A respeito da Exortação pós-sinodal Amoris laetitia, do Papa Francisco, tem-se aberto atualmente, sobretudo na Europa, uma ampla discussão, da qual o público brasileiro não está suficientemente informado.
Como contribuição a essa necessária informação, transcrevemos abaixo a posição tomada por um conhecido teólogo, o Pe. Claude Barthe, em entrevista que concedeu ao Prof. Roberto de Mattei, a qual vem tendo larga difusão.
A esse propósito recordamos as esclarecedoras palavras do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “qualquer enclausuramento da opinião nacional nos tabiques de uma informação dirigida, que lhe subtraia alguma parcela ponderável do que no Exterior ocorre, a mim se afigura como um atentado a um dos traços mais nobres do espírito brasileiro (…) Limito-me, na nota de hoje, a noticiar. Noticiar — repito — é atender a um direito do público. É cumprir um dever de jornalista. Atendo aqui a esse direito. E cumpro meu dever” (“O Direito de Saber”, in Folha de S. Paulo, 25/01/1970).
O padre Claude Barthe [foto abaixo] é teólogo e autor de obras como A missa, uma floresta de símbolos, Os literatos e o catolicismo, Pensar o ecumenismo de outro modo. Tendo sido um dos primeiros na França, no blog do semanário “L’Homme nouveau” em 8 de abril, a exprimir suas reservas em relação à recém-publicada Amoris lætitia, aproveitamos uma viagem àquele país para lhe fazer algumas perguntas.
Roberto de Mattei: Reverendo padre, é com especial interesse que desejo entrevistá-lo, porque em sua tomada de posição em relação à Amoris laetitia o senhor não tentou interpretar a carta apostólica a partir de uma chave de leitura tradicional — como o fizeram alguns num primeiro movimento. E eu compartilho sua leitura.
Padre Claude Barthe: Honestamente, não vejo como se poderia interpretar o capítulo VIII da Exortação no sentido da doutrina tradicional. Isto seria fazer violência ao texto e não respeitar a intenção dos redatores, que desejam claramente introduzir um elemento novo: “já não é possível dizer que…”.
RdM: Entretanto, o que diz a Exortação não é assim tão novo.
CB: Não é novidade do lado da contestação teológica, o senhor tem razão. Depois do Concílio, sob Paulo VI e João Paulo II, o grande trabalho dos teólogos contestatários foi principalmente o de atacar a Humanæ vitæ com livros, “declarações” de teólogos, congressos. Ao mesmo tempo, a comunhão aos divorciados “recasados” (e também aos parceiros homossexuais e aos concubinos) desempenhou um papel de reivindicação a meu ver simbólico. Com efeito, já há muito tempo, a prática de numerosíssimos sacerdotes, na França, na Alemanha, na Suíça e em muitos outros lugares, é de admitir sem problema os divorciados “recasados” à comunhão e de lhes dar a absolvição quando eles a pedem. O mais célebre apoio a essa reivindicação foi dado por uma carta dos três senhores bispos alemães das dioceses do Reno superior — Saier, Lehmann e Kasper — de 1º de julho de 1993, intitulada: “Divorciados-recasados, o respeito à decisão tomada em consciência”. Ela continha, aliás, bem exatamente as disposições da atual exortação: nenhuma admissão teórica e geral à comunhão, mas o exercício de um discernimento com um sacerdote, a fim de saber se os novos parceiros “julgam-se autorizados pelas suas consciências a se aproximarem da Mesa do Senhor”. Na França, alguns bispos (como os de Cambrai e Nancy) publicaram atas conclusivas de sínodos diocesanos no mesmo sentido. E o cardeal Martini, arcebispo de Milão, em um discurso que era um verdadeiro programa de pontificado, pronunciado em 7 de outubro de 1999, durante uma das assembleias gerais do Sínodo para a Europa, havia também invocado mudanças da disciplina sacramental.
