Pena de morte — uma execução em Roma

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Gravura representando uma execução pública numa praça em Bruxelas (Bélgica). No cadafalso, o carrasco aguarda o término da última confissão que o condenado faz ao sacerdote

A Santa Igreja, como boa mãe, mesmo quando concorda com alguma punição, dispensa à alma de quem é castigado mil cuidados e carinhos. O texto* que segue revela bem este venerável aspecto da Igreja, quando concede a um condenado à morte todos os meios necessários para a sua salvação eterna. Em uma civilização autenticamente cristã, até o cadafalso se transforma em lugar de verdadeira misericórdia e cátedra de ensinamento moral.

♦  Fonte: Revista Catolicismo, Nº 813, Setembro/2018

Fui ontem à tarde [19 de janeiro de 1842], como de costume, à igreja de Sant’Andrea delle Fratte [em Roma]a quarenta passos do nosso convento, e recitei o ofício diante da grade da primeira capela à esquerda, dedicada ao Arcanjo São Miguel. Longe estava do meu pensamento que, no dia seguinte, Deus escolheria essa modesta capela de uma modesta igreja para nela fazer brilhar a sua glória, com um prodígio de que não se encontram muitos exemplos nos anais da História. Ao sair, vi um grupo numeroso reunido em torno do quadro de avisos. Aproximei-me para ver o que atraía a multidão e lhe impunha profundo silêncio.

A Expiação – Emile Friant, 1908. Art Gallery, Hamilton, Ontário (Canadá)

Na parede estava pendurado um grande quadro de madeira, onde, com letras pretas igualmente grandes, se lia o seguinte: “Indulgência plenária para todos os fiéis que, tendo-se confessado, comungarem amanhã em [aqui vinha o nome de várias igrejas], e orarem por aqueles que estão condenados à morte”Retábulos semelhantes estavam postos em todas as encruzilhadas e esquinas das principais ruas, o que me fez compreender que no dia seguinte haveria uma execução.

Em Paris, os pregoeiros públicos especulam com a curiosidade da multidão e proclamam pela rua as execuções de morte, parecendo convidar o povo para um espetáculo. Aqui, avisos semelhantes chamam todos os católicos à oração, indicando o ponto de vista dos fiéis romanos para o fatal acontecimento que é o suplício do criminoso. Antes de tudo, eles veem na vítima da justiça humana uma alma a salvar, e no espetáculo da sua morte uma reparação à sociedade e uma lição de alta moral. Para alcançar esses três objetivos, envidam todos os esforços. A partir do dia da condenação, o criminoso se torna objeto dos mais caridosos cuidados; nada se omite em prepará-lo para a terrível passagem do tempo à eternidade. Narrando o que vimos, descrevo o que invariavelmente se faem tal circunstância.

Logo que anoiteceu, os Confrades da Misericórdia — confortatori — ou de São João decapitado se reuniram em grande número. Esta tocante instituição, fundada sob Inocêncio VIII em 1488, assiste os condenados à morte com caridade verdadeiramente cristã. Os membros dessa sociedade devem ser florentinos, ou pelo menos de famílias originárias da Toscana, em memória dos fundadores da obra. Alguns se dirigiram à cadeia e se puseram em oração. Pela meia-noite, um dos carcereiros entrou como de ordinário no cárcere, para ver se tudo estava em ordem; depois, fechando a porta, lançou um bilhete na triste habitação; e o condenado sabe, por tradição, o que isto significa. Deixam-no sozinho por alguns momentos, atendendo a que, de ordinário, a impressão produzida pelo terrível anúncio não lhe permite ouvir a voz da amizade nem a da Fé. Quando aqueles que deviam morrer no dia seguinte se acalmaram, os confortatori [confortadores] entraram. Um prelado e um bispo, membros da confraria, foram encarregados de conceder os primeiros confortos espirituais: orações, palavras suaves, mostras da mais afetuosa ternura — eis o que ocorria na prisão, e o que continuou sem interrupção até o momento supremo.

