Sórdido e repelente X augusto e épico
A morte apresenta dois aspectos. O primeiro é o aspecto biológico: a decomposição de um agregado químico instável que já não se consegue manter; são extravasamentos de humores e um deplorável e incoercível fracasso orgânico, contra toda a compostura e conveniência. É o corpo humano, ideal de beleza física de todos os artistas, que depois de ter passado toda a vida a produzir coisas repugnantes, acaba por se transformar ele próprio numa coisa repugnante.
Durante toda a vida, luta o homem para que o seu corpo não seja lixo — banhos, perfumes, unguentos, remédios, artifícios da higiene e da medicina — tudo é empregado para dar ao corpo uma aparência de estabilidade, de permanência de vida perene e incorruptível.
Vem a morte e patenteia a realidade mais recôndita, mais profunda e mais característica desse corpo: transforma-o em lixo, e começa a transformá-lo em lixo muitas vezes antes mesmo de a vida se haver completamente extinguido. Por este aspecto, a morte é sórdida e repelente.
Mas a morte tem outro aspecto. E por este, ela é um fato eminentemente humano, o fato mais notável de toda a vida e, em certo sentido, o mais augusto. Pois a morte arranca o homem da vulgaridade quotidiana, dessa armação de ninharias que costuma ser a trama da vida do comum da humanidade, e o coloca face a face, brutalmente, com o tremendo mistério de sua eternidade, patenteando que a vida de todo homem é uma epopeia — epopeia frustrada, ou epopeia realizada.
Por aí, a morte se alça acima do que ela tem de sórdido e repelente: mais do que isso, a sua própria sordidez contribui para torná-la mais grandiosa, na sua trágica magnificência. Por isso a morte tem sido a inspiradora das mais sublimes obras-primas, desde a tragédia grega até a 3ª Sinfonia de Beethoven. E quem não percebe que, aquilo que mais pode dignificar e enobrecer o homem, o heroísmo, tem íntimas afinidades com a morte?
É por esta razão que o homem sempre tem cercado a morte de solenidades sombrias e de pompas cheias de gravidade; é um tributo que ele deve a si, e à própria morte. A Igreja, de um modo todo especial — pois foi Ela quem revelou à humanidade o sentido mais profundo da vida e da morte — deu às comemorações fúnebres o mais justo e apropriado esplendor, não só pelo sufrágio das almas, como pelas lições que apresenta à meditação dos fiéis.
(Legionário nº 544, 10 de janeiro de 1943).