De fato, na França, na Bélgica, no Canadá, nos Estados Unidos, as coisas vão ainda mais longe: um número relativamente grande de sacerdotes celebra uma pequena cerimônia por ocasião da segunda união sem que os bispos o impeçam. Alguns inclusive encorajam positivamente essa prática, como o havia feito Dom Armand le Bourgeois, bispo emérito de Autun, no livro [quando o escreveu já havia renunciado] Chrétiens divorcés remariés (Cristãos divorciados recasados, Desclée de Brouwer, 1990). Ordos diocesanos, como o da diocese de Auch, “enquadram” essa cerimônia, que deve ser discreta, sem o toque de sino, sem bênção dos anéis…
RdM: O senhor é da opinião de que o cardeal Kasper [foto ao lado] exerceu um papel-chave?
CB: No início, sim. Apresentado pelo Papa Francisco, pouco depois de sua eleição, como “um grande teólogo”, ele preparou o terreno mediante a exposição que fez no Consistório de 20 de fevereiro de 2014, a qual causou um enorme barulho. Mas, em seguida, a investida foi conduzida com um grande savoir-faire em três etapas. As duas assembleias sinodais, em outubro de 2014 e outubro de 2015, cujos relatórios finais integraram a “mensagem” kasperiana. E, entre as duas, a publicação de um texto legislativo, Mitis Iudex Dominus Jesus, de 8 de setembro de 2015, cujo arquiteto foi Dom Pinto, decano da Rota, simplificando o processo de declaração de nulidade matrimonial, especialmente graças ao processo expeditivo diante do bispo, quando os dois esposos estão de acordo para pedir a nulidade. Certos canonistas chegaram a falar, neste caso, de anulação por mútuo consentimento.
Na verdade uma espécie de núcleo dirigente, que agiu como “cúpula” do Sínodo, constituiu-se em torno do muito influente cardeal Lorenzo Baldisseri, seu Secretário-geral. Participavam desse núcleo Dom Bruno Forte, arcebispo de Chieti, Secretário especial, (isto é, número dois do Sínodo); Dom Fabio Fabene, da Congregação dos Bispos, Subsecretário; o Cardeal Ravasi, Presidente do Conselho da Cultura, encarregado da redação da Mensagem final do Sínodo às famílias, assistido notadamente por Dom Victor Manuel Fernández, reitor da Universidade Católica da Argentina; o jesuíta Antonio Spadaro, diretor da “Civiltà Cattolica”, além de outras pessoas de influência, todas próximas do Papa, como o bispo de Albano, Dom Marcello Semeraro, e o Arcebispo Paglia, Presidente do Conselho para a Família. A eles se uniu o cardeal Schönborn, arcebispo de Viena, que foi supervisor do Catecismo da Igreja Católica e exerceu o papel de avalista da ortodoxia do texto, que o cardeal Müller se recusava a assumir. Toda esta equipe forneceu um trabalho considerável para chegar ao fim almejado…
RdM: Para terminar elaborando, depois da segunda Assembleia, um texto de mais de 250 páginas…
CB: E mesmo antes… O texto da exortação pós-sinodal já estava definido em suas grandes linhas… em setembro de 2015, antes mesmo da abertura da segunda assembleia do Sínodo sobre a família.
RdM: O senhor disse que foi um trabalho considerável para chegar ao fim almejado. Qual exatamente?
CB: É bem possível que, no espírito do Papa Francisco, inicialmente não se tenha tratado senão de conceder um salvo-conduto “pastoral” e “misericordioso”. Mas como a teologia é uma ciência rigorosa, tornou-se imperativo enunciar princípios que justificassem a decisão em consciência, adotada por pessoas que vivem em adultério público, de se aproximarem dos sacramentos. Já desde o início, numerosas passagens da Exortação preparam esta explanação doutrinária, que se encontra no capítulo VIII, o qual versa sobre diversas “situações de fragilidade ou imperfeição”, e especialmente daquela dos divorciados engajados numa nova união “consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas” (nº 298). Nesta situação “imperfeita” em relação ao “ideal pleno do matrimônio” (nº 307), a Exortação coloca regras para um “discernimento especial” (nº 301). Este é normalmente realizado com a ajuda de um sacerdote “no foro interno” (pelos dois parceiros da união?), que permitirá aos interessados estabelecer um discernimento de consciência correto (nº 300).