À meia-noite do dia anterior àquele em que os condenados deviam morrer, o SS. Sacramento era exposto na igreja da Confraria da Misericórdia. Os membros das diversas associações de piedade, tão numerosas em Roma, se reuniam para rezar por eles em torno do próprio Deus, que também fora condenado à pena de morte pela salvação dos homens.

Enquanto isso, os preparativos externos correspondiam às mesmas intenções. À meia-noite, quando a funesta informação chegava aos dois condenados, o SS. Sacramento foi exposto na igreja da Confraria da Misericórdia. Os membros das diversas associações de piedade, tão numerosas em Roma, se reuniram em torno do próprio Deus, que também fora condenado à pena de morte pela salvação dos homens. Ao romper do dia, em várias igrejas os sacrários foram abertos, expondo o divino Salvador à adoração dos fiéis. O povo dirigia-se para ali em multidão, nos confessionários formavam-se filas, e diante do altar se viam numerosos cristãos orando pela salvação de seus infelizes irmãos. O próprio Santo Padre fazia uma longa adoração diante do SS. Sacramento exposto na sua capela particular.

Às oito horas e meia, o lúgubre cortejo pôs-se em movimento. Após um piquete de dragões — em meio a uma multidão inquieta, ruidosa algumas vezes e silenciosa outras — havia uma longa procissão de religiosos e de confrades da Misericórdia, cobertos de sacos negros, com uma tocha na mão e salmodiando em tom grave a ladainha dos agonizantes. Vinha depois a fatal carreta, cercada de carabineiros e seguida do boia[carrasco]Os dois condenados estavam sentados no mesmo banco, ladeado cada qual por um sacerdote e tendo à sua frente um terceiro sacerdote portando uma imagem da Santíssima Virgem. Do seio da multidão que enche as ruas, praças e janelas, a uníssona pergunta: Sono convertiti? Estão convertidos? Confessaram-se? Quanto a um dos condenados, os sacerdotes assistentes respondiam afirmativamente, com um sinal de cabeça repetido muitas vezes. Ficaríeis impressionados ouvindo todo aquele povo, tão impressionável e tão expansivo, endereçar mil bênçãos ao criminoso, e tranquilizá-lo: “Meu filho, meu irmão, bendito sejas; anima-te; mandarei rezar uma missa por tua alma; prometo uma novena por ti, uma comunhão, uma esmola; não te esqueceremos; cuidaremos de tua mulher, de tua mãe, de tua irmã e de teus filhos”.

Culpado de parricídio, o outro condenado tinha permanecido surdo às solicitações da misericórdia. Ante o sinal do padre, que informava Non è convertito, essa mesma multidão se desfazia em repreensões, ameaças, maldições: “Birbone! [patife] Então vais morrer como um turco? Daqui a pouco estarás no tribunal de Deus! Vai, desgraçado, serás condenado por toda a eternidade!”. Impossível descrever a impressão produzida pela voz de todo um povo, pronunciando antecipadamente a sentença eterna de bênção ou de maldição, que seria dada alguns minutos depois aos condenados no tribunal do Supremo Juiz.

Igreja de São João decapitado, em Roma

À medida que o cortejo se aproximava do local da execução, os sacerdotes redobravam sua insistência com o obstinado, enquanto o movimento do cortejo era propositalmente retardado. Enfim chegou-se a alguns passos do cadafalso, erguido não longe da igreja de São João decapitado [foto ao lado]. Os dois condenados desceram à Confortatoria, capela provisória estabelecida diante da igreja. Foi ouvida pela última vez a confissão do criminoso arrependido, e ministrada a Santa Comunhão. Depois dos vinte minutos concedidos para a ação de graças, ele subiu ao cadafalso. Ali, segundo o costume de Roma, se pôs de joelhos, e nesta atitude religiosa recebeu o golpe da morte.

