Honório I: o caso controverso de um Papa herético

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Corrispondenza Romana, 30-12-2015

O caso do Papa Honório é um dos mais controversos da História da Igreja, como observa com justeza Emile Amann, historiador da Igreja, no amplo estudo que dedica à Question d’Honorius no Dictionnaire de Théologie Catholique (vol. VII, coll, 96-132).

No centro do pontificado do Papa Honório, que reinou de 625 a 638, havia a questão do monotelismo, a última das grandes heresias cristológicas. Para agradar o imperador bizantino Heráclio, desejoso de garantir a paz religiosa dentro do seu reinado, o Patriarca de Constantinopla Sérgio procurou encontrar um compromisso entre a ortodoxia católica, segundo a qual em Jesus Cristo há duas naturezas em uma só pessoa, e a heresia monofisita, que atribuía a Cristo uma só pessoa e uma só natureza. O resultado do compromisso foi uma nova heresia, o monotelismo, segundo o qual a dupla natureza de Cristo era movida em suas ações por uma só operação e uma só vontade. Tratava-se de um semi-monofisismo, mas a verdade ou é íntegra ou não é verdade, e uma heresia moderada permanece sempre uma heresia. Sofrônio, Patriarca de Jerusalém, estava entre os que intervieram com mais força para denunciar a nova doutrina, que anulava a humanidade de Cristo e conduzia ao monofisismo, condenado pelo Concílio de Calcedônia (451).

 Sérgio escreveu ao Papa Honório para pedir que “no futuro a ninguém seja permitido afirmar duas operações em Cristo nosso Deus” e obter seu apoio contra Sofrônio. Honório infelizmente aderiu ao pedido. Em uma carta a Sérgio, afirmou que “a vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo era apenas uma (unam voluntatem fatemur), pelo fato de que nossa natureza humana foi assumida pela divindade”, e convidou Sofrônio ao silêncio. A correspondência entre Sérgio e Honório é preservada nos registros do VI Concílio Ecumênico (Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima Collectio, vol. XI, coll. 529-554) e foi republicada em latim, grego e francês por Arthur Loth (La cause d’Honorius. Documents originaux avec traduction, notes et conclusion, Victor Palmé, Paris, 1870), bem como em grego e alemão, Georg Kreuzer, Die Honoriusfrage im Mittelalter und in der Neuzeit, Anton Hiersemann, Stuttgart 1975).

Com o apoio do Papa, Heráclio publicou em 638 um formulário de doutrina chamado Echtesis (“Exposição”), pelo qual impunha a nova teoria de uma só vontade divina de Jesus Cristo como religião oficial. O monotelismo triunfou durante quarenta anos no Império bizantino. Nessa época,  o  mais vigoroso defensor da fé foi o monge Máximo, dito o Confessor, que participou de um Sínodo convocado em Latrão (649) pelo Papa Martinho I para condenar o  monotelismo. Tanto o Papa quanto Máximo foram forçados ao exílio. A Máximo, por se recusar a subscrever as doutrinas monotelitas, foram cortadas a língua e a mão direita. Sofrônio,  Máximo e Martinho  são hoje venerados pela Igreja como santos por sua indômita resistência à heresia monotelita.

A fé católica foi finalmente restaurada pelo III Concílio de Constantinopla, o VI Concílio Ecumênico da Igreja, que se reuniu em 7 de novembro de 680 na presença do Imperador Constantino IV e dos representantes do novo Papa, Santo Agatão. O Concílio condenou o monotelismo e lançou o anátema contra todos aqueles que tinham promovido ou favorecido a heresia, incluindo o Papa Honório na condenação.

Na XIII sessão, realizada em 28 de março de 681, os Padres conciliares, após proclamar seu desejo de excomungar Sérgio, Ciro de Alexandria, Pirro, Paulo e Pedro, todos Patriarcas de Constantinopla, bem como o bispo Teodoro de Faran, afirmavam: “Com eles desejamos banir da Santa Igreja de Deus e de anatematizar também Honório, outrora Papa da antiga Roma, porque encontramos em sua carta a Sérgio que ele seguiu em tudo a sua opinião e ratificou seus ensinamentos ímpios” (Mansi, col. 556).

Em 9 de agosto de 681, no final da XVI sessão, foram renovados os anátemas contra todos os hereges e fautores da heresia, inclusive Honório: “Sergio haeretico anathema, Cyro haeretico anathema, Honorio haeretico anathema, Pyrro haeretico anathema” (Mansi, XI , 622). No decreto dogmático da XVIII sessão, em 16 de setembro, se diz que, “porquanto [o demônio] não permaneceu inativo, ele que desde o início foi o inventor da malícia, e que se servindo da serpente introduziu a morte venenosa na natureza humana, assim também agora encontrou os instrumentos adequados à sua vontade: aludimos a Teodoro, que foi bispo de Faran; a Sérgio, Pirro, Paulo, Pedro, que foram bispos dessa cidade imperial; e também a Honório, que foi Papa da antiga Roma; (…) [Satanás] encontrou, portanto, os instrumentos adequados, não cessou, através destes, de suscitar no corpo da Igreja os escândalos do erro; e com expressões jamais  ouvidas, disseminou entre o povo fiel a heresia de uma única vontade e uma só operação em duas naturezas de uma [das Pessoas] da Santíssima Trindade, ou seja, de Cristo, nosso verdadeiro Deus, e isso em harmonia com a louca doutrina falsa dos ímpios Apolinário, Severo e Temístio” (Mansi, XI, coll. 636-637).

