É obra de caridade denunciar o escândalo e procurar afastá-lo

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São Bernardo de Claraval (1090–1153) foi o fundador da Abadia de Claraval, na Diocese de Langres (França). A fogosa carta abaixo foi enviada por ele a toda a Cúria Romana de seu tempo, increpando-a por dar apoio a autoridade eclesiástica indigna e sacrílega. O que escreveria ele em nossos dias, diante da grave crise que assola a Santa Igreja? Não usaria veemência ainda maior contra os eclesiásticos que ensinam e agem em aberta oposição ao ensinamento tradicional dela? Examine atentamente o documento, caro leitor, e escreva-nos emitindo a sua opinião.

A meus reverendos Padres, aos senhores Bispos e Cardeais da Cúria Romana, o Irmão Bernardo, Abade de Claraval, saudações e orações

Imagem de São Bernardo na sua casa natal, em Fontaine-lès-Dijon (Foto: Frederico Viotti)

Todos nós temos o direito de escrever sobre os negócios que dizem respeito a todos, de modo que não receio incorrer em censura por presunção ou excessiva ousadia ao fazê-lo, como agora faço. Pois, embora seja o mais miserável de todos os fiéis, não deixo de ter muito presente no coração a honra da Cúria Romana. O pesar me consome, e de tal maneira me aflige a tristeza, que até a vida me pesa, porque vi a abominação na Casa de Deus. Sinto-me sem poder suficiente para remediar a tantos e tantos males, e não me resta outro recurso senão apontá-los aos que têm poder para tal, a fim de que os corrijam. Se o fizerdes, tanto melhor. Caso contrário, terei descarregado a minha consciência, e vós não podereis ter nenhuma escusa justa.

 

Não ignorais que o Papa Inocêncio II, de gloriosa e feliz memória, havia proferido sentença, de comum acordo convosco e com toda a Cúria Romana, dispondo que se tivesse por ilícita a eleição de Guilherme [para Arcebispo de York]; e que esta fosse considerada como sacrí­lega e real intrusão, caso o outro Guilherme, Deão da Igreja [de York], não declarasse sob juramento que seu homônimo era inocente de tudo quanto lhe imputavam. Também sabeis que esta disposição tinha muito mais de indulgência que de rigor. Guilherme mesmo, o acusado, havia rogado que lhe fosse concedida essa graça.

Prouvera a Deus se cumprisse o que havia sido disposto por mútuo acordo! Oxalá tudo quanto se fez contra isso fosse declarado nulo! O que aconteceu? O Deão não jurou, de modo algum, e apesar disto o outro se sentou na cátedra da pestilência. Quem nos dera ver outro Fineias (Números 25, 7) se levantar e investir de espada na mão contra esse fornicador!

Quem nos dera poder ver, vivo em sua cátedra, o próprio São Pedro exterminando os ímpios com uma palavra de sua boca! Muitos são os que vos clamam do fundo da alma, e vos pedem de todo o coração o castigo exemplar de tamanho sacrilégio.

Se não intervierdes prontamente, de modo a incutir medo aos demais e impedi-los de seguir tão nefando exemplo, eu vos afianço que, quanto mais tardar o remédio, mais grave será o escândalo de todos os fiéis. Receio que a própria Sé Apostólica perca grande parte de seu prestígio e se desautorize, caso não faça pesar sua mão sobre esse rebelde que calcou aos pés os seus decretos.

Mas que direi das cartas secretas e verdadeiramente tenebrosas que Guilherme se jacta de ter recebido, não do príncipe das trevas — oxalá assim o fosse —, mas dos próprios Príncipes Sucessores dos Apóstolos? Por isso, tão logo esta notícia chegou aos ouvidos dos ímpios, estes se puseram a fazer chacota das disposições da Sé Apostólica e a rir da Cúria Romana, a qual, após ter dado uma sentença pública, contradizia-se a si mesma, enviando às ocultas cartas que mandavam o contrário.

Que mais acrescentarei? Depois de tudo isso, se não perturba os fortes e perfeitos a visão do escândalo gravíssimo que é dado, eu a confio aos débeis e simples; se não sentis compaixão alguma pelos pobres Abades que foram chamados a Roma dos lugares mais longínquos da Terra; se não vos comove a ruína de tantas Casas religiosas que inevitavelmente perecerão sob a jurisdição desse opressor; e finalmente — para terminar por onde deveria ter começado — se não vos sentis animados sequer pelo zelo da glória de Deus, sereis indiferentes à vossa própria desonra, derivada direta­mente da vergonha que cairá sobre toda a Igreja?

Terá a malícia desse homem tanto poder que consiga impor-se a vós? Dir-me-eis talvez: o que faremos, se ele já recebeu a sagração, ainda que de modo sacrílego? A isto respondo que tenho por mais glorioso derrubar Simão Mago do alto do espaço do que impedir-lhe o voo. Por outro lado, em que situação vós deixareis todos os religiosos que creem não dever receber, em consciência, nenhum Sacramento de mãos tão manchadas de lepra? Inclino-me a crer que todos eles preferirão o desterro a entregar-se à morte; preferirão vida errante fora da pátria a permanecer nesta, tendo que comer os ali­mentos oferecidos aos ídolos.

Sendo assim, se a Cúria Romana vos forçar a ir contra a consciência e a dobrar os joelhos diante de Baal, que o Deus justo peça contas disso; quanto a mim, cito-vos ao juízo d’Ele perante aquela outra Cúria Celestial, que nenhum suborno pode corromper.

Para terminar, este vosso servo vos suplica, pelas entranhas misericordiosíssimas do Senhor, que se ainda arde em vossas almas algum zelo pela glória divina, tomeis em consideração os males que afligem a Santa Igreja. Ao menos de vós, que sois seus amigos, espero que ponhais todo o vosso empenho em impedir que se confirme coisa tão detestável e digna de execração.

(Obras Completas del Doctor Melifluo, San Bernardo, Abad de Claraval, trad. do Pe. Jaime Pons, S.J. — Ed. Rafael Casulleras, Barcelona, 1929 — vol. V, Epistolario, pp. 488-490, carta 236.)

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