Nada mais agradável depois de uma boa refeição, terminada com um saboroso cafezinho, servir-se um cálice de Chartreuse. Considerado um digestivo, esse delicioso licor elaborado por monges passou a ser muito apreciado também em coquetéis, principalmente nos Estados Unidos, onde ele é feito com ervas se tornou muito popular.
A história desse delicioso licor passou por trancos e barrancos, até chegar a nossos dias, impondo-se por sua qualidade.
De acordo com a tradição, a história começa em 1605, com François Hannibal d’Estrées, marechal de artilharia do rei francês Henrique IV. Ele era irmão da famosa Gabrielle d’Estrées, cortesã desse rei. “Muito considerado em Paris e estimado por todos”, ele presenteou os monges cartuxos de Vauvert, perto de Paris, com um manuscrito contendo uma receita de um “elixir de longa vida”, feito à base de 130 ervas, plantas e flores combinadas em uma base de álcool de vinho. A história não nos conta qual foi a origem desse documento. O fato de ele o entregar a monges se explica, porque na época apenas eles e os boticários detinham os conhecimentos necessários para trabalhar com plantas. Os cartuxos de Vauvert encaminharam a receita para a sua Casa-Mãe, o mosteiro da Grande Cartuxa, ao norte de Grenoble [foto ao lado].
Esse mosteiro fora fundado em 1084 por São Bruno de Colônia [quadro abaixo], em terras que lhe haviam sido doadas pelo bispo de Grenoble, Santo Hugo. De origem aristocrática, assim um hagiógrafo descreve São Bruno: “Grandeza de nascença, grandeza de espírito, grandeza de fortuna, graças exteriores, inteligência clara e vigorosa, incomparáveis aptidões para as ciências, presentes já magníficos que faziam brilhar o mais belo deles, a virtude: eis em que meio de esplendor se desenvolvia essa jovem alma”.
A Ordem dos Cartuxos, fundada por ele, é uma das mais austeras da Igreja. Segundo o mesmo hagiógrafo, os monges cartuxos usam “ásperos cilícios, fazem longas vigílias, jejum contínuo, silêncio perpétuo com os homens e conversação incessante com Deus. Nunca comem carne e seu pão é um pão negro de cevada; admitem peixes se lhes forem oferecidos, mas jamais os compram. Somente às quintas-feiras e aos domingos chegam queijo e ovos às suas mesas. Nas terças e nos sábados se alimentam de legumes cozidos. Às segundas e quartas-feiras jejuam a pão e água. Têm apenas uma refeição diária. Os rumores do mundo externo morrem à porta de suas celas. Rezam, transcrevem códices ou trabalham no pequeno jardim circundante […] Só se reúnem na igreja para rezar as Matinas à meia-noite, e durante o dia, para a missa e Vésperas. Fora disso, vivem sós, elevando a Deus suas orações, com os olhos fixos na terra e os corações elevados ao Céu” (Les Petits Bollandistes).
É muito arquitetônico que tenha sido nas mãos desses monges contemplativos das verdades eternas que a Divina Providência fez chegar a fórmula do licor que tomou o nome da instituição a que pertencem.
De posse da receita recebida, os monges da Cartuxa começaram a fazer algumas experiências. Conta-se que em 1611 o poderoso Cardeal de Richelieu, Primeiro-Ministro francês, agradeceu calorosamente ao padre superior da cartuxa de Paris o envio de um “elixir” que o livrou de uma “infeliz doença”. Supõe-se que tenha sido pedra nos rins.
Entretanto, a receita desse elixir, que eles chamavam de “Elixir da longa vida”, era muito complexa e durante muitos anos não foi utilizada senão parcialmente. Assim, foi só em 1737 que os cartuxos decidiram fazer um estudo exaustivo da receita que detinham. Coube ao irmão Jerônimo Baubec — farmacêutico chegado em 1749 à Grande Cartuxa proveniente da cartuxa de Verne — deslindar a receita. Com a ajuda do irmão Antônio Dupuy, em 1764 eles conseguiram finalmente fixar a fórmula definitiva do que se tornou então o “Elixir Vegetal da Grande-Cartuxa”, o qual passou a ser produzido de modo limitado. Sua venda se fazia então no dorso de mula, visitando os mercados de Grenoble e Chambery.
Três décadas depois, com base na popularidade crescente de sua preciosa criação, os monges desenvolveram o que se tornaria seu produto principal: um digestivo verde, que eles originalmente chamaram de “licor saudável” e que depois ficou conhecido como “Chartreuse Verde”. Esta bebida é considerada inimitável, pois é o único digestivo de cor verde sem corante artificial, o que se deve provavelmente à presença de clorofila.
Não sabemos em que fonte se baseia o livro The Practical Hotel Steward, publicado em Chicago em 1900, ao afirmar que o Chartreuse Verde contém “canela, macis, erva-cidreira, flores de hissopo secas, hortelã-pimenta, tomilho, costumeira, flores de arnica, genepi [planta medicinal tônica e sudorífica] e raízes de angélica”, e que o Chartreuse Amarelo é “semelhante ao anterior, com adição de sementes de cardamomo e aloés socctrina”.