As cópias autênticas dos atos do Concílio, subscritas por 174 Padres e pelo Imperador, foram enviadas às cinco sede patriarcais, em particular à de Roma. Com a morte de Santo Agatão em 10 de janeiro 681, os atos do Concílio, após mais de 19 meses de sede vacante, foram ratificados por seu sucessor, Leão II. Na carta enviada em 7 de maio 683 ao Imperador Constantino IV, o Papa escrevia: “Anatematizamos os inventores do novo erro, ou seja, Teodoro de Faran, Ciro de Alexandria, Sérgio, Pirro, Paulo e Pedro da Igreja de Constantinopla, e também Honório, que não se esforçou para manter pura esta Igreja Apostólica na doutrina da tradição apostólica, mas permitiu,  com  uma execrável traição, que esta Igreja sem mácula fosse manchada” (Mansi, XI, 733). Nesse mesmo ano, o Papa Leão ordenou que as atas, traduzidas para o latim, fossem assinadas por todos os bispos do Ocidente, e as assinaturas conservadas junto ao túmulo de São Pedro. Como enfatiza o eminente historiador jesuíta Hartmann Grisar, “se queria assim obter a aceitação universal do sexto Concílio do Ocidente, e isso, pelo que se conhece, ocorreu sem dificuldade” (Analecta romana, Desclée, Roma 1899, pp. 406 -407).

A condenação de Honório foi confirmada pelos sucessores de Leão II, como atesta o  Liber diurnus romanorum pontificum e pelos sétimo (787) e oitavo (869-870) Concílios Ecumênicos da Igreja (C. J. Hefele, Histoire des Conciles, Letouzey et Ané, Paris 1909, vol. III, pp. 520-521).

O padre Amann julga historicamente indefensável a posição daqueles que, como o cardeal Barônio, crêem que os atos do sexto Concílio tenham sido alterados. Os legados pontifícios estavam presentes no Concílio e seria difícil imaginar que eles pudessem ter-se deixado ludibriar ou tivessem produzido um relatório falso sobre um ponto tão importante e delicado como a condenação, por herético, de um Pontífice romano. Referindo-se em seguida a teólogos como São Roberto Belarmino, que para salvar a memória de Honório negaram a presença de erros explícitos em suas cartas, Amann salienta que eles levantam um problema maior do que aquele que pretendem resolver, isto é,  o da infalibilidade dos atos de um Concílio presidido por um Papa. Se de fato  Honório não caiu em erro, então erraram os Papas e o Concílio  que o condenaram. Os atos do VI Concílio Ecumênico, aprovados pelo Papa e acolhidos pacificamente pela Igreja universal, têm um força magisterial muito maior do que as cartas de Honório a Sérgio. Para resguardar a infalibilidade, é melhor admitir a possibilidade histórica de um Papa herege do que afrontar as definições dogmáticas e os anátemas de um Concílio ratificado pelo Romano Pontífice. É doutrina comum que a condenação dos escritos de um autor é infalível quando o erro é anatematizado com a nota de heresia, enquanto não é sempre e necessariamente infalível o Magistério ordinário da Igreja [como o exercido pelo Papa Honório em suas cartas].

Durante o Concílio Vaticano I, a Deputação da Fé enfrentou o problema, expondo uma série de regras de caráter geral, que se aplicam não só ao caso de Honório, mas a todas as dificuldades passadas ou que possam surgir no futuro. Não basta que o Papa se pronuncie sobre uma questão de fé ou de costumes dirigindo-se à Igreja universal; é necessário que o decreto do Romano Pontífice seja redigido de modo tal, que fique claro tratar-se de um julgamento solene e definitivo, com a intenção de obrigar todos os fiéis a crer (Mansi, vol. LII, et al., 1204-1232). Há, portanto, atos do Magistério pontifício ordinário não infalíveis, porque privados do necessário caráter definitório, quod ad formam seu modum attinet.

As cartas do Papa Honório são desprovidas dessas características. Elas são, sem dúvida, atos do Magistério, mas no Magistério ordinário não infalível pode haver erros e até mesmo, em casos excepcionais, formulações heréticas. O Papa pode cair em heresia, mas não poderá jamais pronunciar uma heresia ex cathedra. No caso de Honório, como observava o patrólogo beneditino Dom John Chapman OSB, não se pode afirmar que ele tenha tido a intenção de fazer um julgamento ex cathedra definitivo e vinculante: “Honório era falível, estava errado, era um herege, precisamente porque não definiu com plena autoridade, como deveria, a tradição petrina da Igreja de Roma” (The Condemnation of Pope Honorius [1907] Reprint. Livros Esquecidos, Londres, 2013, p. 110). Suas cartas a Sérgio, embora tratando de fé, não promulgaram qualquer anátema e não cumpriram os requisitos exigidos pelo dogma da infalibilidade, promulgado pelo Concílio Vaticano I. O princípio da infalibilidade ficou salvo, ao contrário do que pensavam protestantes e galicanos. E se Honório foi anatematizado, explicou o Papa Adriano II no Sínodo romano de 869, “a razão é que Honório tinha sido acusado de heresia, a única causa pela qual é permitido aos inferiores resistir a seus superiores e rejeitar seus sentimentos perversos” (Mansi, XVI, 126). Também se baseando nessas palavras, após analisar o caso do Papa Honório, o grande teólogo dominicano Melchior Cano resumiu o ensino mais seguro nesses termos: “Não se deve negar que o Sumo Pontífice possa ser herege, coisa sobre a qual se pode oferecer um ou dois exemplos. Mas não se pode demonstrar um caso sequer em que [o Papa], ao julgar sobre a fé, tenha definido [ex cathedra] qualquer coisa contra a fé” (De Locis Theologicis, l. VI, tr. espanhola, BAC, Madrid 2006, p. 409).

(Tradução: Helio Viana)

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