Impeliu-nos a evolução, sacrossanta e incontenível

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Crianças de há cem anos atrás : num jardim aprazível, elas se entretêm, ao mesmo tempo inocentes, tranqüilas, vivazes e distendidas. Nada nelas exprime a precocidade exagerada dos pequenos infelizes que os pais vaidosos procuram intoxicar com um excesso de estudos, em oposição às legítimas exigências da idade. Entretanto, as fisionomias, inteligentes e expressivas, indicam o alvorecer robusto da capacidade de concentração e reflexão. Como convém à infância, a atmosfera em que estas crianças se encontram lhes sugere impressões amenas e distensivas: os trajes são claros e leves; como dissemos, o jardim é atraente; e todas as cores são delicadas e puras.

O autor do quadro é o excelente pintor alemão Hartmann. As crianças são os Príncipes filhos de El-Rei D. Miguel I de Portugal. O quadro pertence à galeria de S. A. R. o Senhor Dom Duarte Nuno, Duque de Bragança.

A cena exprime um dos traços característicos do que a sociedade européia do século XIX considerava o ideal da educação infantil. Pois esse ideal, enunciado em sua mais alta expressão nas classes em que uma longa tradição o havia requintado, era participado gradativamente pelas demais categorias sociais, que para ele tendiam na medida do razoável e do possível. Por isso, a mesma atmosfera educacional se podia notar, ‘mutatis mutandis’, nessas outras camadas, e a este título ela caracteriza a pedagogia tradicional, como a praticou o século XIX.

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Chegamos ao ano de 1965. Portanto, a dar crédito aos progressistas e evolucionistas, tudo não fez senão melhorar. E a educação também. Vejamos o que tal progresso apresenta de mais característico e audacioso nesse setor.

A esse respeito, a imprensa diária publicou em dezembro último um telegrama da “Reuters”, procedente de Chicago, no qual se lê: “Chicago, 18 ( “Reuters” ) – Segundo informou o gerente de vendas de uma das fábricas de brinquedos “horrorosos”, Kennet Blovk, as imitações de Frankensteins, Dráculas e outros “horrores conhecidos” elevarão a vinte milhões de dólares a venda desses brinquedos nesta estação. Os produtos estão sendo bem aceitos ( … ). Kennet afirmou que “os garotos gostam dos monstros”. Disse também que “se apela para o bizarro, pela mesma razão de os meninos gostarem do “Beatles”. Entre outros brinquedos “de horror”, inclui-se um “kit” de uma câmara de horrores e um tipo de guilhotina, com a lâmina controlada eletricamente”.

O leitor se terá surpreendido. Mas o telegrama desde logo nos indica uma utilidade – bem inesperada a nossos olhos – desses monstros: ajudarão a manter a paz no mundo, pois, “segundo algumas fontes industriais, poderão suplantar os modelos de canhões, metralhadoras, granadas de mão e foguetes, como presentes de Natal para os meninos”. O certo é que o fabrico destes “brinquedos” constitui negócio lucrativo. Segundo correspondência de Nova York da “Folha de São Paulo”, no Natal de 1963 se venderam nos EUA 10 milhões de dólares dessa mercadoria. No de 1964 deve-se ter chegado a 20 milhões de dólares.

Essa mesma correspondência nos descreve alguns destes monstros: “Não falta um Drácula que mata uma jovem loura ( ou morena ) chupando-lhe o sangue pelo pescoço; e da ferida sai mesmo um líquido vermelho. Há também o lobisomem de plástico, que pode ficar mais monstruosos ainda nas mãos de uma criança, porque a matéria é plasmável. Outro brinquedo é o Goldzilla, misto de homem e animal pré-histórico, pronto para destruir a humanidade com seu hálito radioativo. ( … ) Mas não é só. Há uma variedade de pijamas, malhas e calças para crianças, com monstros estampados, verdadeiramente aterrorizantes”.

