Numa calorenta tarde de verão –– ou mesmo de inverno ––, poucos são os que resistem a uma cerveja bem gelada. De preferência, de garrafa; ou um chope espumante, tomado em caneca de louça ou de vidro.
Ao saborear a agradável bebida –– uma das mais populares do mundo entre os adultos ––, não passa pela cabeça da maioria das pessoas que ela tem uma longa história, que se prende aos mosteiros do início da Idade Média na Europa.
Com efeito, a cerveja foi elaborada com um contributo indispensável da religiosa beneditina Santa Hildegarda de Bingen, e aperfeiçoada mais tarde por monges trapistas, fazendo com que sua história seja cercada de muitas bênçãos.
Foi na noite dos tempos da Alta Idade Média (760-1000) que os monges penetraram no território europeu, no insano trabalho de converter as tribos bárbaras. Esses homens de visão não se restringiram a essa nobre atividade; foram também responsáveis pela salvação da cultura, ameaçada em meio àquele caos, ensinando a esses povos primitivos o uso da terra e, sobretudo, cultivando seus espíritos.
Por acaso –– ou melhor, pela mão da Providência, pois coincidência não existe ––, em determinado momento os monges começaram a fabricar para uso próprio uma bebida forte e saudável que servia ao mesmo tempo para alegrar um pouco o coração do justo e matar a sede e alimentar o corpo. Desse mosteiro ignoto a bebida se espalhou para outros mosteiros, começando assim a sua história.
Acidentalmente, consta que a cerveja foi também responsável pela boa saúde de muitos, pois em várias regiões ela mitigava o mau efeito da insalubridade ou má qualidade da água, que provocava enfermidades.
Com o tempo, muitos monges de várias Ordens religiosas –– franciscanos, beneditinos, mínimos e, pouco depois, os trapistas ––, começaram também a fazer cerveja, que lhes servia não apenas como fonte de renda, mas também de subsistência.
Pode-se por isso dizer que a Igreja e a cerveja sempre estiveram juntas, no sentido de que até hoje algumas das melhores cervejas do mundo são feitas por monges.
Contributo de Santa Hildegarda
A cerveja de hoje não se parece com a medieval. Pelo menos com a da Alta Idade Média. Entretanto, essa bebida recebeu no século XII o inesperado e indispensável contributo de Santa Hildegarda [pintura ao lado], beneditina alemã, que modificou de vez a deliciosa bebida.
Nascida no século XI, Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179), a Sibila do Reno, foi colocada pelo Papa Bento XVI no número das Doutoras da Igreja. Verdadeira erudita entre as quatro paredes da clausura do convento, ela escreveu desde tratados de teologia e de mística até alguns de botânica e de medicina. Neles indicava um sem-número de remédios e tecia considerações sobre determinadas doenças, que até hoje assombram os cientistas.
Em seu tempo, utilizava-se na cerveja uma mistura de ervas aromáticas chamada gruit. Hildegarda observou que as bebidas doces eram muito populares e, não sabemos por que, supunha que o seu consumo elevado ocasionava problemas de visão, podendo chegar até à cegueira.
Em seu tratado sobre botânica, ela escreveu sobre os benefícios do lúpulo para a saúde, e da conveniência de seu emprego na fabricação da cerveja. De modo que esse complemento –– essencial para a fabricação de uma boa cerveja –– foi introduzido por indicação dela. Dando à bebida um toque mais amargo, contrabalançava o abuso de seu consumo, evitando assim os males decorrentes de outras bebidas mais doces.
Contributo dos monges trapistas
Exatamente no ano em que nascia Santa Hildegarda, São Roberto, abade do convento de Molesme, estabelecia-se em Cîteaux, com o propósito de restaurar uma literal observância da Regra de São Bento. Um dos mais extraordinários frutos desse convento foi o célebre São Bernardo, enviado depois com outros monges para fundar uma filial em Claraval, que ele tornaria famosa.
Os monges da reforma de Cîteaux passaram a ser chamados de cistercienses. Infelizmente, como acontece com todas as obras humanas, essa Ordem começou a decair. Foi então que, no século XVII, na Abadia de La Trappe, o abade Jean-Armand le Bouthillier de Rancé –– mais conhecido como Abade de Rancé (1626-1700) ––, empreendeu uma reforma para levar seus monges ao antigo fervor. Por causa de sua abadia de La Trappe, seus monges reformados começaram a ser chamados de trapistas (ou da Ordem dos Cistercienses Reformados), para distingui-los dos monges da Ordem dos Cistercienses da Observância comum.
Os trapistas são monges contemplativos, que levam uma vida considerada muito dura pelas pessoas do mundo. Eles se levantam antes do amanhecer para começar o dia com a oração litúrgica, que rezam conjuntamente várias vezes ao dia. Fora das orações, cada qual prossegue o seu trabalho em silêncio, pois este é obrigatório, como o é também o trabalho manual. Cada mosteiro tem a sua especialidade específica. O silêncio é assim praticamente perpétuo, proporcionando aos monges um ambiente que os ajuda a permanecer sempre em oração.
Portanto, foi num convento trapista que se chegou ao aperfeiçoamento da técnica de preparação da cerveja, a qual se estende até os nossos dias. E aquela produzida nesse convento alcançou tal fama, que os monges viram-se obrigados a registrar a marca “trapista”, nome que passou a ser utilizado como propaganda para a venda de cerveja.
Por isso, apenas dez cervejas levam o logotipo oficial trapista em suas etiquetas: Chimay, Achel, La Trappe, Orval, Rochefort, Westmalle, Westvleteren, Engelszell, Zundert e Spencer. Quase todas são belgas, mas há também holandesas, francesas, austríacas, e inclusive uma americana.
É preciso dizer que, para não prejudicar sua vida de piedade e oração, os trapistas dedicam apenas poucas horas ao fabrico da cerveja, o que faz com que sua produção seja limitada. O alto lucro que eles obtêm com sua venda destina-se primeiramente à manutenção dos monges e do mosteiro, sendo o restante empregado em obras caritativas, pessoas necessitadas e no desenvolvimento da área do mosteiro.
Um padre americano cervejeiro
Recentemente, um sacerdote americano ganhou o prêmio nacional de mestres cervejeiros. Trata-se do Pe. Jeff Poirot, pároco da igreja da Sagrada Família, de Forth Worth, no Texas. Em seus limitados tempos livres, ele começou a fabricar cerveja artesanal com um amigo na garagem de sua casa, como passatempo.
Ambos começaram a participar do concurso cervejeiro National Homebrew Competition [foto] há três anos, e agora ganharam o prêmio Ninkasi, concedido aos cervejeiros que acumularam mais pontos nas 33 categorias.
Mas sua produção é também bastante limitada, uma vez que o Pe. Poirot é muito solicitado pelos paroquianos e pelos deveres inerentes ao seu cargo. Por isso pede algumas vezes ao seu sócio que termine de preparar a cerveja, pois ele deve priorizar o seu trabalho como sacerdote. Acima de tudo, está o serviço de Deus[i].
Excelente artigo. Infelizmente hoje o politicamente correto iguala cerveja a droga, portanto, seria como cocaína ou maconha. Aliás, pior que maconha, pois esta teria benefícios para a saúde. Deus abençoe ao Sr. Solimeo.