Pode-se corrigir publicamente um Papa por seu comportamento repreenssível? Ou a atitude de um fiel deve ser de uma obediência incondicional ao ponto de justificar qualquer palavra ou gesto do Pontífice, mesmo que abertamente escandaloso? Segundo alguns, como o vaticanista Andrea Tornielli, é possível expressar “face a face” seu desacordo com o Papa, mas sem manifestá-lo publicamente. Pelo menos esta tese contém uma admissão importante: o Papa não é infalível, exceto quando fala ex cathedra. Do contrário não seria lícito dissentir dele, nem sequer em privado, e o caminho a seguir seria somente o do silêncio religioso. Contudo, o Papa, que não é Cristo, mas apenas o seu representante na Terra, pode pecar e errar. Mas – pergunta-se – é verdade que ele só pode ser corrigido de forma privada, e nunca publicamente?
Para responder, é importante lembrar o exemplo histórico por excelência, aquele que nos oferece a regra de ouro do comportamento, o chamado “incidente de Antioquia”. São Paulo no-lo recorda nestes termos na Carta aos Gálatas, escrita provavelmente entre 54 e 57:
“Tendo visto que me tinha sido confiado o Evangelho para os não circuncidados, como a Pedro para os circuncidados, (porque quem fez de Pedro o Apóstolo dos circuncidados, também fez de mim o Apostolo dos gentios) e tendo reconhecido a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João, que eram considerados as colunas (da Igreja), deram as mãos a mim e a Barnabé, em sinal de comunhão, para que fôssemos aos gentios, e ele aos circuncidados, (recomendando) somente que nos lembrássemos dos pobres (da Judeia); o que eu fui solícito em cumprir. Mas, tendo vindo Cefas a Antioquia, eu lhe resisti em face, porque merecia repreensão, pois que antes que chegassem alguns de Tiago, ele comia com os gentios, mas, depois que chegaram, retirava-se e separava-se (dos gentios), com receio dos que eram circuncidados. Os outros judeus imitaram-no na sua dissimulação, de sorte que até Barnabé foi induzido por eles àquela simulação. Porém eu, tendo visto que eles não andavam direitamente, segundo a verdade do Evangelho, disse a Cefas, diante de todos: ‘Se tu, sendo judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a judaizar?’”.
Pedro, por temor de ferir a susceptibilidade dos judeus, favorecia com o seu comportamento a posição dos “judaizantes”, que acreditavam que todos os cristãos convertidos deviam cumprir a circuncisão e outras disposições da Lei mosaica. São Paulo disse que São Pedro tinha claramente errado e por isso lhe “resistiu em face”, ou seja, publicamente, para que Pedro não desse escândalo na Igreja, sobre a qual exercia a autoridade suprema. Pedro aceitou a correção de Paulo, reconhecendo o seu erro com humildade.
Santo Tomás de Aquino trata deste episódio em muitas de suas obras. Em primeiro lugar, ele observa que “o Apóstolo se opôs a Pedro no exercício da autoridade e não à sua autoridade de governo” (Super Epistolam ad Galatas lectura, n. 77, tr. It. ESD, Bologna 2006). Paulo reconhecia em Pedro o Chefe da Igreja, mas julgava legítimo lhe resistir, dada a gravidade do problema, que tocava a salvação das almas. “O modo como se deu a repreensão foi conveniente, pois foi público e manifesto” (Super Epistolam aos Galatas, n. 84). O incidente, observa ainda o Doutor Angélico, contém lições tanto para os prelados quanto para seus súditos: “Aos prelados (foi dado exemplo) de humildade, para que não se recusem a aceitar repreensões da parte de seus inferiores e súditos; e aos súditos (foi dado) exemplo de zelo e liberdade, para que não receiem corrigir seus prelados, sobretudo quando o crime for público e redundar em perigo para muitos” (Super Epistulam ad Galatas, n. 77).
Em Antioquia, São Pedro demonstrou profunda humildade, e São Paulo, ardente caridade. O Apóstolo dos gentios mostrou-se não apenas justo, mas misericordioso. Entre as obras de misericórdia espirituais existe a admoestação dos pecadores, chamada pelos moralistas de “correção fraterna”. É privada, se privado for o pecado, e pública se o pecado for público. O próprio Jesus especificou a sua modalidade: “Se teu irmão pecar contra ti, vai, corrige-o entre ti e ele só. Se te ouvir, ganhaste o teu irmão. Se, porém, te não ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que pela palavra de duas ou três testemunhas se decida toda a questão. Se os não ouvir, dize-o à Igreja. Se não ouvir a Igreja, considera-o como um gentio e um publicano. Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes sobre a Terra, será ligado no Céu; e tudo o que desatardes sobre a Terra, será desatado no Céu” (Mt 18, 15-18).
