Numa dessas trocas apressadas de informações, comuns entre vizinhos que só se conhecem dos múltiplos encontros casuais em elevador, eu disse à minha vizinha:
— A senhora é a terceira Lucinda que eu conheço.
— Ah é!? Com este nome, só conheci minha mãe. Posso saber quais outras o senhor conheceu?
— A primeira foi uma fazendeira já falecida, vizinha da fazenda do meu pai. A outra eu só conheci em livro. Era uma menina personagem de um soneto transcrito no Manual de Espanhol em que estudei.
Por coincidência, minha vizinha é viúva de um espanhol, e perguntou:
— E o senhor se lembra do soneto?
— Todinho. Só não me ofereço para declamá-lo agora, porque estou com horário marcado. Mas vou anotá-lo em papel, e depois lhe entrego.
A minha péssima memória tem façanhas como essa, de lembrar um soneto em espanhol que não releio há 58 anos. E consigo ainda hoje, nessa idade em que a memória de qualquer um já não ajuda, cantar todas as músicas que cantei quando era criança ou adolescente. Mas não me peçam para citar de memória nenhuma das 1.800 frases interessantes que colecionei ao longo da vida. Embora eu as tenha lido e relido várias vezes, lembro-me apenas do seu sentido geral.
Outro exemplo já me deixou em má situação, pois custo a lembrar-me da palavra gergelim (tive de procurá-la agora, para escrever), que só chegou ao meu conhecimento aos vinte e poucos anos. Durante uma conversa, quando eu precisava mencioná-la, tinha que recorrer à memória do interlocutor:
— … aquela espécie de alpiste que se usa sobre o pão.
E logo o interlocutor me fornecia essa palavra à qual minha memória é refratária. Para evitar esse constrangimento, elaborei uma triangulação mnemônica. Basta eu me lembrar de um professor prodigiosamente feio e fanhoso, que interrompeu sua primeira aula e nos brindou com esta pérola:
— Ô gente, mas eu sou feio, não sou?!
Lembrando-me do Prof. Ângelo, meu cérebro transforma em gergelim o Angelim – apelido carinhoso que lhe demos. Mas isso vem a propósito de quê? Ah, agora me lembro, nosso assunto é a memória.
Na moderna instituição mencionada aí no título, destaca-se um personagem onisciente: Google. Invejável memória, que deixou longe os terabytes (ou seria teratobytes?) e anda já pelos petabytes. Como não sentir-me humilhado e despeitado com os meus míseros kilobytes? A compensação para essa disparidade revoltante é que a memória dele está à minha disposição. Posso acessá-la a qualquer momento e obter tudo o que me interessa. Desde que minha escassa memória me ajude a encontrar o caminho, posso saber tudo (ou quase, para não exagerar) através do Google.
Não sei a que extremos de performance eu teria chegado, se na minha época de estudante já houvesse esse “secretário” infalível. Tão fácil! Basta digitar algumas palavras (bem, naquela época seria datilografar, hoje uma atividade ultrapassada), e obtenho tudo aos milhões, em fração de segundo. O progresso da infernet é enorme, colossal, inimaginável, e a vantagem indiscutível. Indiscutível? Vejamos:
1 – O que leio no computador, esqueço muito mais rapidamente do que se lesse no papel. Vários amigos confirmam ter notado o mesmo efeito psicológico. Talvez seja porque o texto em computador “apaga”, e o do papel permanece.
2 – A pletora de informações do computador não me induz a discutir, “ruminar” o assunto, e logo mudo para outro. A justificativa é mais ou menos esta: Se eu precisar dessa informação, ela está lá. Portanto, quem “sabe” é o computador, não eu. Mas o problema é que só posso raciocinar sobre qualquer assunto com os dados existentes na memória, não basta saber que estão ao meu alcance em algum outro lugar.
3 – Os anexos de mensagens que recebo têm dois tratamentos: se é bom, envio seletivamente para amigos (tão fácil!), depois guardo no arquivo; se não presta, como algumas piadas de submundo, vai para o lixo. Mas raramente fico sabendo o que pensa o outro, pois o assunto não foi discutido, colocado em comum. Se gostou, se sorriu, ninguém sabe, ninguém viu. Muito diferente da troca de ideias num contato pessoal.
4 – Muitos jornais estão fechando as portas (ou as páginas), e a causa mais incriminada é a expansão da infernet. Nada a lamentar nessa substituição de uma mídia por outra, mas uma enquete definiu que os leitores de jornal na infernet permanecem apenas um minuto por dia no site, em média. Só dá para ler os títulos das notícias, se tanto. Houve aproveitamento, interpretação, decisão? Não, o resultado foi superficialidade generalizada.
O que tem isso a ver com memória? Como já vimos, o raciocínio depende da memória. Ninguém pode raciocinar sobre informações que não estão disponíveis na memória, aí evidentemente incluídas as que estão sendo recebidas no momento. Mas a facilidade para encontrá-las quando se tornam necessárias dispensa-nos de mantê-las na memória. Será exagero afirmar que isso enfraquece a inteligência? Que reduz as aptidões do próprio ser humano? Que burrifica, em última análise?
Se o prezado leitor considera exageradas minhas conclusões, está em posição contrária à de levantamentos estatísticos recentes, bem fundamentados, comprovando que o homem atual é menos inteligente do que nos séculos passados. Provavelmente esta informação o surpreende, e não me estranharia sua suposição em sentido contrário, como a de quase todo mundo. Quanto disso se deve à infernet?
Esse tema é muito interessante
Em minha experiência, percebo que o texto digital, quando acompanhado de imagem, consegue ser recordado tão bem quanto um texto em livro tradicional.
Concordo com o autor e somente gostaria de comentar que o fechamento de muitos jornais se deve, na minha opinião, à péssima qualidade dos mesmos, muitas vezes trazendo propaganda ideológica no lugar de notícias. Não informam com isenção os acontecimentos para podermos formar opinião. O caderno de futebol é o pior de todos…
Prezado Sr. Jacinto Flecha
Poderia publicar o soneto da menina Lucinda. Grato Garcia de Sena
Este sítio não existiria que não houvesse internet!
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