O novo Panteon dos mártires do Papa Francisco

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Salomé recebendo a cabeça de São João Batista — martirizado por ter repreendido o adultério de Herodes. Óleo sobre tela, Paulus Moreelse (1618), Museu de Arte Antiga de Lisboa [Foto PRC]
Entre os diversos “grupos de trabalho” constituídos pelo Papa Francisco está a Comissão Mista de Especialistas croatas católicos e sérvios ortodoxos para uma releitura em comum da figura do Cardeal Alojzije Stepinac, Arcebispo de Zagreb, que em 12 e 13 de julho 2017 realizou sua última reunião na Casa de Santa Marta, no Vaticano, sob a direção do padre Bernard Ardura, presidente do Pontifício Comitê de Ciências Históricas. O comunicado conjunto da Comissão, publicado pela Sala de Imprensa da Santa Sé em 13 de julho, afirma que “o estudo da vida do Cardeal Stepinac ensinou que na história todas as Igrejas sofreram cruelmente diversas perseguições e têm seus mártires e confessores da fé. A este respeito, os membros da Comissão chegaram a um acordo sobre a possibilidade de futura colaboração, com vista a um trabalho comum para partilhar a memória dos mártires e confessores das duas Igrejas”.

Essa afirmação, que sintetiza as seis reuniões de trabalho realizadas pela Comissão, inverte o conceito católico de martírio. Com efeito, o martírio, segundo a Igreja Católica, é a morte enfrentada para testemunhar a Verdade. Não uma verdade qualquer, mas uma Verdade de fé ou de moral católica. Na Igreja se celebra, por exemplo, o martírio de São João Batista, que sofreu a morte por ter repreendido publicamente o adultério de Herodes. Vale o dito de Santo Agostinho: martyres non facit poena, sed causa (Enarrationes in Psalmos, 34, 13, col 331.). Não é a morte que faz o mártir, mas a causa da morte, infligida por ódio à fé ou à moral católica.

Para a comissão chefiada pelo padre Ardura, pelo contrário, martyres non facit causa, sed poena: não significa outra coisa a equiparação “dos mártires e confessores das duas Igrejas”, a Católica e a ortodoxa. Este princípio, segundo o comunicado, pode ser estendido a “todas as igrejas” que tiveram “mártires” e “confessores” de suas respectivas crenças. Mas se o mártir é quem sofre a morte para defender a sua crença, por que não considerar mártir aquele cristão sui generis que foi Giordano Bruno, colocado na fogueira pela Igreja Católica em Campo de Fiori, em 17 de fevereiro de 1600? No fundo a Maçonaria sempre o considerou um “mártir” da religião da liberdade, e como tal o apóstata dominicano foi homenageado no último 17 de fevereiro na sede do Grande Oriente da Itália por um sacerdote da Diocese de Mileto — o padre Francesco Pontoriero —, que relembrou as decisões de Giordano Bruno “até a última, aquela que o levou a voltar a Veneza, onde pesava sobre ele uma sentença de morte, e depois a de abraçar o martírio, na certeza de que só assim sua mensagem de liberdade perduraria longamente no tempo”.

A reunião de Santa Marta foi precedida de dois dias por um Motu proprio do Papa Francisco — Maiorem hac dilectionem, de 11 de julho —, que escapou à atenção geral e introduz “o oferecimento da vida” como um novo motivo para o processo de beatificação e canonização, distinto da modalidade tradicional do martírio e da heroicidade das virtudes. Em artigo publicado em 11 de julho no “Osservatore Romano”, o arcebispo Dom Marcello Bartolucci, secretário da Congregação para a Causa dos Santos, disse que até agora as três formas pré-estabelecidas para alcançar a beatificação eram as do martírio e das virtudes heróicas, e a da chamada “beatificação equipolente” [de servos de Deus que viveram há muitos séculos]. Agora, a essas três é adicionada uma quarta via, “o oferecimento da vida”, que “visa promover um heróico testemunho cristão, até aqui sem um procedimento específico, porque não se encaixa inteiramente no caso de martírio, nem no das virtudes heróicas”.

Motu proprio precisa que o oferecimento da vida, para que seja válido e eficaz para a beatificação de um Servo de Deus, deve responder aos seguintes critérios: a) oferecimento livre e voluntário da vida e heróica aceitação propter caritatem de uma morte certa e em breve prazo; b) nexo entre o oferecimento da vida e a morte prematura; c) exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs antes do oferecimento da vida e, depois, até a morte; e) necessidade do milagre para a beatificação, ocorrido após a morte do Servo de Deus e pela sua intercessão.

Mas o que significa propter caritatem? A caridade, definida por Santo Tomás como a amizade do homem para com Deus e de Deus para com o homem (Suma Teológica, II-IIae, q, 23, a. 1), é a mais excelente de todas as virtudes. Ela consiste em amar a Deus e, em Deus, o nosso próximo. A caridade não é, portanto, uma virtude que nos leva a amar os nossos semelhantes enquanto homens, mas é um ato sobrenatural que tem em Deus o seu fundamento e o seu último fim. A caridade tem também uma hierarquia: primeiramente, os interesses espirituais de nosso próximo devem prevalecer sobre os seus interesses materiais. Em segundo lugar, é preciso amar os que nos são próximos antes daqueles que estão mais distantes de nós (Suma Teológica, II-IIae, q. 26, a. 7), e se houvesse alguma vez um conflito entre os interesses dos próximos e os dos distantes, dever-se-ia dar prioridade aos primeiros sobre os segundos. É esta a nova visão do Motu proprio papal? É de se duvidar.

Entrevistado por “Voce Isontina”, revista semanal da Arquidiocese de Gorizia, Dom Vincenzo Paglia, novo presidente da Academia Pontifícia para a Vida, expressou sua alegria pelo documento do Papa Francisco porque, destaca, “tenho estado de algum modo envolvido como postulador da Causa de beatificação de Dom Oscar Arnulfo Romero”“O arcebispo de El Salvador, de fato — prossegue —,não foi morto por perseguidores ateus para que renegasse a fé na Trindade: foi assassinado por cristãos porque queria que o evangelho fosse vivido na sua profunda intuição de dom da vida”.

Dom Romero representa, portanto, o modelo de um “oferecimento da vida” equiparado ao martírio. A “quarta via” que, de acordo com Motu proprio do Papa Francisco, levará à canonização, é a morte sofrida não por ódio à fé, mas como resultado de uma escolha política a serviço dos pobres, dos imigrantes e da “periferia” da Terra. Poderão ser excluídos das beatificações os sacerdotes guerrilheiros mortos propter caritatem nas revoluções políticas das últimas décadas? Mas então, por que não equiparar aos mártires e começar a beatificação de todos os cristãos que deram suas vidas em uma guerra justa? Morrendo por sua pátria, eles fizeram um excelente ato de caridade, uma vez que “o bem da nação é superior ao bem individual” (Aristóteles, Ética, I, cap. II, n° 8). A Igreja Católica nunca os considerou mártires porque lhes falta a motivação religiosa, mas parece injusto privá-los de um espaço no novo Panteão dos mártires do Papa Francisco.

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(*) Fonte: “Corrispondenza romana”, 19-7-2017. Matéria traduzida do original italiano por Hélio Dias Viana.

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