Pode-se imaginar que depois de tentar convencer privadamente São Pedro, Paulo não hesitou em repreendê-lo publicamente, mas – diz Santo Tomás – “porque São Pedro tinha pecado na frente de todos, devia ser repreendido na frente de todos” (In 4 Sententiarum, Dist. 19, q. 2, a. 3, tr. ele., ESD, Bolonha, 1999).
A correção fraterna, como ensinam os moralistas, é um preceito não opcional, mas obrigatório, sobretudo para aqueles que têm cargos de responsabilidade na Igreja, porque deriva da lei natural e da Lei divina positiva (Dictionnaire de Théologie Catholique, vol. III, col. 1908). A admonição pode ser dirigida do inferior ao superior, e também dos leigos ao clero. À pergunta de se há obrigação de repreender publicamente o superior, Santo Tomás respondeu de forma afirmativa no Comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, observando, no entanto, que devemos sempre agir com o máximo respeito. Portanto, “os prelados não devem ser corrigidos por seus súditos na frente de todos, mas humildemente, em particular, a menos que haja um perigo para a fé; em tal caso, na verdade, o prelado tornar-se-ia inferior, por ter incorrido na infidelidade, e o súdito tornar-se-ia superior” (In Sententiarum 4, Dist. 19, q. 2, a. 2).
Nos mesmos termos o Doutor Angélico se exprime na Suma Teológica: “Havendo perigo próximo para a fé, os prelados devem ser argüidos, até mesmo publicamente, pelos súditos. Assim, São Paulo, que era súdito de São Pedro, argüiu-o publicamente, em razão de um perigo iminente de escândalo em matéria de Fé. E, como diz a Glosa de Santo Ambrósio, ‘o próprio São Pedro deu o exemplo aos que governam, a fim de que estes afastando-se alguma vez do bom caminho, não recusassem como indigna uma correção vinda mesmo de seu súditos’ (ad Gal. 2, 14)” (Suma Teológica, II-IIae, 33, 4, 2).
Cornélio a Lapide [gravura ao lado], resumindo o pensamento dos Padres e Doutores da Igreja, escreve: “Que os superiores podem ser repreendidos, com humildade e caridade, pelos inferiores, a fim de que a verdade seja defendida, é o que declaram, com base nesta passagem (Gal. 2, 11), Santo Agostinho (Epist. 19), São Cipriano, São Gregório, Santo Tomás e outros acima citados. Eles claramente ensinam que São Pedro, sendo superior, foi repreendido por São Paulo […]. Com razão, pois, disse São Gregório (Homil. 18 in Ezech); ‘Pedro calou-se a fim de que, sendo o primeiro na hierarquia apostólica, fosse também o primeiro em humildade’. E Santo Agostinho escreveu (Epist. 19 ad Hieronymum): ‘Ensinando que os superiores não recusem deixar-se repreender pelos inferiores, São Pedro deu à posteridade um exemplo mais incomum e mais santo do que deu São Paulo ao ensinar que, na defesa da verdade, e com caridade, aos menores é dado ter a audácia de resistir sem temor aos maiores’” (Ad Gal. 2, II, in Commentaria in Scripturam Sacram, Vives, Paris, 1876, tomo XVII).
A correção fraterna é um ato de caridade. Entre os pecados mais graves contra a caridade, há o cisma, que é a separação da autoridade da Igreja ou de suas leis, usos e costumes. Até mesmo um Papa pode cair em cisma, se ele divide a Igreja, como explica o teólogo Suárez (De schismate in Opera omnia, vol. 12, pp. 733-734 e 736-737), e confirma o cardeal Journet (L´Église du Verbe Incarné, Desclée, Bruges 1962, vol. I, p. 596).
Hoje na Igreja reina a confusão. Alguns corajosos cardeais anunciaram uma eventual correção pública ao Papa Bergoglio, cujas iniciativas estão se tornando cada dia mais preocupantes e divisivas. O fato de ele se omitir em responder às “dubia” dos cardeais sobre o capítulo 8 da Exortação Amoris laetitia, credencia e incentiva interpretações heréticas ou próximas da heresia relativas à comunhão aos divorciados recasados. Assim favorecida, a confusão produz tensões e disputas internas, ou uma situação de conflito religioso que preludia o cisma. O ato de correção pública é urgente e necessário.
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Fonte: “Corrispondenza romana”, 22-2-2017. Matéria traduzida do original italiano por Hélio Dias Viana.