Pergunta — Frequento a missa tradicional e tive uma discussão com um colega de faculdade a respeito do motu próprio Traditionis Custodes. Talvez por falta de argumentos, ele acabou insistindo muito para que eu não deixasse de ver no Youtube um vídeo do 1° Colóquio Internacional de Liturgia da Universidade Católica do Pernambuco sobre a Eucaristia como sinal de reconciliação. E que aí eu procurasse a mesma temática sobre Traditionis Custodes, que teve como um dos palestrantes o beneditino Dom Jerônimo Pereira. Vi a matéria. Em síntese, ele afirmou que que o Papa Francisco não fez senão reassumir o desejo de São Pio V de que a Igreja latina tivesse uma única forma ritual e por isso promulgou o missal de 1570. Mas o que me chamou a atenção foi ele ter afirmado categoricamente que é intelectualmente “desonesto” dizer que existem dois missais, porque se trataria apenas de “uma forma precedente e de uma forma atual de um único livro”. Essa afirmação, que segundo Dom Jerônimo estaria na base do motu proprio Traditionis Custodes,corresponde com a realidade?
Resposta — Agradeço a pergunta do missivista e lhe devolvo a pergunta: é honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a forma atual de um único livro, cuja versão pré-conciliar é o missal de 1962?
Senão vejamos:
- os ritos de entrada constituem em grande parte uma criação inteiramente nova;
- o belíssimo Ofertório que prepara e prefigura a imolação incruenta da Consagração foi substituído por uma Apresentação das Oferendas inspirada nas Beràkhôth do Kiddush, ou seja, nas bênçãos da ceia pascal dos judeus que não têm nada de especificamente católico;
- o antigo Canon romano foi profundamente modificado e foram redigidas três novas orações eucarísticas compostas seguindo modelos orientais e galicanos que, ao menos pelo seu estilo, representam um corpo estranho no rito romano;
- na consagração do vinho foram retiradas, sem motivo, as palavras mysterium fidei sem motivo, das palavras mysterium fidei (cf. I Tim. III, 9) — inseridas nas palavras da consagração em torno do século VI — para transformá-las num apelo do padre depois da consagração, que jamais esteve em uso, seguido de uma aclamação da assembleia que nunca existiu no rito latino e que representa uma ruptura abrupta no relato;
- das 1.347 orações no Rito Romano tradicional, 669 foram extirpadas (49,7%), 307 foram editadas (23,8%), 206 foram combinadas com outras para fazer uma nova (15,3%) e apenas 165 permaneceram inalteradas (12,2%) no rito novo;
- a organização das leituras, que remontava a mais de mil anos, foi radicalmente modificada em aras de ampla reorganização do ano litúrgico e do santoral que não deixou subsistir praticamente nada do estado anterior;
- as numerosas prescrições de “escolhas possíveis” contribuíram para introduzir o arbitrário na organização de uma missa cuja celebração anterior era estritamente regulamentada.
É honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a forma atual de um único livro, quando:
- o Pe. Pierre Jounel, um dos especialistas do Consilium que preparou a reforma litúrgica, reconheceu ao jornal La Croix que “a Segunda [Oração Eucarística] foi retomada da Oração Eucarística de [Santo] Hipólito (século III)”, que “a Terceira se inspirou no esquema das liturgias orientais” e que “a Quarta foi elaborada numa noite, por uma pequena equipe em torno do Pe. Gelineau”?
- esse mesmo Pe. Gelineau, um dos redatores do novo rito, confessou que “na verdade, é uma outra liturgia da Missa” e que “é preciso dizê-lo sem rodeios: o rito romano tal como nós o conhecíamos não existe mais, ele foi destruído”?
- o principal artífice da reforma, Dom Annbale Bugnini, declarou que “a liturgia está em meio a um período de transição”, porque “não se trata apenas de retocar uma obra de arte de grande valor, mas às vezes é necessário dar novas estruturas a ritos inteiros”, pelo que se trata “de uma restauração fundamental, diria quase de uma reformulação e, em certos pontos, de uma verdadeira nova criação”?
- o próprio Paulo VI, no domingo anterior à entrada em vigor, afirmou tratar-se de um “novo rito da Missa”, uma mudança “que afeta nosso patrimônio religioso hereditário”?
- o então cardeal Joseph Ratzinger reconheceu que o problema do novo Missal reside “na criação de um livro inteiramente novo, embora a partir de material antigo”?
- um dos maiores estudiosos da Liturgia do século XX, Mons. Klaus Gamber, deplorou que o rito romano tradicional “foi destruído”, porque “os reformadores queriam uma liturgia completamente nova, uma liturgia que diferisse da tradicional tanto no espírito quanto na forma”?
“Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia”
Não há dúvida de que há continuidade quanto à essência do sacramento, pois em ambos os ritos realmente se celebra uma Santa Missa válida; mas que há uma ruptura quanto ao rito é demonstrado acima (além das deficiências teológicas apontadas por muitos estudiosos e, em particular, pelo Breve estudo crítico enviado a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci).
Isso posto, a questão que surge imperativamente dessa constatação é se a reforma que impôs essa ruptura ritual foi legítima. Da qual, por sua vez, surge uma segunda pergunta: tem o Papa Francisco o poder de revogar um rito tradicional e declarar, como o fez no motu proprio Traditionis Custodes, que o missal de Paulo VI “é a única expressão da lex orandi do rito romano”?