Junto ao segundo condenado ficaram os confortatori, aos quais se reuniram por caridade alguns sacerdotes e religiosos conhecidos por sua santidade, esgotando todos os recursos do zelo para tocar sua alma endurecida. Já era passada a hora da execução, e o carrasco esperava a sua vítima. Mas, por um rasgo dessa longanimidade que caracteriza a lei pontifícia, a espera foi prorrogada até que o desgraçado adquirisse tranquilidade. Se ele permanecesse insensível, somente à noite a justiça teria seu curso. O criminoso de que falamos continuou a repelir durante três horas, com uma espécie de furor, os caritativos conselhos que lhe davam, sobretudo recusando-se a abrir os lábios para a oração. Por fim, um dos sacerdotes, que acabava de descer do cadafalso, lhe disse: “Meu filho, se não quereis orar por vós, orai ao menos pelo vosso companheiro que está agora na eternidade”. Começaram então o De profundis. Ele descerrou enfim os dentes, recitou a oração e pôs-se a derramar lágrimas. E exclamou afinal: “Basta! Não quero morrer como um turco; quero confessar-me”. Com muitas lágrimas, recebeu os sacramentos e subiu em pouco ao cadafalso, rodeado das bênçãos e promessas de todo o povo. Tornado manso como um cordeiro, perguntou: “O que é preciso fazer?”. Ante a resposta, “pôr-vos de joelhos”, ele se ajoelhou. Indicaram-lhe o lugar para colocar a cabeça, e ele assim fez. Depois de haver pronunciado três vezes os santos nomes de Jesus e Maria, recebeu o golpe fatal.

Como o primeiro condenado estivera tão bem-disposto, lhe haviam recomendado que orasse pelo seu infeliz companheiro, e sem dúvida ele o tinha feito. Quem sabe o valor, diante de Deus, da oração do culpado que se arrepende, misturada com seu próprio sangue, e morre para expiar os seus crimes? Logo depois da execução, o sino da igreja de São Nicolau in Arcione anunciou aos fiéis, que haviam ficado em adoração, que tudo estava consumado — eram duas horas da tarde. Deu-se a bênção e tornou-se a guardar o SS. Sacramento no tabernáculo.

Desde a manhã, numerosos confrades haviam percorrido a multidão, pedindo esmolas a fim de celebrar missas pelas almas dos condenados, que nos dias seguintes até o oitavo tiveram belíssimos ofícios religiosos. Quanto aos seus corpos, os confortatori os haviam levado religiosamente para a igreja da Confraria, onde os enterraram, após terem salmodiado o ofício dos defuntos. No frontispício dessa igreja, lê-se apenas esta inscrição: Per ta misericórdia. O padroeiro do lugar é também um supliciado: São João Batista, cuja cabeça esculpida em pedra, por baixo da inscrição, forma o único ornato da fachada.

Poderia Roma assegurar melhor a salvação do culpado, do que mostrando o grande valor de uma alma a seus olhos? Assim se faz do cadafalso um espetáculo verdadeiramente moral.

Duas particularidades sobre o carrasco. Entre os antigos romanos, o executor não podia entrar na cidade, e sua habitação solitária estava além do Tibre. Exceto quando se tem necessidade do seu ministério, desgraçado do carrasco se ousasse transpor a ponte do Santo Anjo: o povo o faria em pedaços. Além disso, ele não recebia mais de três cêntimos por execução, para que o engodo do ganho não o expusesse a tornar-se pecador, desejando a morte do semelhante. Este último traço revela um conhecimento tristemente profundo do coração humano.


(*) As três Romas, Diário de uma viagem à Itália, pelo Abade Gaume (Vigário Geral da Diocese de Nevers, Cavaleiro da Ordem de São Silvestre, membro da Academia da Religião Católica de Roma), Tomo IV, pp. 6-11, Porto, Tipografia de Francisco Pereira d´Azevedo, 1858.

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