Durante uma indesejável insônia, meu travesseiro se dispôs a lembrar-me coisas que li, vivi ou aprendi. Dialogamos um pouco sem rumo definido, até que se abriu uma pista proveitosa. Nela me espreitava um transeunte de cara pouco adequada para fazer-me conciliar o sono. Tal era sua feiura, que ele mesmo a reconhecia e ironizava, como na réplica à cliente que o acusara de falso, “homem de duas caras”:
— Se eu tivesse duas caras, a senhora acha que andaria por aí com esta?
Estamos falando de Lincoln, presidente americano durante a Guerra de Secessão, assassinado pouco depois do seu final. Houve imensas perdas na guerra, mas ele a conduziu com êxito e deixou como herança a unidade do país.
Conversava-se numa roda sobre antepassados ilustres, e um dos presentes quis deixar Lincoln em má situação. Todos o sabiam filho de lenhador, e um adversário político indagou sobre a profissão do avô. Recebeu resposta à altura:
— Não me preocupa o trabalho do meu avô, e sim o que faz o neto dele.
Talvez haja aí uma imprecisão do meu travesseiro, que não tinha certeza se a preocupação do presidente era com ele mesmo, como narrei, ou se era com seus netos futuros. Em ambas as hipóteses, o que está em foco é o patrimônio hereditário.
O assunto da ascendência, e portanto da herança, retorna em outro episódio da vida de Lincoln. Um herdeiro da mais alta nobreza, ao se apresentar como voluntário para a guerra, achou que se valorizaria mencionando os nomes dos seus ancestrais famosos. Concluída a exibição, a inveja republicana do presidente falou mais alto:
— Não se preocupe. Isso não será obstáculo à sua carreira no exército.
Entre os muitos personagens históricos que construíram ou conquistaram impérios, talvez sejam maioria os que não conseguiram educar ou motivar a própria família adequadamente, e a consequência inevitável foi a derrocada, ou então a entrega do império a outras mãos. Em muitíssimos outros casos formaram-se valorosas dinastias, garantindo ao longo do tempo a honra da família, a coesão hereditária, o progresso e bem estar da população daquele território.
Nas dinastias europeias, exemplos memoráveis comprovam ambas as situações. Acredito que estudos meticulosos tenham avaliado os fatores que conduzem ao progresso e à decadência dessas dinastias. Se ainda não foram feitos, seria muito útil alguém os fazer. Um dos pontos a abordar é a comparação entre os impérios erguidos pela nobreza com outros de caráter estritamente financeiro. Ambos se mantêm com base em patrimônios econômico-financeiros, mas a principal diferença é a atividade política e social, específica da nobreza. Bons princípios e boas práticas governativas, na herança que a nobreza se esmera em transmitir à descendência, são muito mais decisivos que uma montanha de dinheiro, a qual não é seu principal objetivo.
Uma atividade importante das dinastias nobres era detectar entre os seus servidores ou súditos os bem dotados em vários ramos de atividade, e também moralmente, em seguida distingui-los e prestigiá-los por vários meios. Meu travesseiro só me apresentou três exemplos, que vou narrar como ele me contou.
Um sapateiro da corte conseguiu produzir para um rei francês do século XVIII um par de botas inteiriças, sem nenhuma costura. Não indaguei como ele o conseguiu, mas acho que na sola haveria algum tipo de costura ou cola, porém este é um detalhe sem importância. Nenhum rei ou nobre daquele tempo deixaria esse feito sem uma recompensa para estimular o sapateiro, e assim indicar a todos os artesãos a necessidade ou conveniência de desenvolver objetos de alta qualidade.
Em muitos casos a recompensa era um título de nobreza, como o de Luís XIV para Le Notre, genial jardineiro de Versalhes. Consta que ele já esperava e ansiava por isso, tinha até um brasão onde sobressaíam os seus instrumentos de trabalho.
Em pelo menos um caso o título de nobreza foi recusado. A família Pinon descendia comprovadamente de lenhadores desde a época de Carlos Magno, e prosseguia no ramo quando Luís XIV decidiu nobilitá-la. O emissário do rei para ofertar o título de nobreza ao chefe dessa família recebeu a seguinte resposta:
— Diga ao nosso bom rei que agradeço, mas prefiro permanecer o primeiro lenhador da França, em vez de tornar-me o último dos seus barões.
Títulos assim são patrimônios hereditários sem valor comercial, mas valem mais que qualquer montanha de dinheiro, pela honra que trazem aos que prezam a honra.
O despertador tocou, encerrando a conversa com meu loquaz travesseiro. Não sem antes ele me lembrar, como sempre, a grande herança de meu pai, um conselho para toda a vida: Ser hoje melhor do que ontem, e amanhã melhor do que hoje.
E a crônica de hoje estava pronta, só precisei transcrevê-la para o papel.
É a pior coisa , para uma pessoa, é pretender ser o que ela não é.
Por mais que o título dado por Luis XIV, fosse legítimo, e o era de fato, pois era dado pelo próprio Rei, o lenhador queria ser ele mesmo. sem se sentir deslocado entre os seus.
É o Princípio de Identidade – sou o que sou – e ponto final.
Aliás, foi bem por isso que Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu e morreu na Cruz; no interrogatório Caifás interpelou-O: “És Tu o rei dos Judeus, o Esperado das Nações ? Resposta de Nosso Senhor: “Tu o dizes – EU O SOU”. causa direta Sua condenação à morte.
Daí a placa que se colocou no alto da Cruz – que o Sinédrio quis retirar – “JESUS NAZARENO REI DOS JUDEUS”.