos de deputados se vão definindo perfeitamente e os hábitos, usos e costumes da nova Constituinte são consolidados pela prática. A primeira impressão que me deu a Constituinte foi a de um enorme e suave aquário de água morna, banhado por uma luz brandamente pálida, em que evoluíam, com a discrição silenciosa com que só os peixes sabem evoluir, os tubarões ou as sardinhas da política nacional. Só quem conhece o Palácio Tiradentes pode apreciar a justeza da comparação. Tudo nele é rico, discreto e acolchoado, desde a poltrona em que pontifica o Sr. Antônio Carlos, até a cadeira de engraxate instalada na barbearia. Neste ambiente […] circulam os representantes da nação brasileira, com uma gentileza recíproca sem igual. Realmente, a cortesia é a nota característica de nossa Constituinte. […] Outro aspecto curioso é a diferenciação das atividades. Há os deputados de tribuna, e há os de corredor. Os primeiros são os líderes dos grandes torneios oratórios. Sua ação é essencialmente explosiva e detonante. São a artilharia pesada. Ao lado destes, há os de corredor. São os líderes do cochicho e da confabulação. Afetam um desdém condescendente para com os grandes debates oratórios, de que não sabem participar. O tipo intermediário mais característico é o do líder da maioria, Sr. Oswaldo Aranha [no centro da foto].
Ora S. Exa. conversa discretamente com algum colega, alheio ao discurso, mesmo quando está em causa na verrina do orador, ora intervém nas menores questões, aparteando com frases proferidas no tom em que Júpiter tonante desfechava seus raios. Dado o aparte, volta-se para os circunstantes, a procurar com os olhos um contendor, para continuar mais baixo a discussão entabulada. Retira-se depois do recinto, com a fisionomia satisfeita de si mesmo, distribuindo para a esquerda e para a direita sorrisos mágicos, que eletrizam e enchem de sol o semblante dos beneficiados. Com o olhar admirado e solícito, certos deputados ainda o acompanham de longe, com a vista. E, no seu porte dobradiço e na sua atitude reverente, há alguma coisa que diz aos profanos: Voilà le soleil (Eis o sol)”.
Do texto, destaco informação especialmente reveladora, o ambiente afável — discrição, cortesia e gentileza, como realçou o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. O que sobrou de tais tesouros no Brasil contemporâneo? Repito, o ar ali existente era reverberação de costumes generalizados em círculos familiares. Saber valorizá-los seria começo enérgico no rumo certo. O Brasil progrediria, com grande vantagem em especial para seus setores mais vulneráveis.
Solução? Antes de qualquer esboço a respeito, transcrevo opinião de Gilberto Amado [foto], que contém partes da solução: “É um axioma da ciência política verdadeiro em todos os regimes — no regime democrático como nos demais — que a sociedade deve ser dirigida pelos mais avisados (sages), pelos mais inteligentes, pelos mais capazes, pelos melhores, em uma palavra pela elite. […] O nosso papel aqui, ao estudarmos a marcha do sistema representativo, é procurar os meios normais, fixar as etapas sucessivas, desse esforço da grei humana na sua ascensão para o governo livre. É um axioma, como dissemos no começo, que todo sistema de governo […] só se pode realizar pela escolha dos mais capazes, dos mais inteligentes, dos mais instruídos. Essa escolha no sistema democrático está nas mãos do sufrágio universal.” Sem tal caminho, flui das palavras de Gilberto Amado, não caminhamos (ascendemos) para um governo livre. De outro modo, a degradação da representação política é marcha para a tirania e o retrocesso.
Enfim, a classe política de que dispõe o país quase só traz decepções amargas. Bastaria recordar uma das manifestações disparatadas e até meio delirantes da presidente Dilma Rousseff, um dos mais luzentes exemplares dela, esta em Nova York, diante de jornalistas pasmos: “Até agora, até agora, a energia hidroelétrica é a mais barata. Em termos do que ela dura, da sua manutenção e também pelo fato da água ser gratuita. I da genti podê istocá. Cê, o vento podia sê isso também, mais ocê num conseguiu ainda tecnologia pra istocá vento. Então se a contribuição dos outros países, vamos supô que seja, desenvolver uma tecnologia que seja capaz de na eólica istocá, ter uma forma docê istocá, porque o vento ele é diferente em horas do dia, então vamos supô que vente mais à noite, cumé queu faria pra istocá isso. Hoje nós usamos as linhas de transmissão, cê joga de lá pra cá, de lá pra lá, pra podê capturá isso, mais si tivé uma tecnologia desenvolvida nessa área, todos nós nos beneficiaremos, o mundo inteiro”.
De fato, poderíamos beneficiar a nós e ao mundo inteiro se pudéssemos ter um conjunto de homens públicos à altura da nobre missão de governar. O primeiro passo na direção correta, obrigação de cidadania ativa, é ter o problema claro. Outro ponto, recuperar a noção da importância dos ambientes domésticos (ou seja, da família). Só ali em geral se engendram fundamentos reais para a posterior formação de lideranças benfazejas ao bem comum — políticas, é certo, mas necessárias em todos os âmbitos da vida social. Sei que não é exposição da solução, não resolve a gravidade do quadro, mas, creio, traz à baila aspecto por vezes esquecido, que da solução está no eixo principal.
As boas comparações esclarecem; em particular se delas brotar a clareza, nutriente para esperanças fundadas na realidade e não em utopismos desviantes ou romantismos paralisantes.