A respeito da primeira questão, convém citar o que escreveu recentemente o canonista Frei Reginaldo-Maria Rivoire, no seu estudo Omotu proprio Traditionis Custodes posto à prova da racionalidade jurídica:
“Como sugere a etimologia, o que é legítimo (ou lícito) é o que foi legalmente estabelecido. Isso pode ser entendido de várias maneiras. Um ato jurídico (seja administrativo, legislativo ou judicial) é legítimo se for formulado de acordo com as formalidades e exigências da lei (cf. cân. 124). No entanto, mais fundamentalmente, tal ato deve exibir aqueles elementos constitutivos que lhe são essenciais. Assim, um ato jurídico normativo pode ser editado pela autoridade competente apenas dentro de sua própria área de jurisdição, a fim de regular as coisas que são de seu domínio. Ainda que cumpridas as formalidades legais, um enunciado normativo proferido por quem não tem domínio sobre a realidade que pretende regular, não é uma norma jurídica, mas, quando muito, uma norma proposta.
“Consequentemente, um ato normativo só é legítimo se for conforme à natureza das coisas, porque tal natureza não cai sob o domínio dos homens. Nenhuma autoridade humana pode estabelecer uma ordem que vá contra essa realidade. Uma ‘norma jurídica’ que fosse contrária à natureza das coisas não seria racional e, de fato, não seria norma alguma. Tal norma não introduz uma ordem; introduz uma desordem. Não é justa, mas sim vis [força] e iniuria [ferimento].
“Procuremos aplicar estes princípios à reforma litúrgica de Paulo VI. Considerando apenas o novo Missal, ninguém contesta que foi promulgado pela autoridade legítima segundo as formas legais, ou seja, pelo Papa Paulo VI na Constituição Apostólica Missale Romanum de 3 de abril de 1969. […]
“A verdadeira questão é, antes, a dos limites da autoridade do Sumo Pontífice em matéria litúrgica. Nos tempos modernos, no Ocidente, os papas se apropriaram do direito de legislar de maneira cada vez mais detalhada e ampla em matéria litúrgica. […] É verdade que o poder do bispo de Roma é ‘supremo’, no sentido de que não está subordinado a nenhum poder humano, e ‘pleno’, no sentido de que possui em sua plenitude todo o poder que Cristo deu à sua Igreja para ensinar, santificar e governar. Mas esse poder não é absoluto e ilimitado, como se o pensamento ou a vontade do papa fossem lei. Está ao serviço da Tradição santa e viva da Igreja, que deve conservar e transmitir sempre. Isto é especialmente verdadeiro em relação à liturgia, que é um dos elementos constitutivos daquela Tradição. O cardeal Ratzinger certa vez explicou isso usando a impressionante imagem de um jardineiro em seu jardim, em oposição a um técnico que fabrica máquinas. […]
“Isso é resumido no Catecismo da Igreja Católica, n. 1125: ‘Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia a seu bel-prazer, mas somente na obediência da fé e no respeito religioso do mistério da liturgia’.
“Diante do exposto, entende-se que uma lei litúrgica pontifícia que não respeitasse a própria natureza da liturgia não seria uma lei, uma regula iuris, mas sim uma corruptela iuris, uma corrupção da lei, ainda que fosse garantida por todas as formalidades jurídicas. Faltaria a ela aquele caráter fundamental de qualquer lei que é a racionalidade. Uma vez que o ato de legislar é um ato da razão, ele próprio é condicionado, ‘normatizado’, pela natureza das coisas. […]
“Pode haver normas litúrgicas impróprias, questionáveis, defeituosas sem que sejam necessariamente irracionais nem, por conseguinte, ilegítimas. […] No entanto, uma norma totalmente inadequada à realidade que pretende ordenar carece de legitimidade. E consideramos contrário à própria natureza de um rito litúrgico que seja fabricado ou manufaturado. […]
“Assim, independentemente da consideração de suas graves deficiências rituais intrínsecas, que o tornam uma expressão insatisfatória da Lex credendi, o simples fato de o Novus Ordo Missæ ser um rito novo e fabricado é suficiente para o canonista questionar sua legitimidade. [o destaque é nosso].
“Dito isto, mesmo que alguém admitisse (para fins de argumentação) que um novo rito autêntico pudesse ser criado do zero pela vontade de um papa, esse novo rito só poderia ser opcional e não poderia simplesmente substituir um rito pré-existente”.
O missal tradicional nunca foi revogado jurídicamente
Essa última afirmação responde pela negativa à segunda pergunta que levantei, ou seja, se o Papa Francisco tem o poder de declarar em Traditionis Custodes que o missal de Paulo VI “é a única expressão da Lex orandi do rito romano”. Obviamente que não tem. Tanto mais quanto Bento XVI, na carta que acompanhava seu motu proprio Summorum Pontificum, escreveu: “Quanto ao uso do Missal de 1962 como Forma Extraordinária da liturgia da Missa, gostaria de chamar a atenção para o fato de que este Missal nunca foi revogado juridicamente e, consequentemente, em princípio, sempre foi permitido.”
Convém, aliás, encerrar esta resposta com uma consideração de senso comum, feita pelo Frei Reginaldo Maria Rivoire em seu estudo: “Há uma contradição por parte dos reformadores em sustentar que o novo rito é substancialmente idêntico ao anterior [como fez Dom Jerônimo Pereira OSB, na sua palestra], enquanto ao mesmo tempo julgam a celebração de acordo com uma edição anterior do Missal anormal, ou mesmo ilícita sem permissão excepcional”.
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Fonte: Revista Catolicismo, Nº 873, Setembro/2023