Esse discernimento (do padre? dos parceiros esclarecidos pelo padre?), devido a condicionamentos diversos, poderá concluir por uma imputabilidade atenuada ou nula, tornando possível o acesso aos sacramentos (nº 305). Um parêntese: não está dito se esse discernimento se impõe a outros sacerdotes, os quais também ficariam obrigados a dar os sacramentos aos interessados. De todos os modos, importa notar que o texto não focaliza apenas o acesso aos sacramentos, que é tratado um pouco embaraçadamente em pé de página (nota 351). Em contrapartida, ele estabelece claramente um princípio teológico, resumido no nº 301, que merece ser citado por extenso: “Já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à norma» ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa.”
O que pode ser destrinchado da seguinte maneira: 1º) devido a circunstâncias concretas, pessoas em estado de adultério público “ativo”, embora conhecendo a norma moral que o proíbe, se encontram diante de uma situação tal que, se saíssem dela, cometeriam uma falta (sobretudo em relação aos filhos nascidos dessa união); 2º) de sorte que essas pessoas, que vivem em adultério público “ativo”, não cometem pecado grave permanecendo nesse estado.
Na realidade, as consequências negativas que poderiam resultar da cessação desse estado de adultério (o sofrimento dos filhos nascidos da união ilegítima pela separação de seus pais), não constituem novos pecados (“uma nova culpa”), mas efeitos indiretos de um ato perfeitamente virtuoso, a saber, a cessação de um estado de pecado. Bem entendido, a justiça deve ser respeitada e especialmente será preciso assegurar a educação dos filhos da segunda união, mas fora do estado de pecado.
Há, pois, uma oposição frontal com a doutrina anterior lembrada no nº 84 da Familiaris consortio, de João Paulo II, a qual precisava que se graves razões obrigassem os “recasados” a viverem sob o mesmo teto, então deveriam viver como irmão e irmã. A nova asserção doutrinária resume-se assim: em certas circunstâncias, o adultério não é pecado.
RdM: O senhor dizia que o instinto da fé está ausente ali?
CB: Isto não está de acordo com a moral natural e cristã: as pessoas que conhecem uma normal moral que obriga sub gravi (o mandamento divino proíbe a fornicação e o adultério) não podem ser escusadas de pecado e, em consequência, não podem ser consideradas em estado de graça. São Tomás, numa questão da Suma Teológica bem conhecida de todos os moralistas, a questão 19 da Iª IIæ, explica que é a bondade de um objeto proposto pela razão que torna bom o ato da vontade, e não as circunstâncias do ato (artigo 2); e que, se é verdade que a razão humana pode enganar-se e considerar bom um ato mau (artigo 5), alguns erros não são jamais escusáveis, sobretudo o de ignorar que não é lícito aproximar-se da mulher de seu próximo, porque isso está diretamente ensinado pela Lei de Deus (artigo 6). Em outra passagem igualmente conhecida dos moralistas, o Quodlibet IX, questão 7, artigo 2, Santo Tomás explica que as circunstâncias podem mudar a natureza de um ato, mas não seu valor intrínseco. Por exemplo, golpear ou matar um agressor é um ato de justiça ou de legítima defesa: pela circunstância de tratar-se de uma agressão, o ato muda de natureza e a resposta não é mais uma violência injusta, mas um ato virtuoso. Em contrapartida, diz o Doutor comum, certas ações “têm uma deformidade que está ligada inseparavelmente a elas, como a fornicação, o adultério e as demais coisas desse gênero: elas não podem de nenhum modo tornar-se boas”.
Um menino do catecismo compreenderia essas coisas, dizia Pio XII num discurso de 18 de abril de 1952. Ele condenava ali a Situtionsethik, a “moral de situação”, que não se baseia nas leis morais universais como, por exemplo, os Dez Mandamentos, mas “nas condições ou circunstâncias reais e concretas nas quais se deve agir, e segundo as quais a consciência individual deve julgar e escolher”. Ele lembrava que um fim bom jamais justifica meios maus (Romanos 3, 8), e que existem situações nas quais o homem, e especialmente o cristão, deve sacrificar tudo, até mesmo sua vida, para salvar sua alma. No mesmo sentido, a encíclica Veritatis Splendor, de João Paulo II, reafirmando que as circunstâncias ou as intenções jamais poderão transformar um ato cujo objeto é intrinsecamente desonesto num ato subjetivamente honesto, citava Santo Agostinho (Contra mendacium): a fornicação, as blasfêmias, etc., mesmo praticadas por boas razões, são sempre pecados.
RdM: O que fazer então?
CB: Não se pode contradizer as palavras de Cristo: “Quem repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudia o marido e se casa com outro, comete adultério.” (Mc 10, 11-12). O Prof. Robert Spaemann, filósofo alemão amigo de Bento XVI, observa que toda pessoa capaz de refletir pode constatar que se está em presença de uma ruptura. Eu não penso que seja possível contentar-se em propor uma interpretação do capítulo VIII da Exortação a qual concluísse que nada mudou. Aliás, é preciso levar a sério as palavras do Papa, que no avião que o trouxe de volta de Lesbos avalizou a apresentação do texto feita pelo cardeal Schönborn.
Em si mesma, a asserção teológica exposta na exortação é clara. O dever da verdade obriga a dizer que ela não é admissível. Nem tampouco as proposições anexas, como aquela que afirma que a união livre ou a união de divorciados recasados realizam o ideal do casamento “de forma parcial e analógica” (nº 292).
Então é preciso esperar, no sentido forte da esperança teológica, que numerosos pastores, bispos e cardeais falem claramente, para a salvação das almas.
Pode-se em contrapartida desejar, pedir, apelar por uma interpretação autêntica — no sentido de interpretação do depósito da Revelação, inclusive na recordação da lei natural ligada a ela — pelo magistério infalível do Papa, ou do Papa e dos bispos unidos a ele, magistério que discerne, afirmando em nome da fé o que é verdade e rejeitando o que não o é.
Parece-me que hoje se entra, 50 anos após o Vaticano II, numa nova fase do pós-Concílio. Naquela época, viu-se ceder — por certas passagens sobre o ecumenismo e a liberdade religiosa — um dique que se acreditava extremamente firme, do ensinamento eclesiológico romano, magisterial e teológico. Edificou-se então outro dique para resistir à maré da modernidade, aquele da moral natural e cristã, com a Humanæ vitæ de Paulo VI e todos os documentos de João Paulo II sobre esses temas. Tudo aquilo foi chamado de “restauração”, segundo a expressão do Relatório sobre a fé do cardeal Joseph Ratzinger, edificou-se largamente sobre essas bases colocadas para a defesa do casamento e da família. Atualmente tudo acontece como se esse segundo dique estivesse a ponto de ceder.
RdM: Alguns poderão acusá-lo de ser excessivamente pessimista…
CB: Pelo contrário. Vivemos, creio eu, um momento decisivo da história do pós-Concílio. As consequências de longo prazo do que acontece atualmente são difíceis de prever, mas serão consideráveis. E estou persuadido de que no fim elas serão positivas. Em primeiro lugar, evidentemente, estou certo disso pela fé, porque a Igreja tem palavras de vida eterna. Mas também, muito concretamente, porque a necessidade de um retorno ao magistério — ao magistério enquanto tal — impor-se-á cada vez mais nas perspectivas que deverão necessariamente ser elaboradas para o porvir.
(*) Fonte: “Correspondance Européenne”, 4-5-2016. Matéria traduzida do original francês por Hélio Dias Viana.
paz e bem
é importante analisarmos com detalhes esta nova carta apostolica do papa Francisco
á luz do magistério da igreja.