O gosto do monstruoso não se afigura ser apenas das crianças. Certas mães, ao que parece, gostam que seus filhinhos sejam chamados de monstros. Daí o fato de que “uma fábrica de sabonetes pôs à venda um sabão em forma de monstro, lançando-o com o seguinte “slogan”: “O sabonete que espanta a sujeira”. O sabonete representa um réptil antediluviano, de cor verde, escamas, etc. É recomendado às mães com a seguinte “dedicatória”: “O seu pequeno monstro, ao simples contacto com o sabonete-monstro, ficará limpo como um anjo”.

A nós, pobres “reacionários” e “obscurantistas” que não dispomos, para a apreciação do assunto, senão do bom senso do homem da rua, nos parecerá desconcertante que se alegue em favor destes horrores, não só o contributo que prestariam à paz mundial, mas sua eficácia para tornar bem humoradas e pacíficas as crianças. O pediatra “yankee” Alfred Bronner está inteiramente persuadido dessas vantagens. Disse ele, sempre segundo a correspondência citada: “Os monstros são um meio salutar para descarregar a agressividade interna e os impulsos anti-sociais. Com a ajuda de um monstro de plástico, a criança pode libertar-se de muitas obsessões e tornar-se boa como um anjo”.

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Alguns leitores estarão surpresos e desconcertados. Não esperavam que a insânia que varre o mundo houvesse de produzir uma manifestação tão pontiaguda, tão característica, tão indisfarçavelmente louca.

Mas outras pessoas, já predispostas no íntimo de sua alma a não resistir a nada do que é moderno, depois de um momento de susto já terão começado a sorrir e a procurar justificativas para os brinquedos-monstros: divertem, e são tão absurdos que nem as crianças os tomam a sério.

Assim não pensam dois graves psiquiatras, o Dr. Martin Grottjahm, catedrático de Psiquiatria da Universidade da Califórnia, e o Dr. Spencer Lester, da Universidade de Colúmbia, que – informa a correspondência da “Folha de São Paulo” – se manifestaram radicalmente contra os monstros…

Pior que tudo seria que houvesse necessidade de psiquiatras para demonstrar que isto é monstruoso. Esses monstros, engendrados pelo ideal de educação de certos pedagogos modernos, exprimem a sede de monstruoso que se sente fermentar aqui e acolá, na arte dita moderna, como nos mais variados campos da vida contemporânea. Eles são no mundo dos brinquedos um fenômeno análogo ao que é o “play-boy” nos setores juvenis. No Drácula-brinquedo se exprime o mesmo espírito do jovem que brinca de ser monstro. É triste observar que este último tem em si uma raiz de monstruosidade, que é a condescendência, ou até a simpatia com o monstruoso. E à força de brincar ele acaba por ficar realmente um monstro.

A criança que brinca com monstros fica exposta a um gravíssimo risco de receber na alma aquela conaturalidade com o monstruoso, que dela fará no futuro um monstro.

Onde iremos parar, perguntará muito leitor. Quanto maior a altura, tanto maior a queda. Como caímos do alto ideal de harmonia e de equilíbrio pedagógico expresso no quadro de Hartmann, até este abismo? As perguntas têm toda razão de ser. Mas em rigor se lhes deveria acrescentar outra, não mais sobre o futuro que nos aguarda, mas sobre o presente em que estamos. Uma chaga é o produto do mau andamento de todo o organismo, e, mesmo quando o corpo não está todo chagado, denuncia que ele inteiro vai mal. É no organismo tão convulsionado e deformado da sociedade moderna que essa horrível chaga eclodiu… e então forçoso é perguntar aonde já chegamos!…

Que conseqüência desagradável para algum leitor progressista! Onde vai parar então a sacrossanta, a incontenível, a divina evolução? Como pode algo ser novo, sem representar progresso?

E como o progressismo é fértil em escapatórias, logo virá esta: tanta coisa se inventa sobre os EUA… tudo isto deve ser mentira!

Lamentamos dizer a esse leitor que os monstros que figuram nestas páginas foram diretamente reproduzidos de prospectos de propaganda de uma conhecida fábrica de brinquedos norte-americana.

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