Estamos fornecendo a nossos leitores subsídios históricos, doutrinários para melhor compreendermos o alcance do Dogma da Imaculada Conceição promulgado pelo Papa Beato Pio IX. Hoje veremos o Papa Pio XII, cem anos após a proclamação do Dogma, com a Encíclica Ad Caeli Reginam, reafirmar a devoção mariana.
O artigo foi publicado em Catolicismo, 1954, pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.
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Publicando a Encíclica “Ad Caeli Reginam” (de 11 de outubro de 1954) – cujas partes essenciais vão traduzidas em outro local desta edição – teve o Santo Padre Pio XII a intenção de extremar com um ato da mais alta importância as manifestações de piedade mariana com que edificou a Cristandade no correr do Ano Jubilar da Imaculada Conceição. Disse-o ele em expressos termos: “como que coroando todos estes testemunhos de Nossa piedade mariana… para concluir felizmente o Ano Mariano que chega a seu termo,… resolvemos estabelecer a festa da Bem-Aventurada Virgem Maria, Rainha“. Da importância deste ato, fala-nos o mesmo Pontífice quando declara que “esse gesto traz consigo a grande esperança de que possa surgir uma nova era, alegrada pela paz cristã e pelo triunfo da Religião“. Tal esperança, di-lo ainda o Pontífice, tem razões muito sérias e profundas: “adquirimos a convicção, depois de maduras e ponderadas reflexões, de que advirão grandes vantagens para a Igreja” se a realeza de Maria, “solidamente demonstrada, resplandecer mais evidente aos olhos de todos, como luz mais radiosa posta no candelabro“.
Bem entendido, esta graça, que se dirige ao coração do homem, deve reformar a sua alma. No “culto e imitação de tão grande Rainha os cristãos se sentirão por fim verdadeiramente irmãos, e, sobranceiros à inveja e aos imoderados desejos de riqueza, promoverão o amor social, respeitarão os direitos dos pobres, e amarão a paz“. Não se trata de promover um movimento marial puramente externo e formal, mas de pedir às almas uma cooperação séria e eficaz com as graças que receberão de sua Mãe. “Ninguém, pois, se tenha por filho de Maria, digno de ser acolhido sob sua poderosíssima tutela, se não seguir o seu exemplo mostrando-se lhano, justo e casto, não lesando ou prejudicando, mas ajudando e confortando“.
Estas palavras do Pontífice merecem a mais detida meditação. De um lado, fala ele contra a inveja: alusão evidente à atitude de massas inteiras de homens que, amargurados às vezes por injustas provações, e principalmente envenenados pelos princípios demagógicos da Revolução Francesa e do comunismo, odeiam os ricos só porque lhes invejam os bens, e desejam destruir toda a hierarquia social.
O Santo Padre fala também do desejo imoderado de riquezas. É um mal que atormenta todos ou quase todos os países da terra. Potentados da indústria ou do comércio, acumulando em suas mãos fortunas imensas, perto das quais os patrimônios das aristocracias de outrora eram quase insignificantes, transformaram a economia num reino fechado, em que dispõem a seu arbítrio da alta e da baixa dos preços, da circulação e do emprego das riquezas. Ora oprimem o Estado, ora são opressos por este quando sobe a onda da demagogia. E assim a sociedade se vê cada vez mais apertada entre as duas formas mais ou menos veladas de ditadura: a da oligarquia financeira e a da massa. Daí só pode decorrer o estrangulamento das elites sociais e intelectuais verdadeiras, a opressão do trabalhador pacífico e consciencioso, a dizimação da pequena e média burguesia. Miserável fenômeno de luta de classes, em que a sociedade, no que tem de mais inautêntico e pior – camarilhas de sanguessugas da economia ou de demagogos vulgares – devora o que tem, em todos os níveis, de mais autêntico e de melhor. Quanto isto seja oposto ao “amor social” de que nos fala o Pontífice, quem o poderia não ver? Para proteger a sociedade contra este reino do pior sobre o melhor, o Pontífice proclama no mundo a realeza de Maria.
Obra ingente por certo, esta de uma reforma social. Tanto mais quanto Pio XII a situa essencialmente em termos de reforma moral. Mas Maria Santíssima tem um imenso poder sobre a alma humana, e dela se devem aproximar os homens, não só para “pedir socorro nas adversidades, luz nas trevas, conforto nas dores e no pranto“, mas ainda para implorar a graça “que vale mais do que todas“, de “se esforçarem por se libertarem da escravidão do pecado“.
A proclamação da soberania de Maria na Encíclica “Ad Caeli Reginam”, a instituição de sua festa anual no dia 31 de maio, a coroação da imagem de Nossa Senhora “Salus Populi Romani” pelo próprio Pontífice, tudo isto pode, pois, e deve servir de ponto de partida para uma nova era histórica: a era da realeza de Maria.
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Com a prudência característica da Santa Igreja, a Encíclica “Ad Caeli Reginam” fundamenta a dignidade real de Maria tão somente em argumentos de caráter teológico. Não seria supérfluo, entretanto, lembrar que este grande dia da proclamação da Realeza Universal de Maria, e a esperança de uma era de triunfos e de glória para a Religião, vem sendo de há séculos objeto dos anelos de almas das mais piedosas.
Um dos fatos mais importantes da História da Igreja desde o protestantismo foi por certo a difusão da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Se bem que essa devoção não fosse desconhecida a Santos anteriormente existentes, sua propagação teve como ponto de partida as revelações recebidas por Santa Margarida Maria Alacoque, em Paray-le-Monial, no século XVII, e acentuou-se por todas as gerações seguintes, até chegar ao seu apogeu no início deste século.
Ao lado da difusão desta devoção outra grande corrente de piedade que também teve seu início na França foi a da escravidão a Nossa Senhora, de que foi doutor máximo São Luís Maria Grignion de Montfort (séc. XVII), com seu “Tratado da Verdadeira Devoção“. O Ponto de junção – se assim se pode dizer de coisas substancialmente juntas – destes dois grandes caudais de graças foi a devoção ao Coração Imaculado de Maria, de que foi doutor e pregador máximo um grande Santo espanhol, Antônio Maria Claret, que fundou no século passado a Congregação dos Missionários Filhos do Coração Imaculado de Maria.
Ora, os Santos que mais se assinalaram em ensinar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus têm os seus escritos como que túmidos de esperanças na vitória da realeza de Jesus Cristo, em seguida aos dias tormentosos em que vivemos, e rezar por essa vitória tem sido um dos objetivos mais essenciais do Apostolado da Oração no mundo inteiro. De outro lado, os escritos de São Luis Grignion de Montfort estão cheios de clarões proféticos (empregamos esta palavra com as precauções da boa linguagem católica) sobre a realeza de Maria Santíssima, como término da era de catástrofes inaugurada com a Pseudo-Reforma protestante.
Realeza de Jesus Cristo e realeza de Maria Santíssima não são coisas diversas. A realeza de Maria não é senão um meio – ou antes o meio – para a efetivação da realeza de Jesus Cristo. O Coração de Jesus reina e triunfa no reinado e no triunfo do Coração de Maria. O reinado e o triunfo do Coração de Maria não consistem senão em fazer triunfar e reinar o Coração de Jesus. E assim estas duas grandes caudais de devoção nascidas pouco depois do protestantismo como que caminham para um mesmo termo, para a preparação de um mesmo fato: a realeza de Jesus e de Maria, numa era histórica nova.
Estas considerações não podem ser alheias ao que os Pastorinhos ouviram do Coração Imaculado de Maria, em Fátima. Nossa Senhora lhes pôs bem clara a alternativa entre uma era de fé e paz caso fossem atendidos os seus pedidos, e uma era de perseguições caso tal não se desse. Como condições para esta era de fé e de paz, Ela indicou principalmente a consagração do mundo ao seu Imaculado Coração, e a conversão dos costumes.
Vendo agora o Santo Padre Pio XII – que já consagrou a Rússia e o mundo ao Coração Imaculado – tornar obrigatória tal consagração anualmente na festa da realeza de Maria, quem pode fugir ao pensamento de que o Papa dá um importantíssimo início de realização ao que tantas almas piedosas vêm há tantos séculos esperando, e abre os portais da Era de Maria na História do mundo?
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Na Encíclica “Ad Diem Illum“, comemorativa do cinqüentenário da promulgação do dogma da Imaculada Conceição, lembrou São Pio X os frutos admiráveis que esse fato produziu: principalmente os milagres de Lourdes e a definição da infalibilidade papal. No presente centenário, terão os frutos minguado? Quis a Providência Divina que eles brotassem das mãos sagradas de Pio XII. Foram o dogma da Assunção e a proclamação da realeza de Maria. O que de mais rico, de mais fecundo, de mais belo?