Essa preciosa bebida foi aos poucos encontrando mercado em outras regiões da França, até que, em 1789, durante a satânica Revolução Francesa, os monges foram dispersos. Entretanto, antes de partirem, para salvar a fórmula do licor que se mantinha ainda secreta, foi feita uma cópia do precioso manuscrito pelo único religioso autorizado a permanecer no mosteiro, e entregue a um monge da dispersão. Contudo, no caminho ele foi preso e enviado para a prisão de Bordeaux. Como não foi revistado, pôde passar o manuscrito a outro monge, Dom Basile Nantas, que estava livre.
Dom Basile planejava fugir para a Espanha. Mas, convencido de que nunca mais voltaria à França, vendeu o manuscrito a um farmacêutico de Grenoble, Liotard. Não ficou registrado se esse farmacêutico fez alguma experiência com base na receita. O certo é que, em 1810, Napoleão Bonaparte, como genuíno ditador, ordenou que todas as receitas de remédio consideradas secretas deveriam ser enviadas ao Ministério do Interior para serem analisadas, e Liotard assim fez. Entretanto, o manuscrito foi devolvido como “recusado”, porque não foi considerado um segredo, mas como algo já conhecido.
Em 1816, com a volta dos monges à Grande Cartuxa, os herdeiros de Liotard lhes devolveram o manuscrito da bebida, cuja fabricação eles logo retomaram. Em 1838 desenvolveram o que seria o Chartreuse Amarelo, uma versão mais doce e com menos álcool do que o Verde. O chamado “Chartreuse Verte n. 55” só foi desenvolvido no ano de 1840, encontrando um sucesso imediato na região do Delfinado. É um licor naturalmente verde, feito de 130 ervas e outras plantas maceradas em álcool e embebidas por cerca de oito horas. Uma última maceração das plantas dá cor ao licor. É o único licor VERDE mundialmente famoso, feito só de elementos naturais, que envelhece em barris de carvalho e garrafas. Em 1860 nasceu um novo licor: “Mélisse”, cujo nome passaria a ser Chartreuse Blanche. Será produzido de 1860 a 1880 e novamente de 1886 a 1900.
Mas a história não para aí. Com o advento da ateia Terceira República na França, em 1903 os cartuxos foram novamente expulsos do mosteiro, e seus bens imóveis, incluindo a destilaria, confiscados pelo governo. Foram então para Tarragona, na Espanha, onde fundaram uma cartuxa e montaram uma destilaria para continuar a fabricação do licor. Isso ocorreu de 1904 a 1989, sendo ele chamado “La Tarragona”. Entre 1921 e 1929 ele foi também produzido em Marselha, também com o mesmo nome de “Tarragona”.
Não temos dados suficientes para saber quando foi revogada a ordem de exílio dos cartuxos. Sabemos que em 1929, já na França, os monges recomeçaram a fabricação da bebida em sua antiga destilaria de Fourvoirie, perto do Mosteiro do Grande Chartreuse — novamente com o nome de Chartreuse. Esses edifícios foram destruídos em 1935 por um deslizamento de terra. A fabricação foi então transferida para Voiron [foto]. Parece que o governo francês fez vistas grossas ao fato de os cartuxos terem voltado para a Grande Cartuxa, pois eles regressaram com sua aprovação tácita. Para o governo, além do prestígio conferido pela fama internacional do licor, havia os dividendos que ele trazia para o país. Um indício da aprovação tácita do governo foi o fato de ele designar engenheiros do Exército para realocar e reconstruir a destilaria em Voiron quando do deslizamento de terra em 1935. Lá ela permaneceu até 2017, quando se mudou para Aiguenoire, nas proximidades, devido a questões de segurança.
Foi só depois da Segunda Guerra Mundial que o governo suspendeu definitivamente a ordem de expulsão dos monges, tornando os irmãos cartuxos mais uma vez legalmente residentes na França.
Em 1963 eles lançaram o “Chartreuse V.E.P. (Vieillissement Exceptionnellement Prolongé — Envelhecimento excepcionalmente prolongado). Ele é feito com os mesmos processos e a mesma fórmula secreta do licor tradicional, mas com um envelhecimento extra longo em carvalho, atingindo uma qualidade excepcional. O VEP Chartreuse pode ser tanto amarelo quanto verde.
Diante do aumento constante de sua produção — mais de um milhão de garrafas a cada ano e 24 toneladas de plantas —, uma empresa chamada Chartreuse Diffusion agora cuida do dia-a-dia das operações, incluindo embalagem, propaganda e vendas. Mas os segredos comerciais ainda são confiados apenas a dois monges cartuxos. É também por isso que as bebidas não estão protegidas por nenhuma patente, para não divulgar o segredo da receita.
Essa comercialização de todos os licores produzidos pelos cartuxos, baseados no manuscrito de 1605 do Duque d’Estrées, lhes permite tanto a manutenção de sua comunidade quanto continuar a rezar no silêncio e na solidão, segundo determinado por São Bruno. Entretanto, apenas dois monges da Grande Cartuxa, investidos da missão de orientar a fabricação da inigualável bebida, trabalham no maior sigilo e são os únicos a conhecer os detalhes da produção. Pois, agora como ontem, sua fórmula permanece um mistério que nem os métodos modernos de investigação conseguiram desvendar.
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Fontes: – https://www.chartreuse.fr/histoire/histoire-des-liqueurs/