Ensinar a enxergar é o maior presente do educador

0

Vou falar de assunto que nunca sai de moda. Meio distraído, tardava o olhar pela “Oração aos Moços” de Ruy Barbosa (já a conhecia, pincei-a lá pelos 15 anos na biblioteca de um tio desembargador), quando tomei um susto. Fixei a vista: “Os que madrugam no ler convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

Li de novo, devagar. Belas palavras, mas tomei outro susto. O famoso brasileiro, já então septuagenário, no texto, aconselhava a seus paraninfados, os moços da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo São Francisco a levantar cedo (tudo bem) e a batalhar na aquisição do conhecimento. Como? Primeiro passo: ler, ler, ler. Chama a isso ocupação vulgar, no sentido de comum, corriqueira, menos importante. Ótima coisa. Muitos leem. Segundo passo, e agora o principal, refletir. Seria coisa rara e essencial para a boa formação, pensar sobre o que se leu. Pela transmutação, fazer do conhecimento ingerido, inerme, ativa ciência própria. Anima os paraninfados à peleja extra, a ruminação que os levaria a aproveitar bem o esforço da leitura. Aí chegaríamos ao homem sabedor, a pessoa que passa além do mero erudito, qualificado pelo douto jurisconsulto de “armário de sabedoria armazenada”. Não mais estante, peça inanimada, que empilha conhecimentos, o sabedor, espírito vivo, atinge o patamar de “transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

O método bosquejado por Ruy Barbosa funciona na prática? Se funcionar, é suficiente para uma boa formação, fazer uma pessoa culta? No frigir dos ovos, soou-me um tanto cerebrino, descolado da realidade. Vou meter minha colher de pau.

Tudo se resume, afinal de contas, a conhecer, melhorando, a entender a realidade. O capiau a conhece e entende a seu modo sem nunca ter lido um livro. Dou de barato, é insuficiente, lamento, mas muitas vezes não percebemos em seus comentários mais senso do real que em observações eruditas de homens de gabinete? O frescor de suas expressões não reflete em várias de suas facetas percepção mais exata da realidade? Tal olhar tem valor inestimável.

Enfileiro a seguir, como pipocam na cabeça, alguns provérbios populares. Cada macaco no seu galho. Apressado come cru e quente. Antes só que mal acompanhado. Casa de ferreiro, espeto de pau. Escreveu, não leu, o pau comeu. A cavalo dado não se olham os dentes. Em terra de cego quem tem olho é rei. Deus escreve certo por linhas tortas. Cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça. Seguro morreu de velho e o desconfiado ainda vive. Para baixo, todo santo ajuda. Um dia é da caça, outro do caçador.

Poderia continuar sem fim. Foram necessários livros para burilar tais ditos? Não. Bastou explicitar, sintética e graciosamente, o que a vida ia ensinando. E é só um aspecto da cultura popular. O livro, porém, precisa deles, sob pena de, muitas vezes, ser digressão de nefelibatas. Adiante. O problema (talvez o maior) da cultura não tem sido sempre a erudição cortada da realidade? E sem o hábito de decifrar a realidade miúda terão vida reflexões sobre livros lidos? Ou serão folhas secas?

Amplio. Onde colocar no método do celebrado tribuno baiano a enorme contribuição de conhecimento que nos invade pelos cinco sentidos — visão, olfato, paladar, audição, tato — aprendizado direto do que sem cessar acontece ao redor nosso? E então, sem preguiça e de forma proveitosa unir as impressões que nos entram pelos sentidos, explicitá-las com critério, e incluir tal conhecimento em nosso acervo?

Tenho escutado muita gente que lê e reflete sobre o que lê. Mas tem preguiça em ver, cheirar, tocar. Observa pouco, não tira suco do convívio e da contemplação da natureza. Dispara comentários desfocados. Faltam ali conversas com mãe, tias, primos, o bate-papo com pessoas de todas as idades e condições sociais, a observação da natureza em sua vida miúda. A boa formação e a alta cultura precisam ter raízes na terra úmida. Não são plantas de estufa. Ensinar a enxergar é o maior presente do educador. E educadores estão em todos os ambientes. Ruminemos, sem dúvida, um olho nos livros, outro na realidade. Esse problema mexe com todo mundo, queiramos nós ou não, de sua solução depende o destino de cada um e da sociedade, nunca sai de moda.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui